I. Caos e Pós-Modernidade
Muitos anos atrás, Edmond Leach afirmava: “Eu não quero transformar a antropologia num ramo da matemática, mas acredito que podemos aprender muito, começando a pensar na sociedade de uma maneira matemática” (Leach, 1961). Este artigo compartilha desse ponto de vista e contribui para a atual discussão teórica em antropologia, explorando as possibilidades de tomar emprestada uma nova perspectiva teórica da matemática e das ciências naturais, a assim chamada “teoria do caos”. [1]
Todos os paradigmas em antropologia utilizaram sempre modelos mecânicos, no sentido em que “seus elementos constitutivos estão na mesma escala dos fenômenos” (Levi-Strauss,1958, p.311).
De um ponto de vista formal, analogias biológicas em Antropologia são, também, modelos mecânicos, da forma como Levi-Strauss, assim como os cientistas naturais, os definem. Modelos mecânicos são deterministas o que significa que, como qualquer equação algébrica regular, e como a maioria das equações diferenciais, possuem apenas uma solução. Aplicados a fenômenos naturais e sociais, tais modelos são aqueles onde, dadas exatamente as mesmas causas, os resultados são os mesmos. Modelos deterministas, mecânicos, de um ponto de vista formal, são opostos a modelos estocásticos. [2]
A diferença entre modelos deterministas e estocásticos é essencial para compreender o conceito de “caos”, conforme usado recentemente nas ciências naturais e na matemática. Num encontro da Royal Society em 1986, “caos” foi definido como “comportamento estocástico ocorrendo em um sistema determinista” (Stewart 1989, p.l7). Assim, nesta nova abordagem, desaparece a oposição absoluta entre modelos deterministas e estocásticos. Um exemplo típico deste novo arranjo é encontrado nas equações de Lorenz. Lorenz entendeu que as equações diferenciais (um típico “modelo determinístico”) que usava nos estudos meteorológicos apresentavam resultados com alto grau de variações (“aleatórias”) devido a ligeiras diferenças nos seus estados iniciais. Assim, as soluções para estes sistemas eram “instáveis e quase todas não-periódicas” (Lorenz,1963).
Alguns autores (cf. Marcus e Fisher,1986) associaram a “teoria do caos” ao movimento pós-moderno em literatura, humanidades e ciências sociais. Existem, contudo, diferenças muito significativas, apesar do fato de que “caos” e pós-modernismo literário possam ser considerados parte do mesmo movimento cultural amplo (Hayles, 1990), de contestação dos sistemas de explicação vigentes. A diferença mais impressionante é que “caos” está se tornando um novo e abrangente paradigma na matemática e na física, enquanto, na opinião desses antropólogos pós-modernos, o pensamento social da atualidade, inclusive o seu próprio, suspeitaria de “paradigmas abrangentes ”(Marcus e Fisher, op. cit. p. 5).
“Caos” poderá designar um novo e radical caminho para modelos deterministas na ciência, através da incorporação do fator aleatório. É uma expansão do território da ciência e da racionalidade enquanto o pós-modernismo literário, é em larga medida, uma crítica da ciência e da racionalidade.
A indistinção entre as fronteiras da antropologia e da literatura, como proposto por algumas tendências do pós-modernismo, representa uma forte ruptura interna à antropologia: um campo que surgiu nos museus de história natural e que foi percebido, por muito tempo, como a mais “ciência” dentre as ciências sociais.
A compreensão da antropologia como uma espécie de história a ser contada, isto é, apenas um tipo particular de criação literária, é muitas vezes justificada em nome de um relativismo ético e político (cf. Marcus e Fisher, op. cit.).
Não há dúvida que o relativismo representa uma das premissas éticas e metodológicas da Antropologia. Inexiste, porém, qualquer associação lógica evidente entre a adoção da metáfora literária como premissa na antropologia e o abandono de descrições etnocêntricas que exageram a violência, a crueldade ou o comportamento sexual bizarro de povos distantes. Isto é, entre relativismo e o “escrever da cultura”. Por outro lado, explicações que tomam, costumes estranhos inteligíveis e, portanto, racionais, podem desempenhar uma importante contribuição para a tolerância frente à diferença, pelos que pensam a diversidade humana. Há uma velha tradição filosófica (e até teológica) que associa racionalidade com tolerância
Tolerância e preconceito podem ser encontrados na antropologia desde seu início, mas a metáfora literária pós-moderna pode ser, por si só, um novo perigo para os “nativos” antropológicos. A falta de importância do autor e sua irresponsabilidade frente ao texto (cf. Foucault, 1979) – associada à prosaica, porém efetiva, pressão no sentido de se publicar para um público externo extenso, sonho de todo escritor – pode representar uma séria ameaça às populações estudadas. Autores literários escrevem para seus leitores e, conseqüentemente, têm a tendência de dizer o que sua audiência quer escutar, ou melhor, ler.
