Etnia e Construção da Nação no Pensamento Social Brasileiro

I – A Idéia de Uma Civilização Brasileira[i]

O argumento deste artigo é o de que a construção de uma civilização redentora é a proposta distintiva do pensamento social brasileiro e o principal marco da identidade nacional. A pedra de toque do pensamento brasileiro é a idéia da inevitável chegada de uma civilização nova, mestiça e original. Este é o seu fio condutor, quase uma obsessão, muito clara, desde o século passado e talvez desde muito antes. A crise de hoje é a crise desta idéia, que sempre funcionou como o motor do projeto nacional e das esperanças do país. Aparece como argumento para defender sua existência, algum dia, como nação. Com o tempo torna-se uma certeza, evidenciada pelo desenvolvimento econômico e em um dado momento, pela promessa de se implantar no Brasil uma sociedade socialista. A construção de Brasília é outro instante em que fica claro que há algo de novo e diferente nestas paragens. Dizem, algo melhor, alimentando a crescente megalomania nacional. Os militares mais tarde tentam se apossar desta idéia e a reinterpretam à sua maneira.

Esta idéia, de um ser social brasileiro inteiramente novo e bom, é partilhada por intelectuais e pelo povo da terra. Na sua versão popular, tem um profundo cunho religioso, respaldado por um passado de messianismo ibérico e indígena. Nas religiões brasileiras de hoje é central a idéia de uma civilização brasileira original, onde “serão superadas as barreiras de raça, classe e credo”.As ordens esotéricas, mas que aqui não têm como esconder sua inspiração africana, elevam o Brasil à “terra do evangelho” e profetizam que “Brasília será a capital do terceiro milênio.” Do lado católico, D.Bosco, santo italiano do século passado, vê “jorrar leite e mel e erguer-se uma nova civilização” entre os paralelos 15 e 20. Como Brasília foi construída no paralelo 16, ficaria confirmada a profecia. Brasília está rodeada por um complexo de ordens religiosas, seitas e grupos esotéricos, com cidades inteiras organizadas para a preparação do milênio, para a comunicação com discos voadores e para auxiliar os governantes, gerindo a nação no plano do “astral”. Sucessos e fracassos nacionais são compreendidos como verdadeiras batalhas travadas neste plano, não exatamente “sobrenatural”, pois possui uma existência concreta e natural, para os seguidores dessas seitas.

Nossa Senhora da Aparecida, santa negra que veio das águas, convive no pensamento popular com legiões de divindades africanas e indígenas, falanges de arcanjos e hostes de anjos da guarda, além de alguns milhões de pais de santo e donas de casa que rezam pelo Brasil afora, em terreiros e igrejas de bairro. Sem esquecer Nossa Senhora da Abadia, o menino do pastoreio ou o Padre Cícero. E a visão da igreja de hoje, prometendo um mundo melhor, utopia religiosa, herdeira dos jesuítas do Paraguai e dos Sete Povos das missões, onde, como nas profecias, “serão superadas as barreiras de credo, raça e classe”. Assim, com todo esse aparato, fica difícil de entender que as coisas passem tanto tempo sem dar certo, como na última e na presente década. A vida cotidiana cada vez mais se afasta da “visão do paraíso”, que neste século desenha a identidade brasileira. As conseqüências deste fato são imprevisíveis e muito mais sérias do que a crise econômica em si.

As idéias de uma sociedade nova em terras do Brasil, não foram simplesmente criadas por intelectuais e reinterpretadas pelo povo. Resultam de um constante processo de troca entre o povo brasileiro e sua elite. Ao mesmo tempo, os membros desta elite foram educados na ciência européia e norte-americana de seu tempo. Sua função era a de “intermediários culturais”, estabelecendo trocas entre esses dois mundos, como poderia dizer nosso saudoso Guillermo Bonfil, entre o “Brasil profundo” e o “Brasil superficial”. É muito provável, considerando-se as características históricas do messianismo brasileiro, que esta visão de paraíso eminente, seja muito forte e antiga na tradição nacional e que, em um primeiro movimento, tenha se filtrado da cultura tradicional para a das elites. A favor dessa hipótese, conta o passado do Brasil, pontilhado por movimentos messiânicos, associados a tentativas de se construir sociedades sagradas igualitárias.

II-A Idéia de Raça na Construção do Brasil ou “Quem sabe o Brasil pode existir”.

Os habitantes do arraial de Canudos, ex-prostitutas, vaqueiros, jagunços, ladrões e pobres em geral, afirmaram integralmente sua humanidade, como membros daquela comunidade mística. Continuavam pobres, mas não tanto, pois tinham casa, comida, respeito e participação na vida pública. Talvez uma boa palavra seja “cidadania”. Por isso sua desesperada resistência, vencendo formidáveis expedições militares e no fim, a escolha da morte em combate. A luta foi entre o arraial sertanejo e o Brasil, que mobilizou de tropas de infantaria da Amazônia até lanceiros gaúchos. No último momento, dois homens adultos, um velho e um menino enfrentando cinco mil soldados, que “rugiam” à sua frente, na descrição emocionada de Euclides de Cunha.

