Está crescendo a consciência da perda do rumo da história, um saudosismo de um tempo em que os brasileiros sabiam para onde ir. Integrando esse movimento, a Rede Globo está lançando a série JK e os cinemas estão apresentando os filmes Vinícius e Vida de Menina, baseado no maravilhoso livro de Helena Morley. Este é o primeiro pequeno artigo, neste site, sobre este movimento de consciência de perda da idéia de nação.
Muito justo que JK seja reconhecido como herói. Desde o final de seu mandato, que este autor, então, com 14 anos de idade, tem, com bons motivos, permanecido na oposição. Essa atitude teve duas hesitantes exceções: as dos governos Geisel e Itamar, mais por contraste com os demais do que, propriamente, por seus méritos. Geisel fez a abertura, tentou dar um fim à tortura de presos políticos e implantou uma política de defesa da economia nacional, apesar de fiascos enormes como a ferrovia do aço, o programa nuclear e vários outros. Já Itamar foi honesto – uma raridade nos tempos que correm – enfrentou o Banco Central já, então, transformado no interventor do setor financeiro no coração do governo, e entregou, não por acaso, a economia com a maior taxa de crescimento da última e da presente década. Conheceu uma das piores campanhas de difamação promovidas pela imprensa brasileira, talvez devido à sua posição contrária aos interesses financeiros que destroem o Brasil.
Criança ainda, conheci Juscelino, quando governador, por intermédio de meu tio, Coronel Nélio Cerqueira Gonçalves, Comandante-Geral da Polícia Militar de Minas Gerais. Não é exagero dizer que a posse de JK deve-se, em boa parte, ao dispositivo militar organizado em Minas, no tempo em que as polícias militares eram exércitos estaduais, que pesavam decisivamente no jogo político do País. Em nossa casa no Rio de Janeiro, na Gávea, houve várias reuniões conspiratórias para que a vontade das urnas acontecesse.
Guardo na memória, em que pese minha pouca idade quando as ouvi, conversas sobre a aquisição de um grande número de caminhões franceses para o transporte de soldados. Esses veículos foram particularmente úteis quando da concentração de tropas da polícia mineira segmentada em unidades pelo Estado e seriam, ainda, para compensar sua inferioridade numérica com maior mobilidade. Contou-me, meu tio Nélio, que quando Juscelino perguntou-lhe o que necessitava para armar “para valer” a polícia, percebeu sua intenção de candidatar-se à Presidência da República. Sua primeira resposta foi a solicitação de um substancial aumento de soldos, principalmente, para os praças.
Estavam previstas algumas ações do tipo “comandos”. No alto do morro que pertencia ao terreno de nossa casa da Avenida Portugal, em Petrópolis, teriam sido cavadas trincheiras,esperando o deslocamento noturno, por estradas secundárias, de uma coluna originária de Juiz de Fora, que iria atacar, de surpresa, o 1º Batalhão de Caçadores do Exército localizado embaixo,do outro lado. Para tanto,a área foi cuidadosamente inspecionada por oficiais mineiros. Tão logo começassem os combates, uma desguarnecida coluna de tanques estacionada em Juiz de Fora seria capturada por soldados da polícia mineira que, tendo servido o exército em regimentos blindados, sabiam como manejar esses veículos.
Em Abril de 1955, Juscelino renunciou ao governo de Minas para candidatar-se à Presidência. Assumiu o Vice-Governador Clóvis Salgado que, lealmente, levou à frente a ação política e militar para garantir sua posse. A idéia era conflagrar o Brasil, fechando as fronteiras mineiras, para que o custo do golpe militar em gestação fosse demasiado alto. Típica ação dissuasória. Se esta não funcionasse, esperava-se a possível adesão de setores do Exército ou de outros estados.
Fez-se a concentração de tropas no Estado e o grosso do 2º Batalhão de Polícia de Juiz de Fora, retirou-se durante a noite, com todo o equipamento, para posições defensivas perto de Conselheiro Lafaiete, onde a resistência seria mais fácil, uma vez que em Juiz de Fora se concentravam as forças federais. A manobra, discreta e rápida, foi considerada “brilhante” por militares que acompanhavam os acontecimentos. Clóvis Salgado daria voz de prisão ao General Comandante da Guarnição de Belo Horizonte, se não aderisse ao movimento.As pontes das rodovias de acesso ao território estadual seriam explodidas. Minas esperava resistir, por si mesma, cerca de um mês, para ganhar tempo e precipitar alianças indefinidas. Mesmo levando em conta a superioridade em combate da jagunçada da polícia mineira, motivada e disciplinada,sobre os adolescentes conscritos do Exército, as forças federais também tinham suas tropas profissionais. Além da inferioridade numérica (de dez a quinze para um), o estado contava, apenas, com unidades de infantaria leve e não dispunha de artilharia, blindados e aviação. A grande preocupação, do ponto de vista militar, era a defesa do Oeste do Estado e do Triângulo Mineiro, onde faltavam as montanhas que sempre protegeram Minas Gerais.
A ordem de Juscelino era, se preciso, lutar “até o fim”, demonstrando a mesma coragem com que, mais tarde, defendeu a liberdade, construiu Brasília e industrializou o Brasil. A democracia foi restaurada, antes da eclosão da Guerra Civil, quando, no dia 11 de Novembro de 1955, o General Lott, Ministro da Guerra, decidiu pela vigência da Constituição e contra o golpe.
Em nossa casa da Gávea foram, também, realizados encontros, dos quais participaram meu pai e meu tio, os geógrafos Jorge Zarur e Speridião Faissol, de onde surgiram contribuições para o Plano de Metas que o novo governo implantou. A geografia era considerada, então, uma disciplina aplicada ao planejamento, tão importante quanto a economia. Em uma das vezes, vi aparecer Josué de Castro durante uma reunião, mas não sei se participava da formulação do plano ou se apenas nos visitava como amigo da família, o que fazia com freqüência.
Viemos para Brasília com Juscelino, em 1960, e na noite de 1965, em que teve seus direitos políticos cassados pelos militares, abrigou-se em nossa casa, na SQS 305, antes de viajar para o Rio de Janeiro.
Juscelino era simpático, corajoso e dotado de uma lealdade sem fim ao povo brasileiro. Uma personalidade de época,na qual o mais importante não era ganhar dinheiro, mas fazer alguma coisa boa e relevante. Acreditava em idéias, hoje, quase desaparecidas como as de “honra”, “dignidade”e “pecado”!
Que falta elas fazem!
* – agradeço ao Cel. Affonso Heliodoro pela leitura e crítica de uma primeira versão deste texto