Esta reação, às vezes, sem uma discussão mais aprofundada, contra uma antropologia racional manifesta a reação global contra a racionalidade dos tempos de hoje.
A racionalidade entendida como a própria essência do humano é considerada, desde os gregos – idéia que voltou a se fazer sentir, com toda a força no iluminismo – a base para a organização da sociedade política: Rosseau e o “contrato social” seriam as instâncias típicas, pois os seres humanos, pelo uso da razão, acordariam em conviver segundo regras aceitas por todos. A razão nunca deixou, porém, após o surgimento de religiões como o cristianismo e o islamismo, de estar associada com a idéia de “alma”, com a escolha livre (“livre arbítrio”). Quando o Padre Bartolomé de Las Casas afirmava que os índios americanos eram seres humanos pois possuíam alma, dizia, também, que eram capazes de escolher livremente, racionalmente, entre o bem e o mal.
Nos últimos anos, a premissa da racionalidade tem sido associada com planejamento e dirigismo centrais, violência do estado e governo militar-tecnocrático, contrariando a tese Weberiana central da racionalidade disseminada por toda a sociedade. O problema é que o “estado racional” , deste tipo, baseia na idéia da razão como privilégio de alguns que, em seu nome, e do saber técnico que a faria exclusiva, imporiam sua vontade ao restante da sociedade. Não obstante, ainda é um fato que a convicção sobre a qual se funda a democracia é a da racionalidade da pessoa comum e que a maioria dos indivíduos tem condições de escolher o que é melhor para si mesmos e para a coletividade.
É, assim, uma falácia rejeitar a premissa da racionalidade, por sua associação com a modernidade e os estados totalitários contemporâneos. Esses são justificados (hegelianamente) pela crença de que a razão cabe a poucos e identifica-se com o estado. A premissa da democracia é a oposta: a de que a razão se distribui por todos os indivíduos de diferentes estratos sociais.
As Ciências Sociais são ideologias que refletem e afetam as sociedades que as produzem, Assim, a escolha da poesia, por exemplo, por algumas linhas da antropologia pós-moderna, como o principal canal de comunicação entre culturas diferentes, exprime a suposição da impossibilidade de comunicação transcultural, pelo uso da razão. No entanto, tem sido esquecido, que em alguns contextos, um discurso densamente simbólico e poético pode tornar-se um pretexto para um comportamento irracional dos sujeitos do discurso e da ação, pois os seres humanos descritos, isto é, objetos do discurso e da ação seriam, também eles, irracionais, “maravilhosamente irracionais”, como o Zaratrusta de Nietzche.
A metáfora literária, sem maior crítica, pode também vir a ser uma ameaça séria para uma antropologia de boa qualidade, porque uma pesquisa cuidadosamente realizada não é condição para escrever uma peça literária. Assim, a identidade literária em antropologia pode produzir adjetivos em excesso e etnografias insuficientes, como, de fato, se tem observado em algumas produções do gênero.
Considerando a presente crise de paradigmas, tão bem diagnosticada por cientistas sociais pós-modernos, e a fragilidade da solução que apontam, essas são boas razões para discutir alternativas. Penso que a utilização de novos modelos matemáticos poderá contribuir para o avanço teórico da questão.
As principais propostas para usar modelos de caos como metáfora em antropologia são as seguintes:
1. A desordem é o estado comum na natureza . A organização é uma exceção e, apenas, um momento, uma descontinuidade interna ao estado de desordem.
A desordem absoluta seria pura aleatoriedade. Na teoria do caos, contudo, o modelo explanatório abrangente permanece determinista, mesmo aberto o espaço para várias soluções alternativas diferentes. O modelo determinista opera durante um estágio lógico na explicação e é suspenso durante o estágio lógico subseqüente.
A transferência desta posição metodológica relativa à natureza para o campo das ciências sociais é extremamente interessante. Propõe a desordem, intermediada por estágios e níveis ordenados, como a situação corrente na vida social e na cultura.