Não só a beleza da narrativa faz do livro de Euclides nosso maior épico, mas também sua qualidade de através de um drama real exprimir as grandes questões brasileiras. A primeira delas é a da etnicidade ([ii]). “O sertanejo é antes de tudo um forte”, diz Euclides impressionado com o seu valor na guerra. Heresia, pois só brancos europeus são os fortes da Antropologia racista dos finais do século passado. Delineia-se o desafio dos intelectuais brasileiros à ciência da época, o de “provar” que se pode construir estados nacionais com populações mestiças. Euclides considera o sertanejo como uma forma de mestiçagem que se “estabilizada” poderia originar uma futura “raça brasileira”. Uma repetição dos bandeirantes paulistas, também nascidos do cruzamento de índios com brancos. Este tipo é diferente dos “mulatos neurastênicos do litoral”, pois Euclides constrói a etnicidade brasileira através do jagunço e à custa do mulato. Às vezes parece querer dar um passo a mais, incorporando os brasileiros de origem africana a esta nova raça, como no episódio em que descreve a morte heróica de um negro defensor de Canudos.

Euclides procura mostrar que o Brasil é viável. Nações eram imaginadas por um critério étnico e Euclides encontra de forma “científica”, um tipo brasileiro, mestiço, moreno, o sertanejo, que se transforma em metáfora para a idéia de nação. Ao valorizar o mestiço de índios e colocar o sertanejo, como “tapuias mansos”, enfatiza o passado indígena, e contribui para resolver o dilema formulado por Bolívar no congresso de Angostura:

“No sabemos exactamente lo que somos. Qui no somos blancos, ni indios, ni negros, sino que nueva síntesis de todos ellos”.

Dilema que se repete nas obras de Vasconcelos, Ingenieros, Sarmiento, Andres Bello, Rodó, Marti, Dario e outros.

Euclides já havia explorado alguns problemas abrangentes que se repetem em diversos momentos no pensamento de intelectuais de outros países da América Latina ([iii]). Também o papel do povo pobre e humilde, e não o dos grandes homens como sujeitos da história, como era comum na sociologia do começo do século ([iv]). Enfatiza a maior liberdade e igualitarismo, entre os sertanejos, em contraste com os habitantes do litoral. Avança sobre outros aspetos que ainda hoje interessam aos estudiosos da cultura brasileira. Caso de sua análise do primado das relações pessoais sobre a lei e as instituições, que mais tarde Buarque de Holanda, e outros bem mais tarde, iriam explorar: Sua descrição de como o vaqueiro escrevia suas cartas, prestando contas e separando honestamente o seu e o do patrão ausente. De como se assinava, “do seu vaqueiro e amigo,” ou ainda, de como o soldado brasileiro combatia com um olho na luta e outro no seu chefe. Se este fraquejava todos fraquejavam, se avançava, todos o faziam. Em certos momentos, a refrega se travava em torno dos comandantes, os defensores de Canudos tentando matá-los, e os soldados desesperados defendendo-os, pois os perdendo, sabiam-se perdidos. Esta incursão no que mais tarde iria se chamar de “homem cordial” ou de “sociedade relacional” espelha o mais importante da obra de Euclides: a belíssima descrição dos fantásticos acontecimentos do sertão de Canudos. No drama da luta, a nacionalidade se exprimindo em uma etnografia de primeira grandeza.

“Os Sertões” foi uma obra publicada em 1902, 14 anos após o livro de Silvio Romero, “História da Literatura Brasileira”. Apesar de freqüentes mudanças de posição ao longo de seus livros e artigos, as conclusões finais de Romero, antecedem as de Euclides, no que concerne à possibilidade de uma futura raça mestiça brasileira. A maior diferença é que ela poderia surgir, não só reunindo os mestiços de índios e brancos, mas também negros. A verdadeira idéia do “melting pot”, total e abrangente.

Muitos outros brasileiros escreveram sobre as questões de raça e etnia ([v]). Uma copiosa retrospectiva pode ser encontrada em Skidmore (1974), por exemplo. Abundante mas mal usada, como veremos no capítulo seguinte.

Outro momento importante do desenvolvimento da idéia étnica de Brasil dá-se com Oliveira Vianna, um mulato, que na companhia de outro mulato, Nina Rodrigues, é considerado o paradigma do racismo brasileiro. O leitor de vez em quando se assusta ao tropeçar em trechos como este:

“Arianos são estes os que, de posse dos aparelhos de disciplina e de educação, dominam esta turba informe e pululante de mestiços inferiores, mantendo-a pela compressão social e jurídica dentro das normas da moral ariana, e a vão afeiçoando lentamente à mentalidade da raça branca”. (1982, 127, primeira publicação em 1939).

Para que o Brasil exista, o nacionalista Oliveira Vianna precisa estabelecer compromissos. Afinal o conde Gobineau desenvolve suas teses sobre a inferioridade racial dos mestiços e negros, a partir de sua experiência como diplomata francês no Rio de Janeiro. Vianna deixa escapar, que está trabalhando com um conceito de raça bem diferente do de Gobineau:

“Em regra, o que chamamos de mulato é o mulato inferior, incapaz de ascensão, degradado nas camadas mais baixas da sociedade, provindo do cruzamento do branco com o negro do tipo inferior. Mulatos há também superiores, mais próximos ao branco, arianos pelo caráter”. (op.cit, 121).

