O pensamento social brasileiro, do povo e da elite, brota da certeza de que algum dia será criado um novo e melhor tipo de sociedade nesta terra meridional. Assim, a identidade nacional brasileira constrói-se por uma utopia, pela idéia de que, repetindo o ditado popular já certamente ouvido por todo brasileiro, aqui existirá uma sociedade “em que serão abolidas as barreiras de raça, classe e cor”.
Esta esperança em um futuro maravilhoso marca a identidade nacional brasileira em contraste com a de outros povos. Os países europeus remetem sua identidade a um longínquo passado histórico ou pré-histórico, para a construção de identidades nacionais particulares com o uso da história gaulesa, germânica, romana, celta, etc.
Recentemente, o passado comum continental, às vezes grego ou indo-europeu, tem sido manipulado para a construção de uma identidade nacional européia. Por exemplo, para os que ainda se lembram da festa de inauguração da Olimpíada de Barcelona, de 1992, aí se celebrava a chegada de heróis gregos à Catalunha, como marco inaugural da cultura catalã, espanhola e européia. A chegada da mitológica nau grega era um episódio central ao espetáculo, ao tempo em que se minimizava a maciça influência árabe na península ibérica e na própria Catalunha. A Espanha comemorava seu ingresso no novo mundo afluente da comunidade européia, sepultando seu passado franquista, que procurava na aproximação com o Magreb, a compensação pelo isolamento e pela pobreza a que se viu relegada, após a derrota de sua aliada, a Alemanha, na Segunda Guerra Mundial. Afinal, os soldados de Franco que ocuparam Madrid eram mouros do Marrocos, vestidos por um uniforme étnico norte-africano.
Da mesma maneira, há poucos anos, velhos franceses horrorizados assistiram as tropas alemãs marcharem sob o arco do triunfo, com o mesmo uniforme de 1940. Porém, a wermarch era, agora, convidada do governo francês para demonstrar que todas as feridas estavam cicatrizadas e que se lançava um novo imaginário supranacional europeu. Por tudo isto não é de se estranhar as resistências à entrada da Turquia na União Européia, pois desde Heródoto cantava-se a superioridade da Europa sobre a Ásia.
Da mesma forma, os países latino-americanos andinos, centro-americanos e o México lançam mão dos gloriosos passados das civilizações maia, asteca e inca para construir sua identidade nacional. Entretanto, a ruptura ocasionada pela tragédia da conquista européia assinala uma diferença essencial frente às mitologias nacionais européias.
Diferente é o uso do tempo histórico pelos Estados Unidos para a construção de sua identidade nacional, pois é enfatizado o presente, por intermédio da doutrina do Destino Manifesto: a expansão imperial americana, do “povo eleito” por todo o mundo, começando pela tomada de grandes parcelas do território mexicano representaria, para os norte-americanos, a manifestação clara da escolha divina. A herança biológica e cultural anglo-saxã, em uma associação racista típica do século XIX, continua ainda viva nos dias que correm, nos Estados Unidos, até no pensamento acadêmico, como demonstram as teorias de Samuel P. Huntington (que disfarça, aliás, muito mal, seu racismo pelo uso do termo “civilização”). Isto para não falar no racismo popular. Tal herança biológica e cultural justificaria a hegemonia americana no mundo e o direito ao seu exercício.
Já o Brasil, em contraste, se constrói pela esperança em um futuro radioso. A identidade ancorada no devir tem raízes profundas no messianismo português, associado ao Sebastianismo. Já então começa a troca entre pensamento do povo e o pensamento culto, quando o Padre Antônio Vieira, em diferentes textos, aponta para a inevitável recuperação das glórias portuguesas. Interessantíssima é a sua leitura das profecias bíblicas, no livro “História do Futuro”, obra em que vislumbra a criação de um quinto império, em sucessão ao Império Romano. Vieira não esconde que Portugal teria um importante papel neste novo império dos cristãos.
Do lado do povão, o messianismo levava a revoltas populares de cunho religioso, onde a promessa de justiça que permeia toda a Bíblia, de proteção divina dos fracos, dos oprimidos, dos pobres, dos estrangeiros e dos desprotegidos, das viúvas e dos órfãos era transformada em efetiva prática social. Assim, a utopia brasileira tem, para o povo, um cunho sagrado, em analogia com a, também sagrada, “Mãe Rússia” de Leon Tolstoy.