A implicação metodológica desta premissa no campo da Antropologia é a de que os antropólogos deveriam desistir de ingênuas tentativas de explanações funcionais, pois a falta de explicação é a maneira mais fiel de se retratar o mundo.
A existência de vastas áreas de vida social que, simplesmente, não podem ser explicadas, não representa um simples problema de contextualização adequada, pois os antropólogos podem supor que o seu modelo tenha se tornado caótico quando não podem explicar, e isto constitui, por si só, uma explicação. Além disto, a metodologia não deveria procurar, apenas, o que pode explicar, mas também o que não se pode explicar. Às vezes o inexplicável pode ser muito mais interessante do que o que o que explica através das cansativas explicações correntes.
2 – Fenômenos caóticos podem ser descritos como sistemas de equações não-lineares (sistemas complexos)
Devido à primeira premissa acima, a da desordem, a pura descrição sem explicação, passa a ser assumida como um aspecto essencial do trabalho do antropólogo. A conseqüência para a metodologia antropológica é a de que os antropólogos deveriam sentir-se obrigados a descrever tudo o que encontram no campo, mesmo o que o não tem explicação.
Daí a analogia com sistemas complexos de equações.
Sistemas complexos de equações não têm solução, mas representam descrições eficientes de relacionamentos muito complicados. Quando transpostos para a antropologia, redescobrimos a idéia bastante familiar e antropólogos boasianos, de que enquanto não podemos explicar tudo, temos a obrigação de descrevê-lo da melhor maneira possível.
A necessidade de ser “elegante” , como na formulação de sistemas complexos, torna-se um grande desafio e uma constante necessidade quando um grande volume de dados é apresentado. Aqui a questão literária, o “escrever bem”, voltaria, mas com uma conotação bastante diversa das formulações pós-modernas, ou seja, como um forma de comunicação necessária ao exercício da razão. Não como uma forma de emoção estética alternativa à razão , mas como uma necessidade mesma do exercício da razão.
3. Alguns tipos de fenômenos apresentam uma extrema sensibilidade às suas condições iniciais.
O melhor exemplo aparece novamente nas equações de Lorenz. Tênues, imperceptíveis diferenças nas condições iniciais afetam o futuro comportamento do sistema em longo prazo.
Lorenz, um meteorologista, criou a expressão “efeito borboleta”, querendo dizer que o bater das asas de uma única borboleta produz mudanças infinitesimais no tempo, em curto prazo, mas, em longo prazo, pode tornar-se a causa de tempestades ou mudanças atmosféricas em outra região do mundo. O fator do batimento da asa da borboleta não pode ser medido.
Transferida para a sociedade e a cultura humanas, a metáfora do “efeito borboleta” é fantástica. O comportamento de um único indivíduo pode afetar (ou não) o total da cultura e da história humanas. A própria borboleta batendo suas asas, mudando o tempo que influencia decisões humanas, pode mudar, assim, a cultura. A questão não é apenas de incerteza, mas também de imprevisibilidade. O acaso, a biografia e a vontade individual se tornam centrais na explicação. Grandes homens em posição poderosa podem ser estratégicos para explicar a moldagem da cultura porque sua influência é conhecida mas, aqueles que não têm poder podem também alterá-la, sem que o seu papel seja detectado.
A questão do poder e da decisão individual voltam a ser consideradas, na mudança e na estabilidade da cultura.
4 – Diferenças de escala são essenciais na explicação
A relação entre uma borboleta que voa e um furacão (e vice-versa) é uma relação complexa entre fenômenos em escalas diferentes. Mandelbroth (1982) inventou a geometria fractal, baseada em diferença de escala, que tem sido entendidas como uma espécie de apêndice aos modelos de “caos”.
Diferenças de escala sempre foram um problema crucial nas ciências sociais. Um exemplo clássico de um tratamento de escala, especialmente indicado para o estudo de sociedades complexas, origina-se do conceito marxista de “totalidade” . Nesta ótica, a mediação entre totalidades parciais e sua relação com o todo é uma questão estratégica.
A escala tem sido um problema importante em antropologia, até para distinguí-la epistemologicamente da sociologia, devido à sua aproximação preferencial a grupos de pequena escala. As questões relacionadas à escala, na antropologia, têm abrangido questões tão diversas como o papel explanatório de totalidades funcionais, a noção etnográfica de holismo antropológico e os limites grupos étnicos, por exemplo.
