Região e Nação na América Latina

I-INTRODUÇÃO

George de Cerqueira Leite Zarur

Este é o terceiro livro de autoria coletiva dos antropólogos participantes do Grupo de Trabalho Sobre Identidades na América Latina, uma das unidades do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais.

É’ com muito orgulho que encaminho os brilhantes e originais trabalhos que compõe este volume ao leitor brasileiro mas, antes, cabem algumas palavras sobre o Grupo de Trabalho e suas atividades para que se compreenda o contexto que produziram os estudos aqui incluídos.

O Grupo de Trabalho tem representado, ao longo de quase quinze anos, um fórum privilegiado para o desenvolvimento de um pensamento social característico latino-americano, a partir da Antropologia. .

Em 1989, o Grupo de Trabalho publicou a obra “A Antropologia na América Latina” (México, IPGH, ed. George Zarur) que representa o mais completo e importante balanço da Antropologia em diferentes países latino-americanos.

Em 1994, veio a público outro livro produzido pelo Grupo de Trabalho, os dois volumes de “Etnia e Nação na América Latina” (OEA, G.Zarur, ed.), que pretendem uma reflexão sobre as relações entre os dois conceitos no ambiente social da América Latina. É, segundo várias opiniões, uma obra maior da Antropologia latino-americana.

O Grupo de Trabalho pretende desempenhar uma função política, assumindo um papel na construção ideológica de uma identidade compartilhada pelos países latino-americanos. Este objetivo vem sendo alcançado pelo encontro, através de investigações empíricas e teóricas, do que existe de comum e de diverso entre os povos do continente.

O Grupo tem uma óbvia função acadêmica por reunir alguns dos representantes da ultra-elite da antropologia latino-americana. Assim, seu pequeno tamanho é compensado pela repercussão do que é escrito por seus membros.

O Grupo de Trabalho Sobre Identidades na América Latina foi criado com o objetivo explícito, dentre outros, de articular as antropologias do continente. Os antropólogos latino-americanos desconheciam e, ainda, desconhecem em larga medida, o que se produz nos demais países da Região. O Grupo de Trabalho tem representado o único mecanismo de intercâmbio contínuo e regular entre os antropólogos do continente, já ao longo de 12 anos.

Este novo livro reúne trabalhos reunidos pela temática descrita em seu título, “Região e Nação na América Latina”.

A questão regional não tem merecido, da Antropologia, a importância que a cultura brasileira, por exemplo, lhe atribui. Ouso dizer, que a classificação de uma pessoa como “nordestino”, “cearense”, “mineiro”, “gaúcho”, “paulista” ,etc. é tão ou mais importante que classificações étnicas, em muitos dos contextos e situações engendradas pela cultura nacional brasileira.

É verdade que no início do século, a idéia de “região cultural” consistia em um aspecto central do pensamento antropológico. O conceito de “área cultural”, como em Wissler, Graebner e outros difusionistas do início do século, trazia uma regionalização da cultura, elaborada pelo próprio antropólogo, a partir de “traços, complexos de traços e padrões culturais” que percebiam como relevantes. No Brasil, tivemos duas importantes manifestações deste tipo de abordagem: com Eduardo Galvão, em seu seminal estudo “Áreas Culturais Indígenas do Brasil” e com Carlos Diegues em “Regiões Culturais do Brasil”. São duas obras essenciais, não só, para o conhecimento do Brasil, como também, para evidenciar o alcance da metodologia empregada.

Nos anos 50, os estudos regionais iriam, de outra forma, retornar à Antropologia através de Julian Steward A formulação teórica de Steward sobre o conceito de região, explicitada em um artigo de 1955 [1], não seria tão relevante quanto os aspectos geográficos que integrariam a sua “Ecologia Cultural”. Suas tipologias sobre índios americanos iriam representar uma forma de regionalização, na medida em que postulavam uma relação entre meio ambiente, organização social e ideologia, em um esquemático materialismo.

No Brasil houve duas tentativas de se utilizar os procedimentos metodológicos da “Ecologia Cultural” . Uma foi a de Darcy Ribeiro, em seus estudos sobre o “processo civilizatório”. Aliás, mais do que Steward, as idéias de Darcy voltavam à Gordon Childe e Leslie White (mais àquele que a este) e ao que se convencionou chamar de “evolucionismo unilinear”. Outra foi a que realizei, em artigo publicado em Current Anthropology, sobre os grupos indígenas do Centro Oeste brasileiro. Nesta ocasião, procurei sofisticar a abordagem ecológica, a partir da evidência empírica e da combinação da ecologia com estruturalismo, considerado no modelo proposto, como sistema específico para análise de ideologia.