Onde a metáfora racial brasileira salta aos olhos em Oliveira Vianna, é no conceito de “Ariano moreno” (1991, 30). Da mesma maneira que Euclides prevê uma raça brasileira “estabilizada”, Vianna cria este genial “kitsch” do mundo dos conceitos, para viabilizar o Brasil e garantir sua futura grandeza. Assim nasce este “ariano modelado pelos trópicos”, de pele mais escura do que os demais “arianos”, não se sabe bem porque… “Branqueamento” e “morenização” são sinônimos neste racismo à brasileira. Para chegar ao “ariano moreno”, ao “embranquecimento”, Vianna apresenta tabelas estatísticas com a distribuição de “brancos”, “negros” e “mestiços”, demonstrativas de um “crescimento negativo da raça negra”. Tabelas análogas foram usadas em duas outras oportunidades por autores nacionais. A primeira foi quando Batista de Lacerda em 1912 tenta demonstrar que a população “negra” do Brasil cairia para zero até o ano de 2012. Outra quando Darcy Ribeiro (1970) procura mostrar que os mestiços dominarão numericamente a América Latina. Darcy, apesar de criticar o “branqueamento”, não deixa de repetir suas intenções ideológicas: Como o “branqueamento” do início do século era uma metáfora para a mestiçagem, o que faz é assumir explicitamente este último conceito, dispensando subterfúgios. Pode prever “nações de mestiços”, sem ocultá-las sob a metáfora do “branqueamento”.As tabelas de Batista de Lacerda, Oliveira Vianna, e Darcy Ribeiro, conferem ao conceito de “raça”, uma realidade objetiva, que de fato não possui. “Brancos” e “negros” são categorias raciais inventadas por grupos étnicos para se distinguir uns dos outros, da mesma maneira que outras construções culturais, como alimentos, roupas, ou emblemas de qualquer tipo.

Oliveira Vianna apesar do racismo, desenvolve algumas explicações sociológicas muito convincentes. O objetivo de seu livro “Populações Meridionais do Brasil” é o de “estabelecer a caracterização social do nosso povo…, de modo a ressaltar quanto somos distintos de outros povos”, isto é a própria identidade nacional brasileira. O papel que atribui ao latifúndio, de raiz das formações sociais e econômicas brasileiras, iria paradoxalmente, se repetir em análises marxistas, até para, nos anos 60, justificar a reforma agrária que nunca veio. Na sua interpretação, a auto-suficiência econômica do latifúndio simplifica a estrutura econômica do país, como um todo. Comércio e cidades são desnecessários. O isolamento dos latifúndios mata a solidariedade vicinal, mas reforça a vida de família. A elegância analítica desaparece quando compara a família fazendeira com a romana e idealiza as suas virtudes morais. Contrasta-a com a “plebe rural”, mestiça, onde o princípio dominante é o da “mancebia”, que relaciona com a “dissolução da autoridade paterna” ([vi]) e com as “falhas morais do baixo povo dos nossos campos”.

O discurso pomposo e enganador da excelência moral da família fazendeira ariana, some de repente, para reaparecer uma brilhante explicação da colonização do território brasileiro pelo latifúndio. Além das bandeiras de guerra, contra índios, havia as de colonização, quando latifúndios inteiros eram transplantados, com velhos, negros escravos e mulheres. A expansão do espaço político do país é explicada pela alta taxa de natalidade decorrente da família poligâmica, pelas grandes extensões de terra características dos latifúndios que se transplantavam, pela necessidade de se possuir terra, pelo regime pastoril que também requeria grandes glebas e devido aos campos abertos do interior que possibilitavam a expansão da pecuária. Convincente também sua identificação das unidades sociais emergentes do latifúndio, os diversos tipos de agregados familiares que denomina “clãs”. O mais simples seria o “Clã de feudo”.De um lado o fazendeiro oferecia proteção aos seus agregados e de outro, deles recebia lealdade até a morte. O “senhor não estava nunca sozinho: sempre tinha ao redor, sócios, amigos, camaradas, capangas”.Assim as lutas de famílias, que permeiam nossa história e o exemplo da guerra dos farrapos, onde os combatentes não sabiam por que lutavam, apenas o nome do chefe a que deviam fidelidade. Daí, a repetição da idéia da lealdade pessoal como valor supremo, repetindo a do soldado de Euclides com um olho em seu chefe e outro na luta. Este “Clã de feudo” era identificado com um único latifúndio, reunindo os donos da terra, seus escravos e peões.

Estas unidades sociais, os “clãs”, caracterizam-se por uma forte referência étnica. Assim o uso dos mamelucos como inimigos dos negros e dos mulatos, como “capitães do mato”. O desenvolvimento das forças armadas brasileiras é explicado etnicamente, como o de uma classe de mestiços. Nos “clãs”, unidades guerreiras, negros e índios também são elementos combatentes.

Enquanto as oligarquias locais formam o seu “Clã parental”, as “camadas inferiores não têm solidariedade de classe nem parental”.Vinculavam-se unicamente ao fazendeiro local (1982a, 156). Até hoje, a articulação das oligarquias, através do parentesco e a desunião dos peões, representa um nexo fundamental para se entender o sistema brasileiro de classes sociais.

Interessante também é sua visão do estado como aliado do povo para conter o arbítrio dos poderosos locais. Antecipa a problemática de um estamento burocrático, que mais tarde seria tema, por exemplo, do livro de Raymundo Faoro, “Os Donos do Poder”. ([vii])

III – As Idéias de Cultura, Sociedade e Etnia na Construção da Nação ou “O Brasil Já Existe, Apesar de Tudo”.

É humana e generosa a sociologia de outro brasileiro do início do século, Manuel Bomfim. Sua crítica ao uso de conceito de raça, é adequada, mesmo para a antropologia de hoje. Ao lê-lo sente-se como que qualquer coisa fora de tempo e de lugar, não fossem algumas informações e o estilo literário que o levam de volta ao Brasil do começo do século. Enquanto seus contemporâneos fazem verdadeiras acrobacias intelectuais para descobrir um “tipo racial” brasileiro, critica, em 1905, os conceitos de raça e mestiçagem, mostrando que existem apenas como ideologia de opressão, entre povos e classes. Valoriza a miscigenação e dá ênfase a aspetos políticos e culturais na explicação. Em um determinado momento em “O Brasil Nação (1931)”, ataca a política migratória vigente, defendendo ao invés, o apoio governamental aos negros, índios e mestiços brasileiros.