As ciências sociais modernas empenham-se na formulação de modelos mecânicos. Alguns desses modelos estabelecem relacionamentos hierarquizados entre escalas diferentes. Quando tais modelos se tornam “caóticos”, o relacionamento entre níveis de escala diferente fica desestruturado . A partir deste momento, o acaso e os acidentes caracterizam os relacionamentos entre níveis de escalas diferentes.
Estas proposições são as idéias básicas que podem ser extraídas da teoria do caos para criação de uma metáfora matemática para a antropologia São, também, os seus limites atualmente.
II. Escala, Biografia, Acaso e Vontade Humana
no Mundo Verde e Amarelo.
1. O Período Caótico
Os brasileiros escreveram em sua bandeira o lema positivista “Ordem e Progresso” . Esta palavra de ordem tem um outro sentido, o de um modelo mecânico aplicado à história. A idéia é a de um crescimento nacional, ordenado e inexorável, um aperfeiçoamento constante, uma marcha regular para cima e para melhor.
A história brasileira pode ser considerada como a tentativa da elite de manter o controle da sociedade através da idéia de ordem, à custa de uma altíssima dose de repressão e violência. A idéia de “ordem”, identificada com a “paz social”, isto é, com o controle incontestável das elites, se necessário, com o uso corriqueiro da violência direta, é eficaz para a explicação da história e da cultura política brasileiras. É a síntese de uma ideologia política, mas mais do que isto, um modelo mecânico aplicado por um grupo que detém o poder sobre uma sociedade. A evidência de sua eficácia é a sempre lembrada suposta “estabilidade política” do País, quando contrastada com as nações da América espanhola.
Por outro lado, a idéia de progresso levada à prática também seria confirmada pela história do País. Até os finais da década de 70, o Brasil teria sido um país com uma das maiores taxas de crescimento do PIB, talvez a mais alta, por um período contínuo de cerca de 100 anos.
O controle da elite sobre a sociedade era possível pelas condições de equilíbrio desta última, ou seja, a sociedade também ser organizava a partir de um modelo mecânico, de um modelo de equilíbrio que se reproduzia ao longo do tempo.
Este modelo surgia de uma forma tradicional de organização caracterizada por grupos oligárquicos organizados a partir de idéias familísticas, possuidores de grandes extensões de terra que construíam uma comunidade política unificadora de suas regiões. A articulação entre essas oligarquias regionais era a condição para a unidade política do Brasil. Já a massa pobre da população se vinculava a esses grupos patronais-oligárquicos, através de laços do tipo “compadrio” e, por seu intermédio, com a sociedade política, como um todo. A lealdade pessoal, como um aspecto central do código de honra das pessoas consistia no laço cimentando tanto a relação interna aos grupos oligárquicos, como a da população subordinada a esses grupos.
A melhor descrição deste sistema – através, também, de um modelo mecânico – ainda é encontrada em Oliveira Vianna quando identifica diferentes tipos de “clãs” no sistema político brasileiro do começo do século: o “Clã de feudo” reunindo o fazendeiro, sua família e seus agregados. As famílias relacionadas da oligarquia local criam o “Clã parental”, as “camadas inferiores não têm solidariedade de classe nem parental.” Participam, como um todo do “clã eleitoral” , que congrega vários clãs parentais, que trazem de arrasto seus peões e agregados. A sociedade se constrói por relações pessoais de lealdade.
O processo de abandono de um modelo mecânico de direcionamento da história pela elite, corresponde ao próprio processo de transformação da sociedade em que a elite tradicional vai deixando de existir. A sociedade torna-se incapaz de produzir uma elite comprometida com uma comunidade construída localmente. Na medida em que a sociedade vai entrando em um estágio caótico, o mesmo acontece com a elite e com sua capacidade ou sua ilusão de controlar o destino da história do País.
A quebra do sistema político tradicional brasileiro passa pelo crescimento econômico e pela urbanização recentes, com acentuadas características de concentração urbana da população, concentração industrial no Centro-Sul e crescimento acelerado da classe média. Corre paralelamente ao processo de descomprometimento da elite com o destino nacional. Este último movimento tem dois aspectos.
O primeiro é a substituição da lealdade com os velhos clãs descritos por Oliveira Vianna por outras comunidades políticas. Devido ao treinamento em larga escala, especialmente nos Estados Unidos, e ao trabalho no exterior, setores importantes no interior da elite passam a dedicar sua lealdade a comunidades concretas situadas fora do País.
