“Cores de Almodovar, cores de Frida Khalo”
(da música de Adriana Calcagnoto)
Cores de Miró!
Gaiola de Pássaros – Querétaro
Chego de um circuito por cidades coloniais do México. Andar pelo México colonial é, em si, uma “viagem” alucinógena. A cor, a luz e a sombra inebriam como o mescalito dos Ensinamentos de Don Juan, de Carlos Castañeda.
A volta completa pelas cidades coloniais inclui Querétaro, São Miguel Allende, Guanajuato, Puebla, Zacatecas, Guadalajara, Morélia e Patzcuaro. As quatro últimas ficaram de fora. Zacatecas fica ao Norte, perto da região onde narcotraficantes espalham terror e chovia nas outras.
O México está em pânico, embora a zona central ainda continue razoavelmente segura. Mesmo assim recebemos conselhos de nunca parar na estrada para tirar fotos ou fazer xixi. Fazer xixi só usando “la casseta” (escreve-se “caseta”, em espanhol). Achei óbvia e desnecessária a recomendação até descobrir que “caseta” (diminutivo de casa) é o nome espanhol para o Box do pedágio nas estradas federais, onde normalmente existe um banheiro. Lembrei-me de outra surpresa linguística, desta vez no Equador, quando a gentil anfitriã me convidou a entrar em um micro-ônibus. Ônibus é “bus” em espanhol e o diminutivo de “bus”, imaginem qual é!
Vista de San Miguel Allende
A viagem, naturalmente, começou na Cidade do México, com uma visita ao Zócalo, a praça coração político e simbólico do País. Lá estão a catedral, a maior igreja das Américas, o Palácio do Governo e as ruínas do “Templo Maior” dos Astecas. A igreja é enorme, mas já vi mais bonitas. O centro antigo da Cidade do México tem alguns edifícios fascinantes, mas o Zócalo é interessante e feio. É todo cinzento, mesmo nos poluídos dias de sol. A praça fica cheia de toldos, cercas e obras diversas.
O ponto alto é o Templo Maior, aonde os sacerdotes de Tenochtitlán executavam sacrifícios humanos para alimentar os Deuses e manter a natureza em operação. O Museu do Templo é soberbo exemplo de boa arquitetura e técnica expositiva. O acervo é fantástico. O único problema é a passagem demasiadamente súbita do sereno passado ao ruidoso presente. A saída do Museu se dá por uma rua de traz do Palácio Nacional, onde milhares (sem exagero) de camelôs gritam a plenos pulmões. Uma guarda ensinou aos dois turistas bobos que nunca deveriam se afastar mais do que algumas centenas de metros do Palácio Nacional, devido aos assaltos. Gentilmente, acompanhou-nos por um pequeno trajeto, como para mostrar à massa humana que estávamos sob sua proteção.
É por essa mesma rua que se entra no Palácio Nacional. Após atravessar scanners e raios-x como nos aeroportos, fomos formados em linhas de três por uma participante da polícia federal armada até os dentes, com um uniforme preto que lembrava o da Guardia Civil Caminera de Lorca. Pensei: “estou perdido!”. Jovem, mas possuidora de todos os requisitos para a patente de sargento, urrava como tal, posicionou-nos em diferentes formações, mandando avançar dois metros ou recuar meio, para assistirmos a longo vídeo de exaltação cívica sobre os 200 anos da independência mexicana. Escapamos quando marchávamos em ordem unida para uma segunda sala. Chamei minha mulher e dirigi-me a um guarda com feições mais humanas, a quem expliquei que estávamos cansados e que só queríamos ver os murais de Diego Rivera que decoram o prédio. Bondosamente permitiu que abandonássemos a formação, mas, por infelicidade, caímos em intermináveis filas para visita aos aposentos presidenciais. Vigiados por guardas pesadamente armados e tristemente exaustos reconhecemos ser a fuga impossível. No teto do antigo parlamento, uma dependência do Palácio, um enorme olho maçônico nos mirava espantado.
No centro da cidade, outro destaque vai para o maravilhoso Palácio das Artes. O edifício abriga obras monumentais dos grandes muralistas mexicanos. Aí está também a obra que Diego Rivera fez em vingança a Nelson Rockfeller que mandou destruir um mural de sua autoria em Nova York. Também não se deve perder uma visita à loja de artesanato Fonarte, a mais central, que reúne objetos lindíssimos. O mercado de artesanato Cidadela é, também, de interesse.
Guanajuato – bonecos artesanais de rua – representação da diversidade do povo mexicano
O ideal na cidade do México, como em outros lugares, é ficar no centro. No Paseo de La Reforma, elegante e bonita avenida, estão alguns dos melhores hotéis, inclusive o Four Seasons, considerado o melhor hotel do México e o nono do mundo. Fica a sugestão de ficar hospedado nesse hotel por alguns dias, aproveitando a valorização da moeda brasileira. O prédio é belíssimo, sem ostentação e o serviço fantástico.
