Antigamente, “visitar um afilhado” era um pretexto usado pelas senhoras para ver as amigas. Meu padrinho Abgar Renault, poeta excelente, e sua esposa, minha madrinha Inês, levavam muito a sério suas obrigações a meu respeito. Inês saía de sua casa na Lagoa para me visitar na Gávea e trazer presentes. Sempre brinquedos:garbosos hussardos de chumbo ou impressionantes aviões à pilha com hélices que rodavam, andavam e faziam barulho – maravilha tecnológica do pós-guerra, hoje quinquilharia corriqueira. Que bom! Nada de roupas da loja “Príncipe, veste hoje o homem de amanhã”.
Por vezes, Inês vinha acompanhada de sua mãe, D. Alice, com mais de 70 anos, sempre elegante em seus “tailleurs”, empertigada e séria, ao lado da filha alegre e brincalhona. Muitos anos depois, li o encantador “Minha Vida de Menina”, sem saber que D. Alice era a mesma adolescente sapeca Helena Morley, que sob pseudônimo, o havia escrito. Tão logo soube, relacionei a maneira de ser de D. Alice com o aprendizado que Helena Morley descreve ter recebido de suas tias inglesas.
Minha Vida de Menina é o diário de uma menina de quinze anos escrito em Diamantina, em 1895. Jóia literária, tem o interesse adicional de descrever a vida no interior do Brasil, no final do século XIX, na mesma Diamantina de JK, nascido um quarto de século após Helena Morley. No prefácio, Helena Morley alerta seus filhos e netos para não se comoverem com a pobreza de sua juventude, pois havia um grande amor no seio da família. Esta passagem resume a contribuição do livro para o antropólogo, o do papel da coesão da família, bem como as tensões e contradições da estrutura familiar.
Minas Gerais entrou em decadência econômica após o período do Ouro, no final do Séc. XVIII, e só começaria a se recuperar dois séculos depois. O ciclo do Diamante em Diamantina durou bem mais, até o terceiro quarto Séc. XIX: era decadência depois da decadência.
O pai de Helena, filho de um médico inglês,insistia no garimpo, mesmo após seu esgotamento na região. Por isto, as dificuldades econômicas eram diárias. A mãe de Helena fazia salgadinhos vendidos por empregados nas ruas da cidade. A avó abastada procurava ajudar a filha em dificuldades, enfrentando a oposição do seu outro filho, bem de vida. Havia uma grande tensão entre o elevado status da família, a afluência do tio e a falta de dinheiro em que vivia o grupo familiar. Assim é que, em um dado momento, só resta uma jóia da mãe. O pai, contra a vontade da esposa, que a considera como de propriedade futura de Helena, empenha o brilhante para prosseguir na sua aventura econômica e Helena, sem o conhecimento da mãe, vende o suporte de ouro da mesma jóia para comprar um uniforme para ir à escola. O conflito devido à venda da jóia envolvendo o pai, a mãe e a filha é superado pelo enorme afeto que existia entre todos e que os levava a se perdoarem.
Ir ao colégio obrigava a ter um mínimo para vestir-se. É verdade que a mulher mais bonita que conheci, mineira, filha de um advogado ilustre, com quinze anos de idade ainda se vestia com um uniforme de brim que, de tão surrado, mudara de cor. Portanto, o estado da roupa das crianças devia resultar do aperto nas finanças domésticas decorrente da decadência histórica da economia da província. Daí hábitos de pessoas até ricas, como os de aproveitar latas usadas para fazer canecas, ou melhor, “canecos”. Por isto, a preocupação de Helena com suas vestes devia refletir um estado verdadeiramente terminal.
Outro aspecto interessante é o fato das mulheres possuírem os pequenos animais domésticos. As aves domésticas e os ovos pertenciam às mulheres, no Brasil tradicional, à semelhança do que é descrito em monografias sobre a Irlanda, por autores como Sólon T. Kimball (ver The Irish Countryman). Parece ser mais um dos muitos traços milenares da fímbria atlântica céltica, que se repete no Norte português e no Brasil. Por algum tempo, o único bem pessoal de Helena era uma galinha Carijó. Vivia pensando no que fazer com o dinheiro da venda dos ovos. Conheci meninas mineiras que tinham como brinquedo galinhos e galinhas Garnizé, proporcionais à estatura de suas donas.
O laço entre avô, avó e netos é sempre muito especial, como estou aprendendo nesta fase da vida, mas o de Helena com sua avó era aquela amizade que cresce com o convívio. Que faz cada uma esperar que a outra apareça. Corria para a casa da avó, quando o desespero tomava conta. Era consolada pelo carinho da velhinha. Seu último gesto antes de morrer nos braços da neta foi mostrar-lhe o esconderijo daquela jóia de família, que o pai havia vendido e que lhe rendera um uniforme escolar. Havia comprado, de volta, para dar a Helena.
Questão pouco explorada é a das jóias de família. O argumento de que “pertence à Helena”, usado pela mãe tentando evitar que o pai vendesse a jóia, bem como, o presente que, no momento de sua morte, a avó faz à Helena manifestam a continuidade da família e das pessoas da avó e da mãe, por meio daquele objeto. Jóias de família podem ter para as mulheres, a mesma simbologia das coroas dos monarcas.
Foi doída a luta entre a mãe de Helena e seu tio, pela herança da avó. O irmão da mãe queria tomar para si tudo o que a velhinha havia, espontaneamente, dado, em vida, à filha necessitada. Aqui há um problema essencial para a sociologia da família brasileira: a contradição entre a regra que prescreve sua unidade e a regra que estipula que a herança deva ser distribuída individualmente. O momento do inventário dos bens de um falecido é de extrema tensão no interior da família, pois há um conflito de normas opostas. Uma privilegia o grupo e a outra o indivíduo. É normal que, durante a distribuição de bens, além do interesse econômico, aflorem questões como a da continuidade da família. Jóias, móveis, objetos de arte e imóveis assumem importância emblemática. Outro aspecto é a competição pelo afeto da mãe ou do pai, como se em cada objeto houvesse uma carga do carinho da pessoa morta. Herdar aquele objeto é guardar a memória do afeto. A competição pela herança torna-se uma disputa por afeto, como os filhos voltassem a ser crianças lutando pela atenção do falecido.
É notável que Helena tenha se casado com seu primo, filho do tio com o qual se dava a competição pelo dinheiro da avó. O casamento de primos é comum em descrições da cultura da elite brasileira tradicional. Porém, pela leitura de “Minha Vida de Menina” percebe-se que o casamento de primos ia além da clássica função de “manter a propriedade na família”, pois operava para restaurar a paz no grupo familiar, ameaçada pela regra da herança individual. Assim, a norma do casamento de primos superava o conflito entre irmãos e entre regras sociais contraditórias, pois a herança coalescia para os dois ramos da família.
O pai de Helena Morley largou o garimpo para trabalhar em uma firma inglesa. O conhecimento da língua inglesa aprendida em casa tornou-se crucial para sobrevivência e felicidade da família, o que já nos conduz a um novo ciclo da história econômica brasileira que continua até o presente.
Penso no afeto que enchia a vida de Helena Morley. O mesmo das famílias brasileiras de cem anos depois. Muito diferente da enorme distância entre pais e filhos, nos Estados Unidos. Até desumanos traficantes de droga usam o primeiro dinheiro que ganham para ajudar a mãe favelada. O afeto na família está vivo e forte, embora tudo o mais esteja desmoronando. Por isto, ainda tenho esperança que, um dia, brasileiros seremos capazes de projetar afeto além dos limites de nossas famílias e reconstruir este País em frangalhos.