O segundo é a ideologia que legitima essa mudança de lealdade para essa nova comunidade política construída a partir de universidades, instituições internacionais e empresas multinacionais: o conceito de nação perde para as elites seu valor simbólico e afetivo. É substituído pelos conceitos de mercado de mercado econômico e “modernidade”.
2 – A Impossibilidade/possibilidade de explicação
A existência da situação caótica é claramente percebida por todos no Brasil.
O senso de responsabilidade aristocrático/ patrimonialista da elite, quanto ao país e ao povo, desapareceu depois de 20 anos de governo militar. O mesmo aconteceu ao conjunto de relacionamentos pessoais anterior, que incluiu grande sistema político brasileiro tradicional. laços de lealdade estavam sendo rompidos em todo lugar com exceção daqueles no interior dos pequenos grupos de tipo familiar que ainda representam forma básica de organização na sociedade brasileira.
Desde a crise econômica dos anos oitenta, o país tornou-se uma arena para lutas ferozes entre grupos dentro de cada uma das suas instituições. Os grupos lutam para manter suas posições numa conjuntura onde as oportunidades são cada vez menores. O colapso de lealdade interclasse torna o país um campo de batalha, de uma guerra civil não declarada, não política, mas de maneira nenhuma não violenta O velho problema político brasileiro de disparidades regionais agrava-se pela concentração cada vez maior de riqueza no sudeste e pelo colapso dos arranjos oligárquicos. Nos termos de Henry Maine, o princípio organizacional do status vai aos poucos desaparecendo, mas não é substituído pelo contrato. Triunfa a aleatoriedade, o Brasil passa a ser percebido como uma arena onde o destino é decidido pela sorte e pelo azar, em substituição ao progresso ordenado para um futuro luminoso. O Brasil, portanto, entrou em um período caótico de sua história
Os brasileiros perplexos com a situação se perguntam Por que é que o Brasil entrou neste período da sua história? Ninguém tem certeza da resposta, mas diversas hipóteses correm o País, como por exemplo:
1. Deus abandonou o Brasil contrariando a expressão tradicional que diz que “Deus é brasileiro”;
2. Os militares “roubaram a história brasileira”, isto é, tiraram-na do seu curso natural;
3. Inflação causada por diversas razões e recentemente as fórmulas encontradas para o seu controle.
4. Concentração excessiva da renda;
5. Dívida externa;
6. O povo é preguiçoso, não trabalha bastante;
7. Conspiração conduzida pela CIA;
8. Crescimento excessivo da população;
9. Elevados níveis de analfabetismo;
10. Políticos corruptos, especialmente o presidente e seus ministros.
11.Políticos corruptos, especialmente os Deputados e Senadores.
12. Fundo Monetário Internacional associado a banqueiros brasileiros;
13. Economistas no governo;
14. A falta de moral do povo: os brasileiros perderam a vergonha;
15. Mudanças culturais excessivamente rápidas;
16. Os brasileiros são manipulados pela mídia e não sabem votar;
17 O “jeitinho brasileiro”: o modo brasileiro de contornar todas as regras;
18. Os brasileiros tentam tirar vantagem de tudo;
19. Investimento no mercado financeiro, desviando o investimento em atividades produtivas;
20. Os brasileiros perderam os valores religiosos;
21.A cidadania não está bem estabelecida depois de décadas de ditadura;
22. O sistema judiciário não opera bem;
23. Oligopólios em toda parte;
24. O Presidente da República (Collor) era viciado em cocaína ;
25. O Presidente da República (Collor) era doente mental;
26. O Presidente da República (Fernando Henrique) está destruindo o estado e, por conseguinte, a nação.
27. Déficit público causado por um excesso de empregos públicos, vantagens previdenciárias e ineficiência do governo;
28. O programa de privatização das empresas estatais não está indo tão rápido quanto deveria;
29. O programa de privatização das empresas estatais está indo rápido em demasia e em amplitude demasiada.
30. O carnaval. Os brasileiros preferem dançar, beber e fazer sexo e não levam nada a sério;
31. O modelo de industrialização por substituição de importações chegou ao seu limite;
32. A colonização portuguesa que constrói sociedades onde a preguiça substitui o trabalho árduo.
Esta lista poderia ser estendida ad infinitum. É por si só um testemunho da desordem que reina no país. Não só refletem como contribuem para a desordem.