Por falar em valorização do Real, nunca tive, antes na vida, a sensação de ter dinheiro para gastar, o que veio a acontecer no México. Três reais é o preço de um razoável percurso de taxi. Um real de gorjeta e o motorista fica surpreso com a generosidade. A riqueza dos turistas brasileiros no Exterior não deve durar muito e espero que não dure, pois o câmbio valorizado está a arrasar o patrimônio industrial que custou sangue, suor e lágrimas a gerações. Prefiro me hospedar em humilde pousada em um canto qualquer do Brasil do que assistir à estúpida política em curso, que troca o emprego pela bolsa família e empobrece o País de nossos filhos e netos.
O Paseo de La Reforma tem uma quantidade enorme de estátuas, o que, por sinal se repete pelo México afora. Nem na França, famosa pelo quesito, vi tanta estátua.
Guanajuato: A cruz e a estátua
O discurso da nação mexicana é fortíssimo. Está inscrito na celebração histórica e em monumentos diversos. Faz sentido: a perda de mais da metade do território para os Estados Unidos é muito ressentida, bem como o tratamento brutal dos 600.000 mexicanos desesperados que todo ano entram ilegalmente em busca de trabalho na terra que lhes foi tomada. A própria vizinhança cultural com os Estados Unidos ameaça constantemente o México. Para continuar existindo, o México tem que afirmar sua identidade a cada instante, o que faz com muito sucesso, a partir de sua língua, religião, culinária, estrutura de família e de tudo o mais. Os mexicanos, por isto, são muito sensíveis às opiniões de visitantes sobre seu País. Sempre perguntam: “que piensas de México?” À resposta franca superlativamente elogiosa, respondem com um satisfeito movimento de cabeça e um orgulhoso “asi es!”
O País tem uma relação esquizofrênica com o vizinho do Norte. Mais ódio que amor na mais desigual das parcerias, pois não é moral e politicamente aceitável um mercado comum como o NAFTA, que permite a livre circulação de bens e serviços – onde os Estados Unidos nadam de braçada – e reprime a livre circulação do trabalho. As remessas financeiras dos emigrantes são essenciais para a economia mexicana e seu trabalho importante para setores da economia americana, mas os Estados Unidos humilham, pois constroem um muro que só encontra similar na brutalidade israelense contra os palestinos. A relação de subordinação do México é tão ostensiva que alguém com o visto norte-americano no passaporte pode entrar no México. Já quem tem só visto mexicano não chega nem perto dos Estados Unidos. Conseguir um visto mexicano no Brasil é dificílimo, imposição americana para evitar novas levas de imigrantes ilegais em seu território. A intervenção militar no México é discutida abertamente por políticos e pela imprensa norte-americana devido à violência do narcotráfico no Norte, perto da fronteira.
Banda de Música se prepara para tocar em Praça de Querétaro
Tudo isto explica e valoriza o insistente discurso da nação mexicana, associado, em 2010, à celebração dos duzentos anos da independência e dos cem da revolução. Os mexicanos são a nossa última fronteira latino-americana. A forte identidade nacional mexicana expressa a resistência cultural e política de todos nós.
O México está coberto de bandeirinhas com as cores nacionais
A visita á cidade do México não está completa sem um passeio à antiga urbe de Teotihuácan. É uma das mais impressionantes descobertas da arqueologia em todo o mundo. Sua pirâmide do Sol tem a massa aproximada da grande pirâmide de Queops. Na volta, uma passada pela basílica de Guadalupe, onde aconteceu a aparição de Nossa Senhora ao índio Diego. É uma narrativa religiosa muito bonita. Quem tiver interesse, pode ler meu artigo “A Mãe Morena” (www.georgezarur.com.br/artigos/180/a-mae-morena-nossa-senhora-no-simbolismo-religioso-latino-americano).
Teotihuácan – Pirâmides do Sol, à direita, e da Lua, ao fundo
É absolutamente indispensável uma visita de, no mínimo, um dia inteiro ao Museu Nacional de Antropologia, cujo ponto alto é o registro das impressionantes civilizações antigas do México e de sua arte. O prédio e o acervo são fantásticos. O Museu é um importantíssimo marco na cultura universal, que remete a identidade nacional mexicana às grandes civilizações pré-colombianas e aos povos indígenas atuais. O Museu de Antropologia é maravilhoso, único no mundo.
