Resenha de “Raça como Questão: História, Ciência e Identidades no Brasil”, livro organizado por Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos.

O livro reúne artigos previamente publicados, desde 1998 em periódicos especializados. Trata-se de leitura importante não apenas para os que se interessam pela candente questão da racialização do Brasil, mas também, por todos os que desejam estudar as múltiplas conexões entre conhecimento científico e sociedade no contexto brasileiro.

Os diversos campos científicos possuem vínculos particulares com a sociedade. A astronomia de Galileu destruiu a cosmologia milenar respaldada pela Igreja e alterou a percepção do lugar do homem no universo, como nos mostra a magnífica peça de Bertold Bretch sobre o tema. Mas, a biologia é especial no que diz respeito a seus efeitos na organização da sociedade: noções de biologia criam, diretamente, identidades e unidades sociais particulares. Biologias, inclusive a nossa biologia ocidental do século XXI, concebem características que as pessoas consideram inalteráveis e que as fazem diferentes umas das outras.

As relações entre biologias e organização social sempre consistiram em preocupação central da antropologia. Lewis Henry Morgan, ao conceituar o que considerava como os diferentes sistemas de consangüinidade e afinidade da família humana, alinhavava traços de biologias divergentes e de suas implicações para a organização social. Décadas mais tarde, Bronislaw Malinowsky iria explicar a precedência da linha materna (incluída a célebre questão psicanalítica da relação com o tio materno) entre os trobriandeses por intermédio da suposta ignorância dos mesmos a respeito do papel masculino na reprodução. Era uma questão diferente da discutida pelos antigos evolucionistas que associavam a incerteza de quem seria o “verdadeiro pai biológico” com o matriarcado. Para esses, os chamados “primitivos” poderiam estar a par do papel masculino na reprodução. Já para Malinowsky, o que havia era o simples desconhecimento do papel do pai na reprodução humana. Leach (1983) criticaria esse ponto de vista de Malinowsky.

Fica a questão: “ignorância da verdade científica da biologia” ou “outra biologia”? “Outra biologia” pensa o autor dessa resenha ao se lembrar dos índios do Alto Xingu com quem conviveu. Os xinguanos não desconheciam a paternidade biológica, mas acreditavam necessárias relações sexuais repetidas para a formação de um novo organismo no ventre materno. E mais, que cada relação sexual contribuía adicionalmente para a formação do novo indivíduo. Como a maioria das mulheres mantinha intercurso sexual fora do casamento com diferentes homens, retorna a questão da ignorância de quem seria o pai biológico (não a do papel masculino na reprodução). A resposta dos xinguanos era a de que, provavelmente, o marido da mãe e pai social seria o principal pai biológico, uma vez que era ele quem mantinha a maior quantidade de relações sexuais com a mãe, no período que antecedia a gravidez. Outros homens poderiam também ser pais em menor grau.

Todos os homens afins potenciais da mãe e de suas irmãs classificatórias, também eram considerados pais biológicos potenciais das crianças por elas geradas. Alguns mais, outros menos. A paternidade compartilhada é uma grande vantagem, pois torna todos os homens pais biológicos potenciais responsáveis pelo bem estar de todas as crianças classificadas como filhos e filhas na terminologia de parentesco. O pai social, presumível pai biológico principal, era considerado o maior responsável pelo bem estar dos filhos de sua esposa. Portanto, o casamento grupal e a paternidade coletiva estão como uma sombra no horizonte de todos os sistemas de metades exogâmicas, mesmo em sistemas de metades não reconhecidas e não nominadas, categorias puramente lógicas produzidas pelo casamento preferencial de primos cruzados bilaterais, como no Xingu.

Mas, há uma terceira possibilidade, além da “ignorância da biologia” de Malinowsky e da “outra ciência”, como no Xingu. Em 1984, David Schneider publicava seu livro “A Critique of the Study of Kinship” em que argumentava que a relação entre biologia e parentesco representaria uma construção exclusiva da cultura ocidental. Portanto, a própria ciência biológica e o critério genealógico seriam inerentes à nossa cultura. A relação universal entre biologia, genealogia e parentesco, ou seja, entre biologia e organização social seria um valor etnocentricamente projetado pelos antropólogos sobre outras culturas. Schneider chega muito próximo da negação da possibilidade de comunicação entre culturas diferentes. Parece-me axiologicamente preferível, a premissa boasiana da “unidade psíquica do ser humano”.

