(Divulgado neste site em 27/05/2006)
A escultura tem uma longa tradição de envolvimento com a política, como evidenciam as estátuas eqüestres em praças públicas (na cidade de Montevidéu todas parecem idênticas, embora variem os nomes dos cavaleiros). Respondem à mesma função, as gigantescas tentativas de deificação em pedra de seres humanos que, insisto, deviam ser de carne e osso, embora existam dúvidas a respeito.
A escultura se fez, ao longo da história, instrumento do estado ou da igreja, na exposição em materiais duros e preciosos de bustos e perfis de reis, príncipes e cardeais. De Cristo, Buda, Nossa Senhora e dos muitos santos que povoam o céu.
Essas são manifestações diferentes daquelas dos artistas indignados com os acontecimentos de seu tempo, que esculpem raiva e indignação em pedra ou metal. Não vi muito disto nas exposições de escultura antiga pelos museus do mundo, pois a arte existia para o engrandecimento e divertimento dos reis e nobres, dos ricos e poderosos, da cidade ou do império. Não era concebida para criticá-los ou ao sistema político. Ao contrário, existia para embelezar um ambiente ou tornar públicas as glórias do soberano.
É corriqueiro o retrato naturalista dos sentimentos humanos universais nas obras da arte ocidental. Como a compaixão – terá sido minha ou do escultor? – expressa no mármore do guerreiro gaulês morrendo, em exposição nos Museus Capitolinos, ou nas muitas Nossas Senhoras e Cristos vivendo sua dor pelo mundo afora. Há, também, representações da alegria e de tranqüila beleza, que poderiam ser apreciadas nos museus do mundo, não fosse a insistência da multidão de adolescentes japonesas em estourar seus flashes, após pousarem abraçadas a estátuas gregas entre uma e outra risadinha nervosa. Devem estar em missão secreta do Império do Sol Nascente para conquistar o mundo. Será um acaso que as grandes fábricas de máquinas fotográficas sejam japonesas? Transformam os ícones sagrados de nossa civilização em elementos de uma Disneylândia pessoal, como a cara que se punha nos cenários dos lambe-lambe de outrora, para fazer de pacatos cidadãos terríveis tarzans flagrados no ato de matar a fera com as mãos nuas. A comparação lambelambesca não é de todo má, pois as grandes referências artísticas e religiosas ocidentais viram troféus expostos no quarto de alguma menina de Tókio. O leão ocidental se torna um gatinho doméstico pendurado na parede. Para essas meninas, Akiro Kurosawa é um traidor, pois em Sonhos, na visita ao campo de trigo declarou seu infinito amor por Van Gogh.
Em resposta, sugiro que alguém trabalhe em mármore uma magrinha e sorridente adolescente japonesa abraçada à Vênus de Milo. A escultura seria iluminada por constantes explosões de flashes acompanhadas, ritmicamente, pelo efeito sonoro das risadinhas características gravadas ao vivo. O problema seria a vingança da vingança, pois tanto a Vênus como a menina japonesa de pedra seriam, logo, fotografadas e familiarmente beijadas e abraçadas por sorridentes adolescentes japonesas de carne e osso. É certa a derrota final do Ocidente!
Embora a escultura clássica e medieval não enfatize a indignação política, um exemplo dissonante nos chega de Portugal do século XIV, por razões que brotam da oscilante fortuna dos poderosos. Do ódio de um rei que, após inomináveis sofrimentos, vinga-se de muitas maneiras de seus algozes de alhures. Quem tem raiva é o rei. O escultor é o instrumento.
Inês de Castro é dama de companhia da noiva do Príncipe D. Pedro de Portugal, que por ela se apaixona e a toma por mulher. O príncipe sai para caçar, Inês é seqüestrada e, posteriormente, executada a mando do rei Afonso IV, pai de D. Pedro. Para salvá-la, o príncipe se revolta contra o real pai, mas é vencido em batalha. Herdando a coroa, manda desenterrar o cadaver de Inês, veste-o, adorna-o e obriga a corte a beijar-lhe a mão. História de amor tão terrível quanto a de Romeu e Julieta ou a de Tristão e Isolda, com a diferença de ser verdadeira.