O que diferencia os estudos apresentados neste livro desses textos anteriores é a percepção do fenômeno regional como construção social, como aspecto da identidade de grupos e, em alguns, casos, de países: caso brasileiro, onde, como demonstra Olivem, a distinção regional não só precede como é pré-requisito para a identidade nacional.

Por estudar a situação da América Latina, muitos dos artigos aqui compreendidos retratam diferentes formas e situações de conflito, violência e resistência à violência, na luta pela afirmação da dignidade de indivíduos e de suas culturas.

Alguns dos textos exprimem, também, as ansiedades de seus autores, quanto ao momento histórico da “globalização”. O estudo de Baeta Neves, por exemplo, aborda os conceitos de região e nação frente a esta idéia totalitária de globalização, que procura anular as diferenças entre regiões e pessoas e que, também, reprime e ridiculariza, como “ultrapassadas”, posições que não fazem parte da grande receita do bolo neo-liberal.

As preocupações de Baeta Neves levam à apaixonada defesa de visões de mundo alternativas e, assim, da própria liberdade de pensamento, que a suposta “globalização” está destruindo, em nome de uma contemporaneidade exclusiva e intolerante, escudada em novos e eficientes mecanismos de controle de opinião pública. Com efeito, só podemos comparar a ação da atual “mídia”, subjugando consciências, com o exercido pelo fanatismo religioso nas sociedades orientais teocráticas.

Outro estudo que ressalta a questão da ideologia da globalização mas, agora, referindo-se à Amazônia venezuelana e às populações indígenas que nela habitam, é o de Nelly Jimenez. É fascinante sua demonstração de como os movimentos econômicos procuram se justificar através dos conceitos de desenvolvimento sustentado e ecologia.

Jimenez desmascara a manipulação que as elites venezuelanas – suas conclusões podem, com facilidade, ser estendidas às demais elites latino-americanas- realizam desses conceitos e das ações políticas deles decorrentes. Nacionalismo e desenvolvimentismo, justificando a destruição do meio ambiente, são instrumentos utilizados pelas elites nacionais latino-americanas para negociarem o acordo mais vantajoso (para elas, apenas) com os interesses multinacionais. De outro lado, a “proteção” de grandes áreas como reservas naturais é, geralmente, realizada como forma de se garantir a utilização futura dos recursos nelas disponíveis pelos grandes interesses multinacionais- em detrimento das populações tradicionais, especialmente as indígenas, que as ocupam desde muito tempo.

Frente a este quadro, Jimenez demonstra como a consciência da população indígena relativa a seus direitos à posse da terra leva-a a resistir a essas pressões de um mundo “globalizado”.

De uma “angústia globalizada”, surge também, o estudo de minha autoria sobre o ethos da elite e a unidade social brasileira. A possibilidade mesma, do fim do Brasil como nacionalidade, como tem ocorrido em outros países, como conseqüência da chamada ‘globalização”, tem sido aventada por autores tão expressivos com Celso Furtado ( ).

O estudo identifica os princípios de “conciliação” e de “ordem” definindo o universo normativo da cultura política de nossa elite nacional. Por esses conceitos e das ações deles decorrentes podem ser explicados vários traços do cotidiano da vida brasileira, inclusive, a violência física e a intimidação exercida, costumeiramente, vitimizando os mais fracos.

Por outro lado, as tendências políticas desagregadoras não seriam suficientemente fortes. O novo estado, burguês e “paulista”, abandona a idéia de conciliação interna à elite, afastando, portanto um importante princípio gerador da unidade nacional. Os aspectos simbólicos seriam, entretanto, hoje, suficientes para manter o País unido.

O artigo de Rubem Olivem, na mesma linha de estudar a identidade nacional brasileira, analisa o papel do regionalismo no pensamento social do País, no presente século. Ilustra a relação entre as tendências políticas descentralizadoras, na República Velha e centralizadoras, no estado novo, com as mesmas oscilações na percepção do valor relativo do universal, do nacional e do regional entre os intelectuais brasileiros.

É notável e importantíssima para se aceitar a diversidade brasileira, sua conclusão de que no Brasil atual, bastante integrado econômica, política e culturalmente, a recente ênfase no federalismo exprime o princípio de que em nosso País, o nacional passa antes pelo regional.

Assim, para Olivem, a unidade nacional não se coloca, como no nacionalismo clássico, em contradição com fortes identidades regionais, mas, sim, como seu corolário. O regionalismo e o federalismo político seriam a própria expressão política e cultural dessa unidade.

No Brasil a combinação da etnicidade com outros princípios, inclusive o regional, toma conforme vimos, uma maior importância, como demonstra o elegante trabalho de Seyferth.

O Sul do Brasil assusta, ainda hoje, por ser diferente, alguns setores menos informados do nacionalismo brasileiro mais exaltado. O trabalho de Seyferth retrata a interação na história entre as diferentes categorias analíticas, de etnia, região, nação e a questão imigratória na composição do pensamento dos intelectuais e da identidade brasileira.