Em outro estudo, sobre o parentesco americano, Schneider enfatiza a relevância da biologia ocidental para a idéia de nação. Até a palavra “nação” seria etimologicamente relacionada a “nascimento”. Biologia, nação e raça estariam juntas. Entretanto, para a maior parte dos antropólogos clássicos, as noções locais de biologia produziriam identidades pessoais e determinariam a filiação a grupos sociais em todas as culturas humanas. Mas, da mesma forma que segmenta a sociedade em famílias e kindreds, a biologia ocidental, por meio do conceito de raça, produz amplas identidades. “Raça” é uma categoria biológica/social construída por uma suposta consangüinidade endogâmica.

O conceito de “raça” da “norma culta” biológica do século XIX e da metade do século XX foi apropriado por diferentes movimentos políticos freqüentemente associados à violência e pode consistir em uma das bases do estado nacional moderno: “this is a White men’s country” afirmam os racistas norte-americanos ao associar raça e nação. Para não falar dos países, inclusive a Alemanha até a pouco, que definiam a cidadania pelo jus sanguini. Em cada estado nacional moderno há uma etnia, muitas vezes definida por um critério racial, que consiste na espinha dorsal de sua identidade. Outros critérios comuns na definição de fronteiras étnicas e na imaginação da nação são a língua, a religião, a alimentação e costumes diversos arbitrariamente selecionados e combinados.

Por isto, faz todo o sentido que vários capítulos do livro de Marcos Chor Maio e Ricado Ventura Santos abordem a questão da viabilidade de um estado brasileiro, dada a população miscigenada do País. De fato, no tempo em que a biologia afirmava a existência de raças e que algumas estariam destinadas a servir enquanto a outras caberia dominar, era essencial provar a viabilidade do Brasil, um país mestiço.

Jair de Souza Ramos e Marcos Chor Maio, no primeiro capítulo, analisam o pensamento de Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha. O estudo é datado, bem do começo do século XIX, mas as idéias desses autores se projetaram em outros pensadores como Oliveira Viana, Manuel Bomfim e o próprio Gilberto Freyre. Tanto nos três “construtores da nação” analisados no capítulo, como nos que os seguiram, há a pergunta central se o Brasil seria  viável apesar das características raciais de seus habitantes.

Sem esquecer os muitos méritos do texto, poderia ter sido discutida a questão central em Euclides da Cunha, a da “raça estabilizada”. Euclides acreditava que a mestiçagem poderia gerar uma nova raça, uma espécie de eixo da nacionalidade. A mistura de índios e brancos que teria dado origem aos bandeirantes teria, também, formado os sertanejos nordestinos, espécie rústica, mas plena de características admiráveis. Se “estabilizada”, isto é, uma vez fixados biologicamente seus aspectos favoráveis, a nova raça originária de índios e brancos seria capaz de garantir a viabilidade da nação brasileira. O estigma lançado por Euclides da Cunha é contra os “mulatos neurastênicos do litoral”. Espero que, por esta razão, o ilustrado Conselho Nacional de Educação não reprima a leitura de “Os Sertões”, como fez com “Caçadas de Pedrinho”.

O segundo capítulo de autoria de Marcos Chor Maio é bem fundamentada crítica da tese de Sidney Chalhoub, de que o higienismo histórico brasileiro resultaria de uma maquinação racista visando o branqueamento do País. Segundo Chalboub, combatia-se a febre amarela, que se pensava molestar principalmente os imigrantes europeus e não a tuberculose, doença de pretos pobres. Marcos Chor Maio contra-argumenta convincentemente que o higienismo brasileiro das duas primeiras décadas do século XX perseguia o ideário neo-hipocrático do sec.XIX. Também os higienistas brasileiros de então contribuíram para evidenciar a viabilidade da nação ao proporem, como por exemplo, fizeram os participantes da Escola Tropicalista da Bahia, que as doenças tropicais, além de fatores climáticos e topográficos, estariam associadas a causas de natureza social e política como a pobreza, a subnutrição, à falta de serviços de saúde pública e à escravidão.

