Relato de minha atuação como Diretor da FUNAI

Relato de minha atuação como Diretor da FUNAI
Quando cheguei dos Estados Unidos, em 1975, com meu PhD em antropologia recém-concluído, um dos primeiros brasileiros a conseguir tal título, não fugi aos desafios que encontrei pela frente.
Minha contratação havia sido proibida pela UnB devido ao meu passado de líder estudantil. Então meu professor Roberto Cardoso de Oliveira me indicou para o cargo de Diretor da FUNAI. Já havia trabalhado na FUNAI em 1971 e 1972, como chefe da Divisão de Estudos, quando me dediquei a pesquisar os índios do Xingu.
O Presidente da FUNAI, General Ismarth Araujo Oliveira me convidou a participar do projeto de abertura política do governo Geisel. Além disso, se propôs a me apoiar fortemente na defesa dos índios brasileiros. Até hoje, passados quase 50 anos, a gestão do General Ismarth é lembrada por índios e indigenistas como um marco importante na história da relação entre índios e brancos no Brasil.
Conversei também com a esquerda, especialmente com o Partido Comunista Brasileiro representado pelo meu dileto amigo, o antropólogo da FUNAI Carlos de Araújo Moreira Neto. Consultava frequentemente Carlos, que por sua vez fazia a ponte com o Partido e com Darcy Ribeiro, com quem estive diversas vezes.
Ainda havia uma terceira força, os irmãos Villas-Boas, de quem recebi não apenas apoio político, mas também uma amizade que enriqueceu para sempre minha vida. Resta lembrar o apoio (por mim não solicitado) do Banco Mundial, que vinculou um empréstimo de quinhentos milhões de dólares à política indigenista do período.
Era um equilíbrio precário que não poderia durar muito tempo, mas valeu a pena pelas populações indígenas que foram reconhecidas e tiveram sua sobrevivência assegurada. Também pelo que daí para frente passou, com clareza, a ser a missão da FUNAI. Desde aquela época a demarcação das terras consolidou-se como a função primeira da FUNAI, identificada como condição essencial para a sobrevivência dos índios. Afirmou-se então, uma consciência nacional voltada para a preservação dos índios e à proteção da natureza.
Foi um período de formação de uma massa crítica de antropólogos para o órgão, carreira que, juntamente com a de indigenista confere a identidade da Funai. A construção institucional passava pela formulação e disseminação de uma ideologia indigenista, na nobre tradição de Rondon, segundo o motto ´Morrer se preciso for matar nunca`.
Durante o período em que estive na FUNAI, em 1975 e 1976, o órgão assumiu um papel central à valorização das línguas e das culturas indígenas. As universidades foram chamadas a participar.Representei a FUNAI em um GT do Conselho de Segurança Nacional encarregado das terras indígenas no qual propus uma área contínua para os índios Yanomami. Reunia-me informalmente em minha casa com as líderes da causa Yanomami, minhas amigas, a antropóloga Alcida Ramos e a fotógrafa Cláudia Andujar, levando nossos posicionamentos ao GT.
Mantive-me no cargo por pouco mais de um ano, após o que saí, pois, a pressão atingira um patamar insustentável. Era uma guerra diária com diretores de outros departamentos que não tinham qualquer compromisso com as populações indígenas. Não muito depois, o próprio Presidente da FUNAI apresentava sua carta de demissão. Mas a razão direta de minha saída do órgão foi a defesa que fiz do antropólogo da UFSC, Silvio Coelho dos Santos, proibido de entrar em área indígena. Contra ele foram levantadas acusações diversas por um dos militares que ocupavam cargo na FUNAI. A minha defesa de Silvio, bem como minha atuação em defesa dos antropólogos e dos índios está documentada no site do Arquivo Nacional e aberta para quem quiser ver.
A fragilização da FUNAI vem ocorrendo desde então com altos e baixos. Destaque para quando foram construídas gigantescas hidroelétricas na Amazônia.
Ainda participei, após minha saída da FUNAI, com meu saudoso amigo o deputado constituinte Luis Carlos Sigmaringa Seixas, do movimento para a inclusão do artigo sobre índios na Constituição de 1988 (arts 231 e 232). Foi a única coisa que pedi a Sigmaringa durante décadas de convívio e militância.
Administrações militares tenebrosas se sucederam na FUNAI, mas foram preservadas as atribuições legais do órgão na defesa da terra, saúde e educação. O desmonte jurídico começou no governo Collor, quando a área de saúde foi transferida ao Ministério da Saúde. No plano ético assistiu-se a infame mesquinharia, quando o presidente da FUNAI retirou o nome de Orlando Villas Boas do Centro de Treinamento localizado na cidade de Sobradinho.
Assisto com muita esperança, após outro período de trevas, ao renascimento da politica indigenista seguindo dois movimentos. Um primeiro voltado à criação do Ministério dos Povos Originários. Um segundo o de realizar o que sempre sonhamos, desde a convivência com Orlando e Cláudio, Raoni, Megaron, Aretana, Bibina, e vários outros: o protagonismo de lideranças indígenas em seu novo papel de gestores da política para o setor.