Original e notável é sua explicação para o fim da escravidão, que atribui aos poetas brasileiros. Dedica seu livro “O Brasil Nação” a “Castro Alves, voz comovida da revolução”. A poesia teria aproximado os brasileiros e revelado os grandes problemas nacionais. Acredita que “toda nacionalidade se afirma por cantos poéticos” e é convincente, na defesa da idéia de que a poesia teria mobilizado a população contra o regime escravista. Não esquece de conferir um papel determinante nesta mudança, aos próprios escravos, que fugindo, fundavam quilombos por todo o Brasil. Assim, aproxima-se de Euclides ao ver o povo como agente da história. Faz uma menção especial ao enorme quilombo de Cubatão próximo ao litoral de São Paulo. Também ao exército negando-se a destruí-lo e aos juízes a decidir contra a perseguição aos escravos fugidos.

Inverte a tradicional tese da atração dos homens portugueses e brasileiros por mulatas. Entende que o livre intercurso sexual entre o senhor e suas escravas repete-se entre a senhora e os moleques de casa. Desta maneira ataca a elite, através da moral da elite, que Oliveira Vianna entendia como superior e justificadora da estrutura de classes e de raças. E a golpeia no seu maior tabu, a honra de suas mulheres. Mais tarde, Gilberto Freyre discorda, em esclarecedor debate. Argumenta que o sexo entre o moleque e a sinhazinha seria impossível, pois as outras mulheres da casa, as mulatas, sobre ela exerciam uma constante vigilância por detrás dos tachos de doce. Para Freyre, a sinhá fazia sexo com as outras mulheres da casa, não com os meninos. O isolamento das mulheres nos haréns nacionais e o contacto físico entre elas, iniciado com o habitual cafuné, levariam a estas situações ([viii]). A crítica à moral da família fazendeira de Oliveira Vianna, foi um golpe contra um dos pilares do sistema tradicional de classes sociais – a noção da superioridade moral dos ricos.

A metodologia de Bomfim coloca a história como uma “construção social”, interna a um sistema de poder. Assume que a sua própria versão da história não responde a uma “realidade objetiva”, ao contrário de Marx, por exemplo, que chama de “ideologia”, a história escrita pelos outros e de ciência, verdade absoluta, a história que ele, Marx, escreve. Partindo da premissa, de que a história do Brasil foi de certa forma “roubada” pelos poderosos, Bomfim propõe-se a reescrevê-la. Não separa o nacionalismo econômico do nacionalismo cultural. Não “desmonta” a nação, pela alienação de seus símbolos e passado, para algum dia refazê-la, fórmula mais tarde seguida por alguns marxistas brasileiros. Erro evidente, quando a população na campanha de 1985 das “diretas já,” pelo fim da ditadura, transforma as ruas em um mar de bandeiras verde e amarelas. Pelo contrário, propõe-se a entendê-la através do conceito de “tradição”. Acha que no “Brasil teria se estabelecido a primeira civilização americana local”, o que não impede que considere a elite brasileira, a “pior do mundo” (1931,28) – camada parasita da nação, que teria como princípios, a “conciliação”, expressão que denota a corrupção política pela partilha de cargos e privilégios ([ix]) e “a ordem”, que representa a desconfiança e oposição a qualquer idéia nova ([x]). O Brasil no seu modo de ver, não é esta elite, de origem portuguesa, mas o povo brasileiro, mestiço, que, considera “pacífico e dúctil”, “ordeiro “e dono de uma” tranqüila bondade”.

Bomfim lamenta o isolamento do império escravocrata entre as repúblicas americanas. Em um dado momento propõe o fim dos exércitos e a criação de uma milícia popular para autodefesa conjunta de todos os países da América Latina. O Brasil do povo brasileiro, não de suas elites, “teria defendido a América” das invasões holandesas, francesas e inglesas. Em plena década de 30, tempo em que o nacionalismo se afirma pela truculência das nações, foi o primeiro a denunciar publicamente a guerra do Paraguai, “nefando crime cometido contra a humanidade e a América.” Envergonha-se do genocídio realizado contra a população daquele país.

Bomfim, quase esquecido, só agora vem sendo redescoberto. Sua obra não teve repercussão, como as de Silvio Romero, de Euclides da Cunha, Oliveira Vianna ou Gilberto Freyre. Talvez a melhor explicação para isto seja a de Vamireh Chacon, de que “estaria avançado demais para o seu tempo ([xi]).” Talvez tenha sido seu estilo literário, por vezes pesado. Para o leitor do final do século Manuel Bomfim traz à memória, as mesmas palavras que uma vez dirigiu a Castro Alves, “voz comovida da revolução.”.

Uma radical mudança na maneira dos brasileiros se verem dá-se com a publicação de Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre, em 1933, que logo se transformaria em clássico maior da nossa literatura social. A Freyre deve-se a substituição do conceito de “raça” pelo de “cultura”, na imagem que os brasileiros fazem de si mesmos. A linha mestra do pensamento social brasileiro até então, a da especificidade de uma nova civilização tropical, não só é mantida como enfatizada. Com o abandono de “raça”, fica muito mais fácil “construir-se a nação dos mestiços”. Assim:

“De qualquer modo, o certo é que os portugueses triunfaram onde outros europeus falharam: de formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com características nacionais e qualidade de permanência.” (1943,95)

Apesar da opção pelo conceito de “cultura”, vez e outra usa expressões como “raça adiantada”, referindo-se ao português, ou “raça atrasada”, referindo-se ao índio (op.cit. 179). Chama os índios de “quase bandos de crianças grandes”, dotados de “sexualidade exaltada.” Acha quase desaparecida, a contribuição do indígena para a cultura brasileira, com exceção do que restou na alimentação e na religião. Já o negro considera, sob muitos aspetos “superior” ao português, mas prefere-o como escravo. Evita a genética, aproximando-se do “racismo social” da cultura brasileira que estuda. Em um dado momento chega a lamentar o fim da escravidão ([xii]). Dentre as contribuições do negro, ressalta o clichê da “ternura” (op.cit, 441). A explicação sobre as influências étnicas na formação portuguesa é também eivada de estereótipos sobre o “caráter nacional” português, e as influências judia e árabe.