Para o Sul da cidade do México ficam Coyoácan e a vizinha San Ángel. A visita a casa onde viveram Frida Khalo e Diego Rivera é muito interessante. Contaram-me que antes do filme sobre a vida de Frida Khalo ninguém aparecia por lá. Hoje, vive cheia. Nas redondezas fica a casa onde morou e foi assassinado Leon Trotsky.
Ainda mais ao Sul está Xochimilko, uma grande rede de canais em meio a plantações de flores, onde deslizam quatro mil barcos empurrados por varejões.
Xochimilko
É uma alegre, colorida, ruidosa e enorme bagunça, com casamentos, comemorações, festas, senhoritas dando adeus, mariatis a vender canções e camelôs aquáticos a oferecer de comida a brinquedos de seus pequenos barcos.
Venda de Artesanato em Xochimilko
Ainda no Brasil reservei um carro “full size” para ser entregue na loja da Hertz do Paseo de La Reforma. Após dias de investigação, descobrimos que a loja tinha sido fechada, embora constasse do site e dos catálogos da empresa. Fomos informados de que teríamos um carro médio, pois, embora constem da propaganda, a Hertz não dispõe de carros maiores no México. Quando fomos buscá-lo no novo e inconveniente local, não havia carros médios. Sofremos um novo downgrade para um carro pequeno, uma lata velha toda batida, um tal de Dodge Attitude. O nome não poderia ser mais adequado, pois coragem era necessária para entrar no lamentável veículo. Reclamei e me deram outro Attitude todo arranhado, embora menos amassado e com o ar condicionado em operação.
Quando da devolução do carro, assistimos a uma cena desagradável. Fregueses furiosos com a Hertz xingavam irritadíssimos, pois estavam por horas a esperar pelo carro que reservaram. Subitamente, um senhor com um neném em um dos braços, usou o outro para dar uns socos no funcionário da Hertz. Avisei minha mulher: “se sair tiro vamos sair correndo!” Não foi preciso, pois o agressor simplesmente foi embora, enquanto um jovem casal se contorcia de vergonha pelo fato da cena ter sido presenciada por estrangeiros.
As estradas mexicanas estão em muito melhor estado que as brasileiras. Muitas com três pistas e os caminhões respeitam sua faixa. Não fosse o calhambeque da Hertz, viajar naquelas pistas teria sido um prazer ainda maior, pois pilotar um carrão (de preferência esporte) pode ser um gostoso prazer adicional. Para outro percurso mais curto, para Puebla, usamos a Avis, serviço competente e profissional, mas deu um defeito no GPS, que nos deixou perdidos em uma pequena estrada semideserta, na qual nos deparamos com a placa abaixo. Ficamos imaginando como seria o Parque de Los Venados Acariciables. Ainda, ficamos pensando em como o México é organizado, por reservar um Parque apenas para que os veados locais sejam acariciados!
Preservação da Fauna
Reencontramos o caminho graças à extraordinária gentileza do povo mexicano. Sempre havia alguém disposto a nos orientar, gente que ria alegre por ajudar, para o que talvez contribuísse o fato de não sermos gringos. Na cidade do México, uma senhora de idade correu à nossa frente para pegar um taxi. Achamos que competia pelo veículo, mas cercou-o e o trouxe até nós. Em Puebla, um rapaz com cara de estudante guiou-nos em seu carrinho, fora de seu percurso, por mais de cinco quilômetros para mostrar o caminho.
Chegamos, enfim, às cidades coloniais! Todas as quatro que visitamos possuem um centro antigo muito bonito e bem preservado. Percebe-se (com a notável exceção de Guanajuato), em contraste com as nossas cidades históricas, a disciplina que os espanhóis impuseram, não só às pessoas como ao espaço. As cidades coloniais do México ilustram a distinção que Sérgio Buarque de Holanda (mais conhecido como “o pai do Chico”) formulou entre espanhóis e portugueses, a partir da morfologia urbana do Novo Mundo. O espanhol é associado à imagem do “ladrilhador,” cuidadoso, com as suas cidades americanas, bem planejadas e de ruas retas. O português seria mais relaxado, o “semeador”, com suas cidades crescendo de acordo com a geografia e com o acidente histórico.
Eram diversas as intenções de espanhóis e portugueses em terras americanas. Os espanhóis pretendiam construir uma “Nova Espanha”, nome do que hoje é o México, para onde levaram representantes importantes da nobreza em números expressivos, como demonstra a sucessão de palacetes em Querétaro, por exemplo. Tiraram ouro e prata, mas deixaram universidades e prédios impressionantes nas colônias, ao contrário dos portugueses que tudo levavam sem nada deixar. Não vi na Espanha, conjuntos dos séculos XVI ao XVIII tão bem preservados como os do México. Assim, certo passado da Espanha viu-se preservado na Nova Espanha.