3. A sensibilidade às Condições Iniciais e as diferenças de escala.
O exemplo da “asa da borboleta” levando a furacões, tem sua grande metáfora sociológica no acidente afetando a história humana. A história está cheia de exemplos de situações limite como a das grandes batalhas, como Napoleão em Waterloo, por exemplo, e o fatal atraso de um de seus generais.
No caso brasileiro, um acontecimento recente foi a morte do Presidente eleito Tancredo Neves. O que aconteceria se tivesse Tancredo assumido o poder em lugar de José Sarney?
De um ponto de vista funcional/mecânico clássico nada teria acontecido, pois tanto um como outro indivíduo estaria desempenhando o mesmo papel atribuído pelo sistema político.
De um ponto de vista de modelos de indeterminação, entretanto, a diferença entre indivíduos é essencial, especialmente entre os que por ocuparem posições de poder e, que por isso, tenham condições de influenciar da forma mais direta a vida dos demais. As vontades, as percepções e as iniciativas e por sua vez, a “sorte” de cada um, isto é o acaso, assume uma grande importância.
O exemplo mais evidente neste sentido, é o da própria doença e morte de Tancredo Neves. Outro seria a vitória de Luis Inácio da Silva ou de Leonel Brizola na eleição de 1990. A derrota de Lula por um número mínimo de votos representou um fato crucial na recente história brasileira. O que aconteceria se Tancredo estivesse vivo ou se Lula tivesse vencido? É possível que cento milhões de brasileiros tenham tido, coletivamente, azar.
Este é um aspecto por definição, pouco útil para o processo explanatório tradicional, embora marque uma fundamental diferença metodológica ao enfatizar longas e detalhadas reconstruções históricas. Uma mudança de humor, ou uma doença, ou ainda, um único humilde soldado que não cumpra seu dever podem transformar o mundo. Por isto a maior parte dessas causas dos processos históricos e culturais permanecerão, para sempre, desconhecidas.
Assim, apenas supomos que a crise brasileira, em seu estado caótico, resulta do encontro e desencontro de uma miríade de decisões individuais e de acidentes envolvendo esses mesmos indivíduos.
III. Conclusões: Caos na cultura
Identifiquei quatro possibilidades de operação da metáfora matemática do caos em antropologia.
A primeira é o reconhecimento de que a desordem é um estado comum da vida social, que emerge quando um modelo prévio determinista se tome caótico. Este estudo do Brasil está enquadrado num modelo determinista da cultura tradicional. O modelo tomou-se caótico no momento em que se desfizeram os laços de lealdade que unificavam o país todo, amarrando as classes e, horizontalmente, as próprias oligarquias. Desapareceu a lei habitual baseada na reciprocidade; foi substituída pela aleatoriedade. A partir deste momento, o modelo determinista não opera mais e a aleatoriedade assume o controle.
Modelos deterministas têm sido o principal interesse das ciências sociais e os ingredientes usuais das ideologias nacionais. A idéia de um crescimento metódico é central para o processo brasileiro de construção da nação. O caminho determinista anterior – os brasileiros escreveram em sua bandeira as palavras “Ordem e Progresso” – desapareceu. O acaso teve um papel que toma a presente situação especialmente confusa- a morte, por exemplo, de um grande líder, o Presidente Tancredo Neves, que adoeceu no exato dia em que iria assumir o cargo, em 1985 foi “falta de sorte” em escala nacional. Embora os brasileiros façam especulações sobre a maneira pela qual se chegou à presente situação, não existe consenso (veja a lista acima).
A sociedade brasileira de hoje passa pela experiência do caos determinista de três modos diferentes:
1° – O sistema determinista anterior se tomou aleatório;
2° – A situação presente não pode ser adequadamente explicada;
3° – O acaso é evidentemente um fator significativo no presente e no futuro do país. Tudo pode acontecer, o que aliás é verdade, também, para a situação internacional, especialmente após o fim da União Soviética.