D. Pedro manda esculpir em mármore os grandes túmulos de Inês e o seu, no interior do Convento de Alcobaça, que mandara construir. São notáveis, a começar pelos anjos que se acercam de Inês, com marcada expressão de preocupação, como se estivessem prontos para levá-la para o céu. Magros anjos góticos, muito diferentes dos nossos gordinhos anjinhos barrocos do Brasil colonial! Diz a lenda que os anjos estão junto aos túmulos dos amantes, para levantá-los bem depressa no dia no Juízo final, de maneira que possam logo se abraçar. Entretanto, a expressão de seu rosto parece dizer, com muita pena: “Inês, como tiveram coragem de fazer isto com você! Agora está tudo bem”. Mas não estava tudo tão bem. Mais de quatro séculos após a sua morte, não contentes em ocupar Portugal, os soldados de Napoleão muito se divertiram treinando tiro ao alvo no nariz da rainha. A falta desse órgão não compromete a maravilhosa obra, nem, naturalmente, o olfato da soberana, pois já estava morta há muito tempo.
Destacam-se, embaixo do túmulo da Rainha, figuras caricaturais deformadas, esmagadas pelo peso do enorme jazigo. A intenção é mostrar maldade, feiúra e ridículo. Figuras por demais humanas para integrarem o bestiário medieval. Ao vê-las, imaginei representarem os algozes da Rainha, os tais que convenceram o rei D. Afonso IV a executar a amante do filho.
Túmulo de Inês de Castro:
Anjos preocupados se acercam da rainha para levá-la.
Tumulo de Inês Castro:
sobre o túmulo, as asas dos anjos debruçados sobre o corpo deitado. Abaixo do túmulo as três figuras deformadas.
Em um salto de seiscentos anos, mas sem sair da Península, um caso notável do uso da escultura para expressão de indignação política é a obra de Alexander Calder Fonte de Mercúrio, exposta na Fundação Miró, em Barcelona. Assim como Picasso pinta em Guernica, o sofrimento da cidade desse nome na Guerra Civil Espanhola, Calder realiza nessa obra prima, uma tocante homenagem aos trabalhadores das minas de mercúrio da cidade de Almadén. A população da cidade participa da luta desde o seu começo. Resiste e resiste e a cidade só é ocupada poucos dias antes do fim da República.
A fonte de Mercúrio é uma obra móvel em metal, que enquanto oscila faz o mercúrio fluir ao longo de hastes e dutos, como para exprimir o heroísmo eterno dos mineiros de Almadén. O movimento constante traduz a admiração pela sua abnegação e a tristeza pela derrota. A abstração, além de bela, torna-se emocionante por lhe ter sido atribuído um sentido!
A Fonte de Mercúrio de Calder
Pouco depois (de 1937 a 1940), David Smith conclui seu magnífico conjunto Medalhas da Desonra, exposto, na primavera de 2006, no Museu Guggenheim em Nova York. É a mais radical denúncia da guerra. Uma das medalhas é concedida aos que afundam navios de refugiados ou navios hospitais; outra aos que cometem o mesmo bombardeio da população civil, já denunciado por Picasso, em Guernica; merecida medalha é atribuída aos diplomatas simpatizantes do nazismo; também a recebem os que lucram com a prostituição; têm a sua comenda, médicos que fecham os olhos às experiências com seres humanos . E, assim, um total de quinze medalhas de metal do tamanho de um prato são concedidas àqueles que as fizeram por merecer.
Capa do Livro Medals For Dishonor
Medalha de Desonra concedida à propaganda de guerra
Do outro lado da rua do Guggenheim está o Metropolitan, que em seu terraço expunha, na mesma primavera de 2006, instalação de autoria do notável artista chinês contemporâneo, Cai Guo-Qiang.