Chalhoub segue a tese de Thomas Skidmore do branqueamento como política das elites brasileiras. Integra um movimento intelectual das últimas décadas de construção da identidade norte-americana, por cultivar o etnocentrismo acadêmico à custa de nações latino-americanas. Tornou-se uma obsessão para muitos brazilianistas e latino-americanistas “provar” que não só os latino-americanos, em geral, seriam racistas, mas ainda, que o racismo brasileiro seria “pior”, no passado e no presente, que o norte-americano. Essas pesquisas contam com o poderoso estímulo dos financiamentos da Fundação Ford, que também é a principal fonte de recursos de algumas das mais importantes organizações do Movimento Negro no Brasil. Nation building por meio da demonstração da superioridade nacional americana, com a valorização de suas relações raciais. Subjacente a autores como Skidmore, ergue-se a tese de que os Estados Unidos não precisam mais se envergonhar dos negros em seus guetos, devido à comparação com o Brasil e outros países. Confinamento em guetos virou virtude democrática em nome do multiculturalismo.

Marcos Maio ao demonstrar que os médicos brasileiros não eram “racistas” volta a defender a tese da viabilidade de uma nação brasileira, como fizeram os médicos que descreve. Ao identificar-se com os seres que estuda, Maio revela, na prática, uma visão fenomenológica característica do trabalho etnográfico. É o historiador que se faz antropólogo e da melhor maneira.

O terceiro capítulo, de autoria de Ricardo Ventura Santos, descreve a história da antropologia física no Museu Nacional entre 1870 e 1930, período no qual se identificam duas fases, a primeira marcada pela figura de João Baptista de Lacerda, e a segunda, que vai de 1910 a 1930, associada à pessoa de Roquette-Pinto.

O pensamento de Lacerda sobre mestiçagem procura resolver o problema da inferioridade racial dos mestiços brasileiros por meio do branqueamento da população. Lacerda supunha existir uma espécie de eugenia formulada pelos senhores de escravo para a “seleção intelectual” dos mestiços mais aptos.

Acho que tem sido exagerada a importância do pensamento de Batista de Lacerda e do “branqueamento” como política das elites brasileiras. O “branqueamento” pode ser entendido não como “lavar o sangue”, mas como metáfora para “amarronzamento” ou “morenização”, lembrando que “branco” e “branqueamento” descrevem, no Brasil, não só a cor da pele, mas, também, a posição social das pessoas. Mulatos de alta posição social são freqüentemente classificados como “brancos”, como acontece, por exemplo, com o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso.

Ex aluno do Museu Nacional, fui saber da existência de Batista de Lacerda ao ler o livro de Thomas Skidmore “O Preto no Branco”. Essa mesma obra que explora a tese do branqueamento como uma conspiração permanente das elites brasileiras, talvez, não por coincidência, apresenta verdadeiro libelo etnocêntrico. Suas primeiras páginas são dedicadas a ferozes críticas à família, à igreja e até as letras brasileiras. O desprezo pela literatura brasileira, exatamente a do período histórico em que Euclides da Cunha e Machado de Assis escreviam suas obras primas, exibe um notável desconhecimento sobre a cultura brasileira.

O fato é que Batista de Lacerda não teve a menor importância na formação de um pensamento social brasileiro. Nunca escreveu um livro importante, lido e discutido nos meios intelectuais, como os de Sylvio Romero, por exemplo. Nunca teve uma presença importante na imprensa. Nunca apresentou conferências, como as de Rondon, que reuniam multidões. Skidmore pinça um artigo escrito em francês apresentado em um congresso científico e o torna paradigma do pensamento maligno da elite brasileira.

Já Roquette-Pinto, que sucedeu Batista de Lacerda como antropólogo do Museu Nacional, foi um pensador importantíssimo. “Impregnada de cientificismo e nacionalismo”, como nos mostra Ventura Santos, Roquette-Pinto procurava a humanidade no “primitivo” e no “civilizado”. Buscava valorizar o povo brasileiro, batendo na tecla de que os mestiços não eram inferiores.