O uso dos conceitos de “jus solis” e “jus sanguini” lança uma luz nova sobre a relação entre os conceitos de “região” e “nação”. Esclarece, também, muito da relação entre os conceitos de “etnia” e “nação”. Acredito que a relação entre o “jus sanguini” e a construção étnica, pode tornar muito forte a superposição semântica entre os conceitos de raça e etnia.

O artigo de Jimeno clarifica o papel da violência no cotidiano dos colombianos e de como variam as percepções da violência, dos pontos de vista dos intelectuais e da população pobre.

Os intelectuais, e a imprensa vendem a violência como um aspecto essencial do caráter nacional e, assim, da identidade nacional colombiana. Desta maneira “naturalizam-na” como algo inevitável, reforçando-a, e até tornando-a atraente.

Não é simples coincidência que, em outro livro do Grupo de Trabalho Sobre Identidades na América Latina – “A Antropologia na América Latina” (Zarur, 1990) – a questão da violência, tenha aparecido como eixo do estudo da autora antropóloga colombiana Nina Friedman. Nessa obra, que reúne estudos sobre a maneira de se fazer antropologia nos diferentes países latino-americanos, a antropologia colombiana é explicada por suas relações com violência na sociedade colombiana.

Muitas das conclusões de Jimeno não são apenas colombianas ou latino-americanas, mas contextualizam a questão da violência como forma percebida e vivida por diferentes atores sociais em um mundo marcado pela comunicação de massas. Jimeno usa, competentemente, os instrumentos analíticos da antropologia para realizar a crítica de sociedades que vulgarizam e até prestigiam a violência como valor de afirmação nacional. Sua antropologia é “cidadã” por ressaltar o dano que a aceitação e, até, a valorização da violência no pensamento social, causam à vida em comum e à felicidade das pessoas.

Quando se chega ao México, a questão da etnicidade, especialmente da etnicidade indígena, torna-se absolutamente central para se discutir a identidade nacional, ao contrário do cotidiano brasileiro em que, em larga medida, o étnico fica submerso no regional.

O estudo de Bartolomé, que discute a clássica e importantíssima questão antropológica dos limites étnicos, apresenta um quadro geral dos aspectos escolhidos pelos grupos indígenas mexicanos para se distinguir entre si e, especialmente, para criar uma identidade indígena genérica distinta das demais. Esses aspectos são a língua, o território, a indumentária, o estilo de vida, a história, o sistema econômico, a adscrição parental e a participação política, além da religião que não é discutida, em detalhe no trabalho.

Bartolomé oferece uma relevante e original contribuição teórica, ao discutir a ênfase, talvez excessiva, de autores como Barth e Cardoso de Oliveira, em aspectos formais na delimitação de fronteiras étnicas. Reincorpora à discussão da etnicidade a cultura das populações participantes de uma relação interétnica. Retorna, portanto, em certa medida, a visões “culturalistas” que, nos estudos ditos de aculturação opunham parentesco a parentesco, religião a religião, sistema econômico a sistema econômico, e assim sucessivamente.

Há porém, uma significativa diferença: os traços distintivos de etnicidade seriam selecionados pelos próprios índios mexicanos e não, apenas, pelo antropólogo, como nos velhos estudos de aculturação. Logo, ao fazer convergir as abordagens “culturalistas”, através de uma visão não essencialista da cultura, com o problema da delimitação dos limites étnicos, Bartolomé inova na teoria antropológica:

Ainda no México, o fascinante artigo de Barrabas descreve o zapatismo e a luta pela identidade e pelo respeito humano dos índios mexicanos, a partir da revolução armada de Chiapas.

O artigo demonstra como a consciência política foi sendo gradativamente assumida pelos índios mexicanos e tornou-se um importantíssimo símbolo para o México e para as escolhas que o País fará daqui para a frente.

Infelizmente, o estudo de Barrabas só atinge Janeiro de 1997. Começa a descrever o crescimento da reação conservadora, embora não tenha chegado a relatar os terríveis acontecimentos mais recentes, envolvendo massacres da população civil indígena e o uso da intimidação física, arma secular usada para a opressão dos povos da América Latina.

Chiapas e sua revolução indígena são um claro sinal de luz, acendendo a esperança de que a globalização totalitária encontra limites políticos onde menos se poderia esperar.

Um texto que realiza uma típica análise regional é o de Scott, sobre o Sub-médio São Francisco. Acredito, deverá tornar-se leitura clássica, na ilustração do alcance da região, enquanto objeto antropológico. Scott identifica os atores sociais que interagem na região, incluindo agências governamentais, agências internacionais e o movimento sindical de defesa dos agricultores deslocados pelas grandes barragens construídas ao longo do curso do rio.

