De um lado, os que desejam transformar o Brasil em Estados Unidos. Do outro, os que querem afirmar uma identidade autônoma para esta terra. Os que concebem a luta de raças como inerente à condição humana e os que a entendem como desgraça, anomalia histórica construída pelo poder espúrio, causa maior de horror e sofrimento. O livro de Demétrio Magnoli “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial” inscreve-se nesta última posição.
O novo livro de Demétrio Magnoli é contribuição maiúscula para que o povo brasileiro vença um dos seus maiores desafios, no momento em que universidades instituem cotas para estudantes por critérios raciais e o Poder Executivo cria uma secretaria destinada à promoção do racismo. Instante em que o Congresso Nacional propõe o chamado “Estatuto da Igualdade Racial”, que incorpora à lei o posicionamento de ativistas étnicos abrigados em ONGs mantidas por generosas contribuições de fundos norte-americanos.
Escrito em linguagem accessível, “Uma Gota de Sangue” reúne uma quantidade impressionante de informação. Descreve o que os cientistas do passado e do presente disseram a respeito da classificação dos seres humanos pelo critério de raça. Investiga o papel do conceito de raça na história do pensamento científico e suas repercussões na vida política, sua relação com a expansão colonial européia, com a organização social norte-americana e com o nazismo alemão. É enfatizada a importância dos censos de população na divisão dos povos.
A etnicidade configurada pelo conceito de raça vai sendo trabalhada ao longo de livro em viagem pela história social e pela geografia. Da África do Sul e dos Estados Unidos o fio do argumento atinge o conceito de multiculturalismo, na visão de Bourdieu e Wacquant, outra expressão da “nova vulgata” da matriz político/cultural norte-americana, como é o neoliberalismo em economia. É evidenciado o papel central da Fundação Ford no apoio financeiro ao pensamento acadêmico racial e a “movimentos raciais” e o lugar de Barack Obama no enfrentamento do racismo.
Magnoli desenvolve uma análise do desenlace multiculturalista da história recente da Bolívia. Demonstra como a construção política da etnicidade aponta para a divisão do povo e, eventualmente, do estado boliviano em um ambiente de competição pela riqueza mineral, hoje concentrada nos campos de gás e petróleo da Amazônia boliviana. Afirma: “A nova Bolívia das nações étnicas que se oficializam, acalentam narrativas de sangue e honra, cultuam heróis ancestrais e reclamam direitos de autogoverno parece-se cada vez menos com uma nação”. Pergunto: haverá herói mais perfeito para a construção da nação uma e solidária do que a do brasileiro Rondon? Mestiço com cara de índio investido dos emblemas de poder do estado brasileiro.
São relatadas as tentativas de reassentamento dos negros norte-americanos no Continente Africano e, na escola, o ensino do ódio oficializado na divisão dos povos. Gigantesca tragédia foi a recente guerra entre tutsis e hutus nos países próximos aos grandes lagos africanos. Cerca de quatro milhões de mortos devido a uma classificação racial dos seres humanos, no começo, pensada por intelectuais europeus aplicada ao censo e à “política social” pelos colonizadores belgas.
Em outra parte do livro, o autor nos conduz ao Oriente. O sistema de castas, na sua forma atual, resulta do pensamento de intelectuais e políticos ingleses. Antes do domínio britânico, o sistema de castas variava em estrutura e nível de consolidação, de estado para estado, dos muitos que integravam o mosaico político hindu. A criação de castas resultou em um país dividido e conflitado. Na Malásia, a supremacia malaia e os direitos assegurados aos malaios frente aos chineses étnicos resultam em um sistema brutal e injusto. O ponto de partida foi, de novo, o colonialismo inglês, da mesma forma que a divisão étnica do Brasil entre negros e brancos resulta da intervenção cultural estrangeira.
A viagem a que nos leva Magnoli pelo mundo, pela história e pelo pensamento científico aporta no Brasil dos governos FHC e Lula. Discute as propostas de leis raciais, com destaque para o chamado “Estatuto da Igualdade Racial”, cujo nome representa um notável exercício do que George Orwell denominou “duplipensar” em seu livro “1984”.
A leitura de “Uma Gota de Sangue” explicita a construção ideológica de uma nação negra separada no Brasil. Para tanto a história é reescrita. É negada a honra a negros, brancos e mestiços que participaram do movimento abolicionista, cuja vitória Manuel Bomfim credita aos poetas brasileiros, como Castro Alves. Magnoli descreve, ainda, a importação de uma biologia racial que identifica doenças exclusivas de negros, que necessitariam de um sistema de saúde a parte. Os defensores dessas medidas parecem não perceber que essa maneira de pensar justificou a eugenia nos Estados Unidos e na Alemanha Nazista.
A obra aborda o papel das estatísticas na divisão do povo brasileiro. Particularmente brutal contra índios e mestiços é a previsão contida no Estatuto da (Des)Igualdade de Racial de que todos os pardos passem a ser considerados como “afrodescendentes”. Com isto, os morenos brasileiros deixam de ser mestiços de negros, de índios e de brancos e são considerados uma subseção relativamente impura da raça negra, a qual são concedidos benefícios, como cotas, não por serem brasileiros pobres, mas por terem supostos ancestrais africanos. Se isto não é racismo, o dicionário está errado ou como certa vez disse um personagem de Lewis Carrol: “o significado das palavras não interessa, interessa é quem manda.”
O livro de Demétrio Magnoli integra um amplo movimento de intelectuais comprometidos com as idéias de nação, de povo e de identidade brasileira, por isto, opostos a interpretações raciais. Além de seus muitos méritos acadêmicos e literários seu texto é engajado no mais importante debate da atualidade sobre o Brasil que queremos.
Para isto é que existem os intelectuais.