Considera o português “menos cruel” do que os demais colonizadores. Compara a política portuguesa de aproveitamento da mulher índia, “para a formação da família,” com a de virtual extermínio seguida pelos ingleses e supostamente pelos espanhóis, com o que estes últimos não concordam ([xiii]). Percebe atenuantes na escravidão brasileira, devido ao batismo de escravos e sua incorporação na vida religiosa, além da própria miscigenação. Este ponto de vista, seria posteriormente incorporado por autores como Frank Tannembaum (1946),por exemplo.

Tais posições não chegam a comprometer o impacto revolucionário de “Casa Grande e Senzala”. Afinal Oliveira Vianna, na mesma década de 30 falava em “raça ariana”. Além da renovação de conceitos, outro aspeto importantíssimo na obra de Freyre são seus “insights”, alguns próximos a genialidade. Isola dois fatores fundamentais condicionando as “relações raciais” no Brasil: a monocultura latifundiária e a escassez de mulheres brancas (1943, 19). A posição intermediária de Portugal entre a Europa e a África, e a decorrente experiência de interação com africanos e árabes em Portugal, em muito teria contribuído para a miscigenação em terras brasileiras, força a corrigir a distância social entre brancos, negros e índios. Outra idéia importante de Freyre é a das semelhanças dos sistemas de “plantation” nas Américas, e das formações sociais a ele relacionadas. Assim, o nordeste do Brasil não seria muito diferente do sul dos Estados Unidos, por exemplo.

A bem conhecida tese central de Freyre é a do papel da família patriarcal como unidade básica da organização social brasileira ([xiv]). A antropologia não pode discutir o Brasil, sem discutir família e não pode discutir a família sem discutir Gilberto Freyre. Algumas de suas idéias como a do “sadomasoquismo” associada à escravidão e à família patriarcal são também bem interessantes, no entendimento não só das relações de classe, como também nas relações entre pais e filhos, homens e mulheres. Daí sua descrição da mulher brasileira “gritando ordens.” Assim também sua idéia de uma forte sensualidade resultando da escravidão e da família patriarcal, levando à miscigenação, dentre outras conseqüências. Lembra a preocupação dos intelectuais do século passado com a educação dos brasileiros “prejudicada pela escravidão”. As crianças brancas interagiam com os escravos, grandes e pequenos e aprendiam a submissão e a frouxa moral sexual (1943 560). Esta discussão da licenciosidade associada à escravidão, como foi visto, desmistifica a idéia da sacrossanta família aristocrata rural de Oliveira Vianna ([xv]).

Gilberto Freyre inova metodologicamente. A posição da casa-grande como microcosmo da sociedade, representa um novo modelo sociológico. Sua liberdade no escrever e no criar, sem preocupações “científicas”, dele faz um autor notavelmente atual. Sua obra sempre retorna à tecla da especificidade de uma civilização brasileira nos trópicos. Dois dos seus livros, Casa Grande e Senzala e Sobrados e Mocambos, iriam marcar definitivamente o pensamento social brasileiro.

Os poetas românticos do século passado encontram um índio idealizado para representar o Brasil. Silvio Romero e Gilberto Freyre diminuem a influência indígena e procuram enfatizar a herança conjunta portuguesa e negra. Euclides da Cunha e Manuel Bomfim decidem-se pelo índio associado ao português para marcar a identidade brasileira. Oliveira Vianna enfatiza apenas a influência portuguesa, européia, em um novo ambiente geográfico e social. Buarque de Holanda, na mesma linha, também entende o Brasil como a tentativa de implantação da cultura européia em uma região tropical (·). Considera os iberos extremamente individualistas, valorizando os valores de autonomia e a independência, livre arbítrio e a personalidade individual. Logo a necessidade de governos fortes para controlarem o seu individualismo cego. Daí a necessidade de um Franco, um Salazar ou do “estado novo” no Brasil. Assim também a pouca disposição ibérica para o trabalho e no caso português seu “espírito de aventura.” Essas listas de traços do “caráter nacional” repetem e adicionam novos elementos a estereótipos que se encontram em Freyre ou até em Bomfim.

Repete também a tese de Freyre ([xvi]) de que os portugueses já chegaram ao Brasil mestiços, e lembra que Lisboa tinha em 1541, 1/5 da população de negros. Em Portugal haveria uma discriminação maior contra o trabalho servil do que contra a raça. Acha, portanto, que a mestiçagem representou fator fundamental para a criação de uma “pátria nova”, algo que os holandeses não teriam conseguido. A cultura é, porém, essencialmente ibérica. Depois de identificar o que considera os traços comuns a todos os iberos, separa os portugueses dos espanhóis, nas mesmas linhas seguidas por Freyre (op.cit). A “plasticidade social” e “falta de orgulho de raça” dos portugueses seria maior do que a dos espanhóis. Associa o espanhol à figura do “ladrilhador,” cuidadoso, com as suas cidades americanas, bem planejadas e de ruas retas. O português seria mais relaxado (o “semeador”), com suas cidades americanas crescendo de acordo com a geografia e com o acidente histórico.