A segunda proposição que define a metáfora do caos na antropologia é a extrema sensibilidade de alguns tipos de fenômenos quanto a suas condições iniciais. Esta proposição é traduzida na antropologia pela influência de seres humanos individuais nos acontecimentos históricos. Muitas das situações associadas com o “fator de batimento das asas da borboleta” continuam despercebidos, por definição. Apesar disto, a desordem e a prevalência do acaso abrem urna possibilidade mais forte para o peso da influência do indivíduo na história
A terceira proposição para a metáfora do caos na antropologia é a analogia com sistemas de equações não-lineares (sistemas complexos): não têm solução mas podem produzir descrições eficientes de conjuntos de relações extremamente complicados. Da mesma forma, a situação brasileira atual, como percebida pelos brasileiros, não tem uma explicação clara, uma “solução”. Ela pode, contudo, ser descrita de maneira racional e sistemática.
Finalmente, o quarto aspecto trazido pela metáfora do “caos” é a consideração de níveis de escala na explicação. Níveis de escala diferentes, abrangendo da cultura nacional à instituições, pequenos grupos e indivíduos, passam a assumir papel central. No momento em que o modelo determinista prévio tornou-se caótico, houve uma mudança nas relações entre níveis de escala diferente, com a substituição de relações estruturadas pela por novas relações de ocorrência aleatória.
Espero que a idéia de caos possa ajudar a encontrar meios para lidar com a questão da incerteza de um ponto de vista metodológico em ciências sociais. A suposição da impossibilidade de uma explicação racional é substituída pela idéia de aleatoriedade e pela idéia de explicação a tal nível de detalhe que é impossível detectá-lo. Supõe-se que exista sempre uma explicação, mesmo quando não exista explicação alguma.
Logo, um terceiro nível, o da aleatoriedade pode ser adicionada às dicotomias clássicas, como status e contrato de Maine ou comunidade e sociedade de Weber.
Uma das condições que definem a aleatoriedade, a predominância da escolha individual, não foi inteiramente negligenciada em antropologia. Firth (1951), por exemplo, descreveu a “organização social” como o nível da escolha individual, em contraste à permanente e estável “estrutura social”. Situou-a, contudo, em uma posição periférica em seu esquema interpretativo. Além disto, a escolha individual é apenas uma das condições que definem a aleatoriedade. O simples acidente é outra Os acidentes podem tornar-se, às vezes, conhecidos, apenas através da análise histórica
A ênfase nas diferenças de escala, associando sociologia, antropologia, história e psicologia é outra característica da metáfora do “caos” compartilhada com algumas visões pós-modernas que desconsideram limites disciplinares. Por outro lado, a ênfase no trabalho-de-campo, no estilo de Malinowsky, continua a ser uma diferença importante face a essas mesmas formulações pós-modernas. De fato, algumas chegam a desconsiderar a importância do trabalho campo antropológico tradicional.
A metáfora do “caos” oferece urna alternativa às perspectivas que descartam a racionalidade. De um ponto de vista latino-americano [3] , a racionalidade continua a ser uma conquista altamente desejável para a sociedade. Por outro lado, todos os seres humanos devem ser considerados racionais: este é um aspecto essencial da sua humanidade. Desta forma, suas ações podem ser explicadas por meios racionais e a antropologia torna-se um meio para compreender o comportamento que, não fosse por isto, seria considerado irracional.
Um relativismo que faça algum sentido nas ciências sociais deve exprimir estas suposições.
[1] 1 – Leach, no seu artigo “Rethinking Anthropology” (“Repensando a antropologia”, l959),sugeriu o procedimento metodológico da “generalização”, pelo uso da metáfora matemática como um meio de substituir a “comparação” na antropologia social britânica, um procedimento que ele considerava similar a “coleção de borboletas”,. Esta foi uma proposta bastante desorientadora, pois a indução aristotélica através da comparação foi considerada, por milhares de anos, como a maneira certa de generalizar. Assim, a metáfora matemática trazida por Leachpar e a antropologia não substituiu “comparação” por “generalização” como ele presume. Era, antes, uma nova maneira de generalizar. Apesar disto, ele foi quase profético quando levantou a questão de analogia entre o setor específico da matemática conhecido como topologia e a sociedade humana. Topologia, uma criação do matemático francês Poincaré, é o primeiro passo histórico em direção só que hoje em dia tem sido o campo de sistemas dinâmicos na matemática, considerado como um ramo da perspectiva do caos.
[2] não a “modelos orgânicos”.
[3] Veja o filósofo mexicano Leopoldo Zea (1988) no seu “Discurso Desde a La Marginalizacion y la Barbarie “(1991). Para superar a nossa atual condição de “bárbaros”, um alvo necessário é a racionalidade.