Catedral de Puebla
Mas sempre há algum compromisso com o relevo. Enquanto Puebla, Querétaro e San Miguel Allende obedecem ao modelo do “ladrilhador”, Guanajuato, situada em terreno muito acidentado, lembra nas curvas e desvãos de suas ruas, as cidades históricas de Minas Gerais. É “mineira”, também, por estar, como Ouro Preto situada sobre algumas das minas que tanto enriqueceram a metrópole. Guanajuato é única no mundo, por contar com um emaranhado de túneis sob a cidade, que levam a todo lugar. A tecnologia da rocha escavada para a mineração foi aplicada à abertura de outra malha viária para automóveis e pessoas.
Guanajuato sobe o morro
As cidades coloniais mexicanas celebram a cor. Ênfase nas tonalidades intensas de cores fortes que abrangem uma faixa bem definida do espectro, do amarelo canário ao roxo escuro. Amarelos, ocres e vermelhos tijolo de Juan Miró ou mesmo, da bandeira espanhola. Sob o sol de altitude – as cidades estão acima de 2000 metros – as paredes de cores fortes parecem não apenas refletir a luz, mas produzi-la como fontes autônomas.
ENSAIO FOTOGRÁFICO SOBRE AS CORES DA NOVA ESPANHA
São Miguel Allende : o vendedor de frutas
Tonantzintla: Através do Portão da Igreja
Xochimilko: barcos
Guanajuato: A Fonte e as Casas
Guanajuato: a vendedora de flores
É notável o jogo da arquitetura e do paisagismo no contraste entre luz e sombra. Um lado da rua está sempre sombreado e o outro não. Nas praças, o arvoredo oferece o conforto da sombra, mas também, a visão privilegiada das paredes e espaços iluminados.
A LUZ E A SOMBRA NA NOVA ESPANHA
Igreja – San Miguel Allende
Casa na Praça – Querétaro
As árvores na praça – Querétaro
Os dois lados da Rua
As igrejas vivem cheias de fiéis, principalmente em Querétaro. Muitos jovens em seu interior, cena cada vez mais rara em outros países.
Querétaro : Mosteiro de São Francisco
Algumas igrejas, como a de Santa Rosa, em Querétaro, têm um interior magnifíco. As esculturas dos doze apóstolos são belíssimas expressões de arte sacra. Os rostos lembram os do Mestre Aleijadinho, o que me fez deduzir que esses traços fisionômicos talvez expressem um padrão de época. A riqueza e o poder da Nova Espanha estão espelhados em seus templos. São grandes, ricos e completamente diferentes dos nossos. É notável como a mesma Ibéria produziu expressões tão divergentes.
Puebla: Torre de Igreja e Monte Nevado
Porém, a igreja que mais me fascinou é pequena e pobre em ouro e prata. Fica na comunidade indígena de Tonantzintla, junto a Cholula, quase um bairro de Puebla. Alguns consideram essa igreja de Santa Maria Tonantzintla, a mais bonita do México e se entende o porquê quando se entra em seu interior. É o barroco, com sua multiplicidade de rostos, colunas, flores e tudo mais que caracteriza o estilo. A diferença é que foram esculpidos por artesãos indígenas ao longo de duzentos anos. Rostos de anjos indígenas se misturam com fisionomias européias. Flores locais e divindades nativas são vistas em profusão. O artesanato popular assume a diversidade do barroco reinterpretado em maravilhoso arranjo.
As ruas e praças vivem cheias de povo. Todo mundo sai às tardes. É marcante o contraste com a solidão das vias públicas dos Estados Unidos. As multidões reunidas nas praças fazem do México, desse ponto de vista, um país muito “europeu”, pois o mesmo acontece em toda Europa continental.
A Vida na Praça
Casamento na Praça- São Miguel Allende
As pessoas se reúnem para sentar no banco sombreado da praça, em frente à fonte, perto de alguma estátua ou coreto, para se verem e serem vistas.
Banco da Praça na Hora do Sol Quente – Querétaro
É marcante o contraste dos prédios das cidades coloniais do México, com as singelas igrejas e casas brancas de janelas azuis do Brasil colonial. O próprio formato das casas com seu pátio sombreado é completamente diverso do nosso. Há uma enorme diferença de riqueza de cidades como Puebla e Querétaro, até mesmo para os nossos conjuntos históricos mais imponentes, como os do Pelourinho e o de Ouro Preto. Além do mais seu estado de conservação é perfeito.
Não tenho o menor interesse em Cancun, pois quero distância de hotéis em seqüência à beira mar, no estilo Miami. Voltarei ao México para conhecer Oaxaca e Chiapas, o Sul indígena e Maia, bem como a riqueza arqueológica de Yucatán.
O México vale pela força de sua cultura e pela alegria e comovente resistência de seu povo.
Viva México!