Também aceita a tese da família patriarcal, mas não a entende como um resultado da “plantation”. A família, do velho direito romano, teria sobrevivido na península ibérica, associada à escravidão e à autoridade indisputada do “pater familiae”. A família, no Brasil colônia, povoado por iberos anárquicos, seria o único setor onde podia ser encontrada uma “idéia mais normal de poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão social”.(op.cit. 50). O individualismo ibérico levaria à incapacidade de associação duradoura, que Oliveira Vianna já tinha também relacionado inversamente com a força dos laços de parentesco. Pela importância dos laços familiares, explica a “invasão do público pelo privado” (1988, 105), a transferência para o âmbito do estado das relações características da família. Daí o uso dos conceitos weberianos de “funcionário patrimonial” e “burocrata”, com o quais mais tarde Willems (1975), Faoro (1987), e outros iriam trabalhar ([xvii]), e que são hoje, referencial básico para o estudo do estado no Brasil. Esta formulação é consistente com a brilhante idéia do “homem cordial”: as relações internas da família, os padrões de convívio rural seriam transferidos para o ambiente urbano. A relação pessoal e afetiva levando à intimidade, à informalidade, seria a única conhecida na cultura brasileira ([xviii]). Daí o uso de diminutivos na maneira de chamar os amigos. Daí a intimidade até com os santos na capela doméstica. O primado das relações pessoais sobre a lei impessoal representa hoje ainda, um dos pontos centrais da Antropologia brasileira, especialmente se considerado o conceito de “sociedade relacional”, de Roberto da Mata.

Buarque de Holanda não tem a genialidade literária de um Euclides, ou o brilho de Gilberto Freyre, mas de todos os autores que no início do século constroem a identidade brasileira, é intelectualmente o mais sofisticado. Sem a grosseria da tese racial de Oliveira Vianna, monta um quadro em que o essencial é a etnicidade européia, branca, na construção da identidade brasileira. Mais tarde, em outras obras menos “ensaísticas”, procuraria enfatizar também o papel do indígena na formação da nacionalidade (Cf1986). Assim explora a idéia de que a causa da expansão territorial para Oeste teria sido a miscigenação do português com o indígena, que daria aos brasileiros uma capacidade de adaptação muito grande ([xix]).

IV-A “Transformação da Realidade” ou a (quase) Chegada do Milênio.

Uma nova etapa no desenvolvimento da idéia de Brasil iria surgir, em 1933, com a publicação do livro de Caio Prado, Evolução Política do Brasil, a primeira grande obra marxista, exprimindo uma visão global do país. Prado abandona os conceitos de raça e cultura, mas mantém a linha mestra de “construção da nação.” Não escapa inteiramente a algumas generalizações típicas da época que escreve e que iriam se tornar parte do discurso rotineiro sobre Brasil. Assim, como Buarque de Holanda, distingue os pioneiros norte-americanos, acompanhados de suas famílias, dos “aventureiros” portugueses. Afirma como Gilberto Freyre, e todos os demais autores de seu tempo, que no Brasil teria se formado uma sociedade “inteiramente original nos trópicos” (1933, 93). Sua análise da expansão das fazendas de gado e da colonização, curiosamente lembra a de Oliveira Vianna, situado no outro extremo do espetro político. Percebe, como Manuel Bomfim, um “latente espírito de revolta na massa escrava.” A análise é marxista, mas não uma crítica radical ao passado brasileiro ou ao Brasil nas “suas tradições.”

A partir dos anos 50, inicia-se uma nova fase da vida intelectual do Brasil apoiada em diversas versões e aproximações ao marxismo. A sociologia e a economia fornecem as bases ideológicas para o novo nacionalismo, não mais referenciado pelos conceitos de raça ou de cultura. O problema deixa de ser o da demonstração da viabilidade do Brasil, através da manipulação do conceito de raça. Não mais o “existe apesar de tudo” como uma forma de cultura original, adaptada ao meio hostil. O novo desafio é o “existe sim e vamos fazê-lo grande e justo.” Para alguns, grande, para que pudesse enfrentar a oposição dos chamados “interesses imperialistas.” Para outros, grande, por pura mania de grandeza. Em um ou outro caso, é imperativo meter mãos à obra ou, no dizer da época, “transformar a realidade.” A nova identidade é construída pela noção da eminente chegada do “milênio” político. Representa uma ruptura, mas dentro de um processo maior de continuidade, conferida pela crença fundamental na construção de uma sociedade original no Brasil. Assim em um nível mais geral há uma sucessão lógica entre as primeiras doutrinas do início do século e as teorias políticas e econômicas do meio do século.