Enormes crocodilos que parecem verdadeiros, cravados com facas, tesouras e centenas de objetos perfurantes confiscados em aeroportos integram o conjunto denominado Vá em Frente Nada a Ver Aqui, que nos remete à agressão à natureza e à contraditória mensagem de ignorá-la. No meio do terraço está o Monumento Transparente, peça de vidro através da qual se vê a skyline de Manhattan, como que enquadrada em uma fotografia. A imagem estática ultra-urbana desse segundo monumento contrasta com a dos animais em desespero e raiva. Já em Céu Claro Nuvem Negra, uma nuvem negra gerada por uma explosão de pólvora, aparece exatamente ao meio dia do céu excessivamente azul da primavera do Central Park. Cai Guo-Qiang esculpe com pólvora no céu.
Céu Claro Nuvem Negra e Monumento Transparente
O preto da pólvora sobre o azul do céu augura os acontecimentos do nosso tempo retratatados em sua peça Monumento Não Transparente. Ali estão em alto relevo, cavados na pedra por artesãos tradicionais chineses, setenta registros de nossa história, após o 11 de Setembro de 2001, dispostos em uma alucinante seqüência. As imagens se misturam: furacão Katrina e Tsunami, Cardeal Law, freira em oração, Harry Potter, casamento de pessoas do mesmo sexo, morte do Papa João Paulo II, carnavais do mundo, gripe aviária, doação de alimentos, cúpula das Nações Unidas, Jogos Olímpicos de 2004, funeral de Arafat, Carros bomba, a escultura Vá adiante Nada a Ver Aqui do próprio Cai Gu-Qiang, reféns no Iraque, funeral de soldados mortos no Iraque, controle de segurança nos aeroportos, mães contra a guerra, concursos de misses pelo mundo, guerra no Iraque, prisioneiros de guerra, tortura de prisioneiros, monumento de Cai Guo-Qiang Arco-Iris Negro, Sadam Hussein, homens bomba, reféns, crianças iraquianas, exploração do espaço, escultura de Cai Guo-Qiang Arco-Iris Temporário, guerra no Afganistão, doação de alimentos, demonstração contra a OMC, Monumento Transparente por Cai Guo-Qiang, avião espião norte-americano, o 11 de Setembro de 2001, Osama Bin Landen, George W. Bush, bombeiros de Nova York, parada militar hindu com mísseis, cirurgia plástica, cúpula Ásia-Pacífico de 2001, bienais internacionais de arte, cães clonados, campos de petróleo, trabalhadores migrantes nas cidades grandes, imigrantes ilegais, computadores, telefones celulares, skyline de Shangai, eleição presidencial em Taiwan, Presidente do Irã Mahmoud Ahmadinejad, Fidel Castro, Presidente Hugo Chavez, Kim Jong II, entrega dos prêmios dos jogos olímpicos de 2001, Junichiro Koizumi (Premier Japonês) visitando o templo de Yasukuni, represa da Três Gargantas, imitação chinesa do “American Idol”, síndrome severa de doença respiratória aguda.
O último registro acima, o da falta de fôlego, parece resumir todo o nosso tempo!
Monumento Não Transparente
(Foto Sandra Beatriz Zarur)
Monumento Não Transparente: detalhe
(Foto Sandra Beatriz Zarur)
Todas as obras consideradas neste ensaio têm em comum uma visão da política. Seja a da política dinástica da corte de Afonso IV e Pedro I de Portugal, seja a denúncia dos horrores do meio do século XX ou a perplexidade do começo do século XXI. Tocam-nos de maneira muito especial, pois, por detrás, existe uma história que nos fala muito de perto.