Aliás, o autor deste artigo fica impressionado pela maneira pela qual o Livro Sagrado tem sido reinterpretado ao longo dos séculos, para anular sua óbvia mensagem de Justiça Social. Dificuldade enfrentada pelos militares da ditadura argentina, quando da visita do Papa a Buenos Aires. Reconhecendo o teor subversivo da Bíblia, censuraram o Magnificat. A mãe de Deus foi considerada um risco para o regime, pois ousou afirmar que “o Senhor exaltou os humildes, saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazias os ricos”.
Maria Isaura Pereira de Queiroz levantou centenas de movimentos messiânicos pelo Brasil, o que bem demonstra como é o messianismo profundamente enraizado no pensamento nacional. Não há de se esquecer nesta troca entre povo e elite, o papel dos Jesuítas, de um lado, construindo sociedades hierárquicas e socialmente igualitárias, nos Sete Povos da Missão e, do outro, o próprio messianismo indígena, como o dos Guaranis, que os leva (ainda hoje) a migrar em busca da Terra Sem Males, no sentido do Oriente da América do Sul. O deslocamento geográfico só é interrompido pelo Oceano Atlântico, em que pesem práticas rituais destinadas a superar tamanho obstáculo.
A idéia da organização da sociedade a partir de princípios messiânicos de justiça continua a agir no Brasil. Brasília, por exemplo, está cercada de cidades místicas que preparam o mundo para a chegada do terceiro milênio. O santo italiano Dom Bosco teria previsto as exatas coordenadas geográficas onde seria construída a capital desta “nova civilização”. A referência à justiça social continua presente no discurso cotidiano da igreja católica e de muitas outras denominações religiosas. Mesmo porque não há como se deixar de ver que o País da utopia é o campeão da injustiça.
Em finais do século XIX e inícios do século XX os intelectuais voltaram-se ao tema da identidade brasileira, em resposta a duas razões: a primeira, muito antiga, foi o próprio ethos de esperança no pensamento popular brasileiro sobre o Brasil e suas manifestações místico-revolucionárias – caso de Canudos – que se transferia à elite na forma de afeto intelectualizado, disfarçado de “literatura social”; a segunda foi a perda de centralidade do pensamento religioso (no meio da elite, bem entendido) e sua substituição pela ciência como forma de se interpretar o mundo. O século XIX era o século do positivismo, tempo em que a fé religiosa era entendida como uma etapa evolutiva a ser superada pelo progresso, restando à ciência e à razão, a solução de todos os problemas da humanidade. Assim, aos pensadores cabia encontrar alternativas à explicação pela “vontade divina”. Porém, o pensamento religioso continuava e continua sendo a principal referência do pensamento popular.
A obra de Euclides da Cunha trouxe para o pensamento erudito das cidades, o mundo dos sertanejos que viveram a saga de Canudos. Mistura brilhante de literatura e sociologia. Análise racista onde, porém, se invertia o sinal do racismo daquela época, fazendo-o favorável ao povo brasileiro. O darwinismo social dos finais do século XIX e inícios do século XX associava raça e nação: só os povos europeus teriam condições biológicas de construir nações estáveis e avançadas. Sobraria para os demais, a submissão dos escravos. Euclides, a par da maravilhosa descrição da nossa “Tróia de Taipa”, que o situa como um dos maiores gênios da literatura épica universal, argumenta que o sertanejo seria “antes de tudo um forte”, como evidenciado por sua bravura nos combates de Canudos. Daí, a possibilidade de uma “raça brasileira”, o que eqüivalia a dizer, com as categorias da época, que o Brasil era viável como nação soberana e desenvolvida.
Um desenvolvimento crucial na Antropologia e na sociologia do século XX aconteceu com a substituição do conceito de raça pelo conceito de cultura. Era a superação epistemológica do racismo como sistema interpretativo. Superação apenas parcial, pois, no presente, o uso político do conceito de “raça” até pelas ciências sociais, continua de largo curso. Quando não se faz o uso aberto, o conceito é aplicado de forma sub-reptícia, por meio de substituição por equivalentes semânticos e metodológicos, como na citada tese de Huntington do “choque de civilizações”.
A cultura é aprendida dos mais velhos, ao contrário da herança biológica da qual não se foge. A cultura representa uma resposta a condições históricas e geográficas particulares. A cultura é, portanto, relativa, o que implica assumir-se a tolerância frente à diversidade como premissa da análise e de relacionamento com o “outro”.
O deslocamento da interpretação do conceito de raça para o do conceito de cultura aconteceu, no Brasil, com Gilberto Freyre. Freyre procura demonstrar que no Brasil teria se criado a primeira civilização original nos trópicos, baseada na mestiçagem, ao tempo em que opunha as classes dos senhores e dos escravos, Casa Grande e Senzala. Foi extraordinário o impacto do seu livro, com este nome, sobre o pensamento social: os brasileiros passaram não a ter vergonha de sua cor morena, mas orgulho devido ao que tinham sido capazes de criar um País novo e diferente. Passaram a se achar bonitos e se considerar felizes de serem eles mesmos. Passaram a gostar mais ainda do Brasil.