Os conflitos de interesse e as diferentes percepções dos processos em curso, segundo a versão dos diferentes atores sociais são sumamente esclarecedores da luta de classes no interior do Brasil. A atualidade do estudo emerge, de outra forma, da operação do “global”, representado pelo Banco Mundial, por tecnologias de ponta em barragens hidroelétricas e pela implantação de uma agricultura de exportação em uma área geográfica bem delimitada.

A resistência política do povo atingido pelas barragens- pelo qual o autor do artigo e o editor desse livro não escondem sua simpatia- também, desperta a esperança na capacidade de resistência de povos e indivíduos contra os maciços processos de exclusão social característicos dos dias de hoje.

O interessante estudo, de autoria de Hênio Barreto, aborda o processo de construção de identidade dos Tapeba, um grupo indígena até então desconhecido ou “inexistente”, no estado do Ceará, que sempre foi conhecido por não possuir o componente indígena em sua população.

O artigo demonstra a ação de diversos agentes, como a FUNAI, a imprensa, a igreja católica e a própria população Tapeba, na “criação/invenção” da identidade desse grupo que, assim, passa a ter direito à assistência dos órgãos e entidades de defesa dos índios. Um dos muitos aspectos originais do trabalho é a inserção do antropólogo como um dos agentes envolvidos na construção da identidade capeba.

Este é mais um dos estudos desse livro, que contribui para o avanço da antropologia e para o conhecimento da diversidade latino-americana. A construção da identidade capeba é outro exemplo de resistência de populações, alvos típicos da exclusão social e da miséria.

Os trabalhos, publicados neste volume, sempre trazem algum tipo de contribuição teórica original. Também exprimem as angústias dos seus autores, enquanto cidadãos de países que enfrentam novos problemas e velhos problemas, escondidos sob uma nova roupagem.

Os estudos aqui apresentados deixam melancolicamente evidente que a violência é algo marcante, enorme e comum à toda América Latina, usada na repressão corriqueira de manifestações locais, regionais ou étnicas de identidade, com muita freqüência, em nome da “unidade nacional” .

A idéia sagrada do estado-nação moderno que, segundo Anderson ( ), substitui a de religião no amor das pessoas, o faz também, na justificativa da ação violenta contra populações que procuram exercer direitos políticos, econômicos e culturais consubstanciados na noção de autonomia. A intolerância toma outra forma, mas sem perder intensidade, quando o execrado deixa de ser o herege das religiões hegemônicas, transformando-se naquele que foge a um cânone “nacional”.

Atente o leitor para os caminhos que as populações oprimidas do continente latino-americano têm aberto, criativamente, na luta em defesa de sua maneira de ser e pela afirmação de sua essencial humanidade.

A defesa dessas identidades alternas é, certamente, uma das mais importantes contribuições desta obra, pois a melhor ciência social é aquela que associa o envolvimento humano e político de seus autores aos mais estritos critérios de excelência acadêmica.

 

[1] “Teoria y Practica del Estudio de Areas. Washington, União Panamericana, 1955.

Sumário

INTRODUÇÃO

George de Cerqueira Leite Zarur

REGIÃO E NAÇÃO: NOVAS FRONTEIRAS

Luiz Felipe Baeta Neves Flores

GLOBALIZAÇÃO E ETNICIDADE,

Nelly Arvelo-Jiménez

O ETHOS DA ELITE: ENSAIO SOBRE A UNIDADE NACIONAL BRA­SILEIRA

George de Cerqueira Leite Zarur

NAÇÃO E REGIÃO NA IDENTIDADE BRASILEIRA,

Ruben George Oliven

IDENTIDADE NACIONAL, DIFERENÇAS REGIONAIS, INTEGRAÇÃO ÉTNICA E A QUESTÃO IMIGRATÓRIA NO BRASIL

Giralda Seyferth

IDENTIDADE E EXPERIÊNCIAS COTIDIANAS DE VIOLÊNCIA

Myriam Jimeno

BASES CULTURAIS DA IDENTIDADE ÉTNICA NO MÉXICO

Miguel Alberto Bartolomé

1994: O ZAPATISMO E A RADICALIZAÇÃO DO MOVIMENTO INDÍGENA NO MÉXICO

Alicia M. Barabas

UMA MANCHA NOS PERÍMETROS IRRIGADOS: ECONOMIA POLÍTICA NA SUB-REGIONALIZAÇÃO NO NORDESTE BRASILEIRO,

R. Parry Scott

TORNANDO-SE ÍNDIO NO CEARÁ: OS TAPEBAS DE CAUCAIA

Henyo Trindade Barretto Filho

2017-10-30T14:31:56-02:00By |Livros|