Começa um novo momento da identidade nacional, associada à arquitetura, principalmente sob o impacto da construção de Brasília. A cidade é um monumento, uma evidência concreta da verdade das promessas contidas no pensamento popular e dos intelectuais sobre a nação. Lança-se mão da economia e da sociologia marxistas ou influenciadas pelo marxismo. Aparecem movimentos com matizes diversos, enfatizando o nacionalismo econômico e político, como a economia cepalina, ou como a “teoria sociológica da dependência”. Por eles, o Brasil volta a se construir como “América Latina”. Um dos maiores símbolos intelectuais desta época é Celso Furtado, vindo da CEPAL, que através de sua obra “Formação Econômica do Brasil”, consegue fundir história econômica, sociologia e economia, como instrumentos analíticos e como guias para ação política. No Rio de Janeiro aparece a sociologia nacionalista do ISEB e em São Paulo, a escola sociológica sob a liderança de Florestan Fernandes, que se desenvolve através de uma linha de trabalho sobre “relações raciais.” Tema estratégico, pois a “civilização brasileira” de então, apoia-se na idéia da “democracia racial.” Na visão de autores como Gilberto Freyre, nossa pobreza econômica é sobejamente compensada por um sistema de relações pessoais mais humano. Os estudos dos sociólogos paulistas evidenciam a existência de fortes atitudes contra negros no Brasil, e que estas atitudes permanecem dormentes, em conseqüência das “relações patriarcais,” ainda em operação nos sistemas de classes estudado (Fernandes, 1965). Esta é também uma boa explicação para o preconceito mais forte no sul do país, onde o capitalismo é mais desenvolvido. O recurso analítico ao patriarcalismo demonstra não a oposição cristalina, mas toda uma faixa cinzenta de ambigüidades, posições intermediárias e concordâncias entre autores politicamente tão aparte como Fernandes e Freyre.

Dante Moreira Leite (1965), situa na obra de Caio Prado a linha divisória entre os autores que trabalham com “a ideologia do caráter nacional” e os que a superam, agora encontrando “a realidade”, com o marxismo fornecendo as bases, não mais “ideológicas”, mas “teóricas” para o novo nacionalismo. Seu próprio trabalho é parte desse movimento, em que explicações culturais são substituídas por outras de caráter sociológico e econômico. Critica os estudos étnicos, como produtores de uma nova forma de racismo. De fato, tanto Gilberto Freyre, como Buarque de Holanda, usam estereótipos eternos e estigmatizadores associados ao caráter nacional, como, por exemplo, as referências à “nossa preguiça”, ou ao “aventureirismo português”. Alguns aspetos identificados por esses autores, entretanto, a saber, a importância do parentesco e a predominância das relações pessoais são, ainda hoje, absolutamente indispensáveis para a compreensão do Brasil. Assim como a linguagem, certos elementos da cultura podem atingir uma grande continuidade no tempo, medida por séculos ou milênios.

Após as últimas formulações da “Escola de São Paulo”, desaparecem as contribuições sociológicas voltadas ao Brasil como um todo. As Ciências Sociais têm desde então participado da construção de identidades fragmentadas, de negros, índios, mulheres, trabalhadores e outros grupos. A idéia de Brasil não é mais trabalhada, a não ser por uns poucos. Abandona-se um problema cuja resposta não está na pura e simples militância política, e o espaço vazio é invadido: Associada à ditadura militar, vem a Geopolítica, a tentativa se associar o conceito de nação com a do poder do estado sobre o indivíduo e sobre as demais nações. A Ciência Econômica, a outra face da ideologia do estado autoritário, toma um papel desconhecido na maior parte dos países do mundo. É hoje, no Brasil, o grande instrumento legitimador das desigualdades sociais e até da violência, sob a asséptica capa de “eficiência técnica.” Aparecem revisões da cultura brasileira, enquanto “ideologia,” em uma fantástica misturada, como no livro de Carlos Guilherme Mota, que em algumas páginas absolve ou condena, em julgamento político, da música popular, ao teatro, passando por toda a literatura social do país.

O capítulo seguinte é o dos brasilianistas. Muita crítica política, bem-vinda na época da ditadura, mas freqüentemente misturada à destruição de valores centrais da cultura brasileira. O ataque à própria viabilidade da nação, ou como diriam os ensaístas do começo do século, à “alma da nação.” Incontáveis pesquisadores estrangeiros deram uma importantíssima contribuição ao Brasil, especialmente os que conseguiram relativizar, por metodologia, seus próprios valores e atitudes. Há, porém, os que pelo exagero do exótico, do folclórico, do violento, ou pela simples incapacidade de compreender o Brasil, atacam tais valores para realçar a superioridade de seu próprio país (·). Por razões como essas, é muito sério que versões mais recentes da história do Brasil tenham sido produzidas no exterior e que alguns estudiosos brasileiros percebam os brasilianistas, não como colegas, mas como uma espécie de “heróis culturais” ([xx])([xxi]). Aqui, porém não se está falando de “pensamento social brasileiro”, mas de “pensamento sobre o Brasil”.

O pensamento social brasileiro foi, ao longo do século, usando conceitos crescentemente adequados e eficazes para a construção ideológica da nação, apoiada em um projeto de futuro: Das dificuldades do conceito de raça, ao orgulho da idéia de cultura brasileira, e por fim, à ação política associada aos conceitos “econômicos e sociais”. Há uma ruptura com a ditadura militar, mas, pela apropriação da idéia de desenvolvimento econômico, não deixa de haver uma continuidade com o pensamento que a precede. A noção brasileira da utopia necessária contrasta com a de outros países, como o México, onde a idéia de nação se associa com o passado e o presente indígenas, ou com a maior parte dos países europeus, onde a construção de um passado histórico define a identidade nacional. É também diferente dos Estados Unidos em que o “destino manifesto”, expresso na grandeza americana do presente, os distinguem dos demais países. O problema com um modelo de nação baseado em uma prometida utopia é o de que a situação social tem que apresentar evidências continuadas de que este futuro está inexoravelmente se aproximando, mesmo que de fato nunca chegue. O desenvolvimento econômico manteve por um tempo, acesa a idéia de que as pessoas se alimentariam melhor, teriam melhores casas, escolas e hospitais e de que no Brasil iria se fundar uma nova civilização onde “seriam superadas as barreiras de classe, raça e credo,” conforme as profecias dos místicos e o pensamento dos intelectuais. Esse sonho, entretanto cada vez mais se distancia da vida das pessoas. Encerra-se mais uma década amarga de empobrecimento e de desorganização do organismo político e inicia-se outra, na mesma direção.