Autores importantes como Sylvio Romero (que publicou antes de Euclydes da Cunha), Manuel Bomfim, Buarque de Holanda, Oliveira Vianna e alguns outros também tiveram grande importância na formação de uma idéia de Brasil. O quase desconhecido Manuel Bomfim impressiona por sua generosidade e pela originalidade de sua sociologia.
A utopia brasileira foi traduzida para a política, no decorrer do século XX, de muitas maneiras. Marxistas, como Caio Prado, já embutiam em sua análise a idéia de alteração radical e inevitável do sistema econômico e político. Os líderes nacionais que marcaram nossa história foram aqueles que fizeram o povo sonhar, pela apresentação de evidências tangíveis da aproximação da utopia, sempre viva no sentimento nacional. Com Getúlio Vargas, o avanço na industrialização associado ao reconhecimento da classe trabalhadora como ator político. São de sua primeira passagem pela Presidência da República, os direitos sociais que seriam suprimidos na década de 90 e nos tempos que correm. Já com Juscelino, o simbolismo utópico se construiria em pedra e cal, com Brasília, rodovias, a industrialização acelerada e com a expansão do setor serviços. Celso Furtado, cuja perda lamentamos nesses dias, iria expressar o que de criativo e brilhante existia no pensamento econômico brasileiro dessa época.
Todas as manifestações políticas do período que se estende dos anos 30 aos 50 estavam associadas a uma verdadeira explosão da criatividade nacional. Além da Arquitetura, foram os tempos de Villa-Lobos e, um pouco mais tarde, de Tom Jobim, Vinícius de Moraes e da bossa nova; de Drummond, Bandeira e Cecília Meirelles; de Graciliano, Jorge Amado, Guimarães Rosa e Clarisse Linspector; da pintura de Portinari e do cinema de Glauber Rocha; além de uma infinidade de outros nomes que poderiam ser lembrados em associação com o modernismo . Não se pode esquecer as manifestações populares, principalmente na música, de gente como Pixinguinha, Luís Gonzaga, Lupicínio Rodrigues, Noel Rosa e tantos outros.
Esta movimentação na economia, na política e nas artes foi o resultado de uma política de Estado e de um estado de espírito da população. Havia recursos públicos para construir estradas (ao invés de pagar juros bancários); para apoiar a cultura (ao invés de pagar juros bancários); para se garantir direitos essenciais para a população, do salário mínimo à aposentadoria (ao invés de pagar juros bancários); para se prestar uma boa assistência pública de saúde (ao invés de pagar juros bancários); e uma boa escola pública (ao invés de pagar juros bancários). Quando o governo norte-americano e a direita da direita queriam o fim do monopólio estatal do petróleo, o Presidente Getúlio Vargas resistiu. Quando o governo norte-americano e a direita da direita queriam impor políticas recessivas com altas taxas de juro para controle da inflação, o Presidente Juscelino resistiu, aumentou os gastos públicos, construiu Brasília, a maior parte das estradas importantes até hoje em uso e deu um salto na industrialização.
Havia, do lado das elites, um paradigma político hegemônico orientado pela lealdade à idéia de nação. Do lado do povo as grandes conquistas políticas, avanços sociais e obras públicas eram entendidos como sinais messiânicos da chegada do novo tempo. O povo sonhou e criou-se uma intimidade afetiva com os políticos que simbolizavam a nação e a conduziam no rumo da utopia.
Sonhos são criativos e, por definição, indisciplinados. Por isto é que a tradução da utopia brasileira para a política econômica não poderia se dar de outra maneira que a de flexíveis metas, como as associadas ao sorriso de JK ou ao pensamento generoso de Celso Furtado. A transformação da utopia nacional em projeto nacional só poderia acontecer desta forma.
O sonho brasileiro iria se apagar com a noite da ditadura. Acabou a intimidade povo-elite, encerrou-se a chuva de criatividade dos artistas e dos intelectuais. Restaram, “apesar de você”, expressões isoladas de genialidade, agora um pouco mais tristes e introspectivas, como na obra de Chico Buarque.
A própria economia parou de crescer, após o período inicial de desenvolvimento acelerado do regime militar. A estagnação, que perdura até hoje, trouxe um problema muito maior do que o regresso ao subdesenvolvimento, pois um país que constrói sua identidade por uma utopia necessita de “sinais messiânicos” da chegada do tempo da promessa. Exige desenvolvimento econômico e social contínuo e acelerado, como foi o brasileiro durante cerca de 100 anos. A demorada estagnação econômica representa, portanto, um gravíssimo problema para a identidade nacional.