O nome da obra já é parte da obra, da atribuição de um significado. Miró foi um grande poeta na criação dos nomes de seus trabalhos. Coisas como Mulher Pássaro na Noite. Porém, em Miró, o drama e a história passam ao largo. A forma na escultura ou na pintura tem sido claramente relacionada ao nome da obra, caso, por exemplo, do Pensador de Rodin ou das bailarinas de Degas ou, ainda, de milhões de outras representações mais ou menos naturalistas. Falta-lhes, porém, uma história, um drama associado, um “texto”vinculado, pois o “texto” se resume à propria obra e ao que retrata. Já na peça abstrata, sem qualquer enredo associado, o nome pode ser importante, mas cabe ao observador criar um drama ou uma história para cada peça. Pode tentar, também, apenas “sentir”, o que pode não ser fácil, quando se vê um grande número de obras no espaço do museu.
A idéia de tempo na obra de arte varia de acordo com o contexto em que foi produzida. O túmulo de Inês manifesta a indignação com a ruptura da ordem natural das coisas, a execução da mulher amada que poderia, de outra forma, envelhecer, criar os filhos e reinar placidamente ao lado do marido. É a visão estática medieval do tempo, que D. Pedro procurou restaurar, tornando eterno o testemunho de seu amor. Não vive, envelhece e reina ao lado de Inês neste mundo, mas busca fazê-lo no outro.
Calder e Smith também reagem à ruptura da ordem da vida, devido à guerra e ao martírio de milhões de inocentes. Sua arte é, ela mesma, instrumento de combate em defesa do ser humano. O certo e o errado são por demais evidentes. Operam uma idéia de tempo acelerado,cuja diminuição da velocidade é previsível no futuro, após o fim do conflito, com o encontro de um novo equilíbrio. O tempo de Calder e Smith, tempo de guerra, é o tempo “histórico”, por excelência. Os nomes das obras, Fonte de Mercúrio e Medalhas da Desonra não poderiam ser melhores. Os dramas por traz dos nomes e das formas esculpidas são vividos por toda a humanidade da época em que foram concebidos.
Cai Guo-Qiang associa forma, nome, tempo e drama de época, de forma absolutamente consciente! Os nomes falam por si mesmo e muito dizem sobre a obra. Induzem a reação do observador. Nosso mundo está retratado nos crocodilos esfaqueados e desesperados e no nome da obra Siga Adiante Nada a Ver Aqui. O contraste com a indiferença estática da skyline de Manhattan do Monumento Transparente e o augúrio de tempos ruins em Céu Claro Nuvem Negra, tudo converge para o Monumento não Transparente.
O nome Monumento não Transparente já fala, em duplo sentido, da impossibilidade de compreensão do mundo de hoje. Não há, como em Calder e Smith, a transparente clareza nos juízos opostos do bom e o mal, pois, no trabalho de CaiGuo-Qiang, Bush e Bin-Landen estão lado a lado, no mesmo nível. Não há hierarquia de relevância, pois Harry Potter e a guerra estão no mesmo plano. A informação banalizada tudo nivela. Existe, porém, a sensação de horror, da desumanidade de tudo isso, um intenso mal estar, que nos leva de volta à Ceu Claro Nuvem Negra. O Monumento Não Transparente acelera infinitamente o tempo, exprimindo a velocidade na comunicação e o improcessável volume de informação do mundo em que vivemos. Vertigem e falta de ar!
A inovação se faz, também, na bricolagem de materiais e técnicas. A pós-modernidade de Cao Guo-Qiang já transparece no fato de ser um artista chinês, trabalhando com temas e linguagens universais e não com temas locais e arte tradicional chinesa. Entretanto, os alto relevos do Monumento Não Transparenteforam esculpidos com técnica tradicional chinesa. Como em Céu Claro Nuvem Negra: haverá algo mais chinês do que fogos de artifício?
A exploração consciente da relação entre nome, enredo, mito, drama, forma e atribuição de significado poderá abrir novos caminhos para a arte, como demonstra a obra de Cao Guo-Qiang.