Pode ser a hora de aliar o conceito de cultura a aspetos políticos e econômicos, de voltar a provar a viabilidade do Brasil. Não mais pelo desenho de uma identidade una, mas pela invenção de uma sociedade que reconheça a multiplicidade de modos de vida dos tempos atuais. Talvez o caminho seja o apontado por Manuel Bomfim, quando separa o “Brasil na História”, do “Brasil Nação.” A nação é do povo brasileiro, de seus poetas, da sua arte, de seus valores de solidariedade e sua alegria. A história foi roubada pela elite. O povo a terá de volta algum dia.

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[i] Uma primeira versão deste artigo foi publicada em 1996, em Etnia e Nação na América Latina, George Zarur, ed.

[ii]-Em Canudos havia um bairro inteiro formado pelos índios Kariri hoje em Mirandela, e que visitei em 1976. Como seus antepassados de Canudos são monarquistas e acham que a figura mitológica de D. Pedro II reina em Brasília. Ainda guardam com afeto a memória de Antônio Conselheiro.

[iii]-No “Facundo” de Sarmiento, por exemplo, a oposição interior-litoral também explorada por Euclides, mais do que nunca se faz presente.

[iv]-Ver Brandão (1982)

[v]– Este trabalho discutirá apenas aqueles autores que marcaram da maneira mais forte o pensamento nacional e que tiveram suas idéias aceitas e transferidas para a sociedade. Nao pretende uma análise exaustiva do assunto.

[vi]-A idéia da “dissolução da autoridade paterna” foi muitos anos depois usada por um congressista norte-americano, Patrick Moynihan para explicar a pobreza dos negros norte-americanos.

[vii]– “… o grande programa seguido invariavelmente pelos construtores de nosso poder central…..enfraquecer por todos os meios a aristocracia territorial.” (1982a, 209)

[viii]-Freyre, 1943, 542.

[ix]-“Despudorados, bestiais……os oligarcas constituídos em federação, despejaram-se no mais ostensivo domínio. O estado é deles, dos filhos, dos genros, e cunhados e primos (1931, 268)

[x]-“Nao podem compreender que haja ordem, isto é, disciplina social em atividades livres….Como esperar que em tal ideologia haja lugar para a legitimidade das mutações a que eles chamam de desordem.”(1931b, 214).É fantástico como esses dois princípios ideológicos persistem como basilares no entendimento da política nacional.

[xi]-Susskind e Ventura (in Bomfim, 1984) argumentam que a razão para a pouca disseminação da obra de Bomfim teria sido o fato de não ter dado o passo da metáfora (do parasitismo), para o “modelo.” Faz mais sentido a explicação de Chacon (in Bomfim, op.cit.,21).

[xii]-“Desfeito em 88 o patriarcalismo que até então amparou os escravos, alimentou-os com certa largueza, socorreu-os na velhice e na doença, proporcionou-lhes aos filhos oportunidades de acesso social. O escravo foi substituído pelo pária da usina; a senzala pelo mocambo; o senhor de engenho pelo usineiro ou pelo capitalista ausente.”(1943, 43)

[xiii]-Os espanhóis, contrastando sua colonização na América com a inglesa, como os portugueses, também se representam como paradigmas de bondade (ver Zea, 1998, 13)

[xiv]-A idéia do patriarcalismo brasileiro precede a Freyre. Tomemos por exemplo Taunay. Na “Retirada da Laguna”, o filho do guia Lopes, sabendo que o seu pai errara a direção a tomar, não o corrige, pois isso implicaria em faltar ao respeito com o seu pai. Inocência é uma belíssima peça sobre o patriarcalismo e sua violência. Porém a colocação do patriarcalismo em seu lugar sociológico para a construção de Brasil coube a Gilberto Freyre.

[xv]-Sobrados e Mocambos, seu outro grande livro, estuda a família patriarcal no ambiente urbano, a oposição entre a casa e a rua, o público e o privado e a função de grandes rituais nacionais, como procissões e o próprio carnaval integrando a sociedade, e diferentes classes e setores sociais, que outros mais tarde iriam explorar. Aqui reforma a tese da associação da família patriarcal com plantation, pois encontra-a em todo o território brasileiro, incluindo as vastas regiões de criação de gado do interior, até o Rio Grande do Sul, onde não havia a monocultura apoiada no trabalho escravo.

[xvi]-Não cita. É notável que Freyre, Vianna e Buarque de Holanda publicando ao mesmo tempo durante os anos 30 não se citem. Buarque de Holanda publicou seu livro “Raízes do Brasil” em uma coleção coordenada por Freyre

[xvii]-Eu mesmo utilizei este conceito para analisar a burocracia brasileira, muito na linha de Buarque de Holanda (Zarur, 1990)

[xviii]-Ver a noção de “sociedade relacional” de Roberto da Mata (1985).

[xix]-Nao teria como razão uma política deliberada do estado português, mas além da citada miscegenação, também o desinteresse da coroa espanhola pelas terras pobres do oeste.

[xx]-Vem a lembrança uma literatura juvenil que criava heróis. Então “Os Cientistas”, “Os Navegadores” e os “Exploradores.” Agora “Os Brasilianistas.”

[xxi]-Quando estudava para meu doutorado nos Estados Unidos, concluído em 1975, sob a orientação de Charles Wagley, este tipo de literatura já estava em moda. Para não participar deste movimento, escrevi minha tese de doutorado sobre uma comunidade norte-americana. Meu livro “Os Pescadores do Golfo” foi publicado no Brasil em 1984.