A ditadura transformou a mobilização entusiasmada em obediência forçada, associada à repressão ao idealismo dos jovens e à criatividade dos artistas e intelectuais. A utopia não foi de todo esquecida, mas tentava-se sua tradução para a vida do País por meio de “planos econômicos”, que não deixavam espaço para a criatividade popular e para a dinâmica da política. Era um modelo de planejamento em que o racionalismo autoritário era extremado às últimas conseqüências. A vida econômica e social era deduzida de algumas premissas, a partir das quais se traçava em que e como deveria ser transformada.
Não é nenhuma surpresa que os militares dos anos 70 e 80 tenham ficado encantados com o tipo de planejamento econômico então formulado, pois os modelos de planejamento militar e o planejamento econômico então em voga possuem racionalidades vizinhas, definidas em termos de tática e estratégia, superação de obstáculos, conquista de objetivos e relações entre meios e fins. Partilham a idéia de que a “vida real” , como a topografia ou o inimigo, deve ser superada, se necessário com o uso da violência para a vitória sobre supostos obstáculos. Em inexistindo a adequação entre “modelo” e “realidade”, que esta se adapte àquele e nunca o contrário. Por isto, o impaciente discurso, corriqueiro ainda hoje, de que o Congresso Nacional e as longas negociações exigidas pela democracia para se fazer reformas econômicas representariam um sistema antibrasileiro.
Este esquema mental associado a uma ordem hierárquica, embora desejável na vida castrense, é inadequado para orientar o processo político de uma nação. Por isto, a tradução da utopia brasileira em projetos tecnocráticos representou um deslocamento lamentável. É espantoso que a idéia de “projeto nacional” continue, ainda hoje, associada ao racionalismo tecnocrático, como evidencia a produção do “Centro de Estudos Estratégicos”, órgão da Presidência da República.
O projeto nacional, nesta ótica, não é entendido como um movimento de explosão de criatividade coletiva, de fazer aflorar a utopia, de extraí-la do interior da cultura, onde é mantida e cultivada ao longo dos séculos pelo povo, para o plano contemporâneo da conjuntura política. Não é percebido como forma de unir a nação na busca de grandes objetivos comuns. Ao contrário, o “projeto nacional” é compreendido como um conjunto de normas baixadas de cima para baixo, a serem seguidas pela população. Seu sucesso é aferido pela disciplina do povo em obedecê-las. Eventuais fracassos são, freqüentemente, explicados por “falhas de comunicação”, ou seja “o povo não entendeu direito” e acabou votando na oposição. A “difícil conjuntura internacional” também é, comumente, chamada para justificar o insucesso.
Nesta visão, é mínimo o espaço para a negociação cotidiana de metas e objetivos, pois o planejamento econômico e social é considerado o oposto metodológico da política participativa.
Uma possibilidade diversa realizou-se no governo Collor: não havia nem negociação política, nem qualquer projeto, mas apenas a busca de vantagens imediatas e pessoais pelo grupo do poder. No espectro que corre do planejamento centralizado à negociação há, ainda, casos como o do governo Fernando Henrique, ou o do governo atual, onde se faz qualquer sacrifício para a conquista de metas que nada possuem de concreto e de simbólico, como seria o caso de estradas, cidades, indústrias, escolas, universidades e hospitais ou, ainda emprego e distribuição de renda. Os objetivos do governo distanciam-se de objetivos de Estado, pois consistem em esotéricos desideratos monetários, estranhos ou mesmo opostos a um projeto de nação. Entretanto, a negociação desesperada em busca do acordo político para atingi-los situa em primeiro plano a política desarticulada de qualquer projeto ou utopia. È a negociação sem projeto nacional.
A tradução da utopia brasileira para a política, aconteceu no passado, e só acontecerá, de novo, com a troca de expectativas e ações entre povo e elite, consubstanciada no difícil equilíbrio entre um projeto que defina objetivos nacionais e a negociação permanente da vida cotidiana. Com o reviver da intimidade entre povo e elite, decorrente de um novo compromisso de lealdade da elite ou, talvez, do surgimento de uma nova elite. Essa síntese deve ser capaz de reavivar a capacidade do brasileiro de sonhar coletivamente e despertar sua criatividade. Este é o verdadeiro projeto nacional, aquele que emociona o povo, seus artistas e poetas.
Então, o Brasil viverá um novo sonho que resgatará a utopia que seu povo fez sagrada.