Ventura Santos esquadrinha com perícia o pensamento de Roquette-Pinto. O saldo é o de “um intelectual que, em larga medida, opunha-se a pessimismos no que tange aos atributos biológicos das diversas raças. Acreditava na desigualdade das raças, mas combinava essa crença com a atribuição de importância relativa do meio ambiente, na fórmula neo-lamarckista”.

O artigo seguinte, também de autoria de Ventura Santos é muito original. Analisa a “cultura material”, os instrumentos, que encontrou no Museu Nacional, usados pelos velhos antropólogos para medições cranianas e diversas outras medidas corporais. Faz, através desses artefatos, uma exploração na história da antropologia física no Brasil.

É interessante imaginar um antropólogo de hoje perdido entre ossos, admirado com os instrumentos antigos projetados para medi-los. Muitas vezes, tive que transitar em meio a esqueletos dispersos pelos corredores de museus científicos. Às vezes, pensava em “caveiras” em vez de “crânios”, pois me sentia em verdadeira “viagem à irrealidade cotidiana”, como diria Umberto Eco. Meu primeiro choque com ossos, aliás, choque literal, foi quando, aluno de graduação e estagiário do Museu Paulista com Herbert Baldus, desajeitado, tropeçava e chutava sem querer, a humilde caixa que guardava a ossada de Curt Nimuendajú.

O capítulo V da lavra de Marcos Chor Maio estuda a imagem do judeu em Gilberto Freyre. Sua leitura me levou a recordar que, no caso de muitos autores latino-americanos (ver Zarur, 2009), não se aplica o conceito de “neo-lamarckismo”, pois o termo “raça” é por eles usado como metáfora da idéia de cultura. Há muito mais do que a incorporação de inovações de origem ambiental ao patrimônio genético. Os conceitos de raça e cultura ainda não estavam muito bem separados no discurso científico corrente do começo do século XX. Mesmo Gilberto Freyre, considerado revolucionário por ter substituído o conceito de raça pelo de cultura é muito ambíguo neste ponto. Por isto não é surpresa que Freyre “conceba raça com um construto maleável”, como escreve Maio.

Marcos Chor Maio analisa competentemente as diversas nuances do pensamento de Freyre sobre os judeus. Fica evidente a ambigüidade do autor de Casa Grande e Senzala, pois de um lado situa os judeus como importante raiz ancestral do povo brasileiro. Entendia sua contribuição como essencial e positiva. Como demonstra Maio, o judeu de Freyre é um “judeu mestiço”. Porém, de outro lado, repetia muitos estereótipos a seu respeito, comuns nos anos 30.

O capítulo seguinte (sexto), de autoria de Chor Maio e Ventura Santos, recupera o debate ocorrido após a segunda guerra mundial, sobre o conceito de raça e seus usos. Tal debate deu-se sob o impacto direto do Holocausto. Em 1949, a UNESCO reuniu cientistas para discutir o conceito de raça. Em 1950 publicou uma declaração sobre o tema, que tem sido considerada como um verdadeiro manifesto antirracialista. Alguns cientistas criticaram as idéias ali defendidas o que levou a UNESCO a recuar de sua posição original.

Maio e Ventura Santos resgatam a história da controvérsia iluminada pelas questões éticas e humanas associadas ao conceito raça. Poderia ser interessante explicar o debate, também, por meio das relações entre conhecimento e poder. Explicação que consideraria a competição entre diferentes disciplinas/linhas/departamentos universitários e entre os respectivos paradigmas.

O sétimo capítulo, de autoria de Chor Maio e Ventura Santos, analisa o impacto da ”nova genética” sobre o conceito de raça e na discussão do tema. É discutida, em especial, a repercussão do livro de Sergio Pena, “Retrato Molecular do Brasil”, cujas conclusões apontam para a mestiçagem avassaladora a partir de patrilinhagens basicamente européias e matrilinhagens tanto européias como indígenas, como africanas. Os marcadores genéticos demonstram que o homem europeu apropriava-se das mulheres brancas, negras ou indígenas.

O estudo de Pena foi alvo de reação do movimento negro brasileiro, considerado de “esquerda” e de supremacistas brancos de extrema direita. São notáveis as similitudes entre os dois setores.

O artigo subseqüente assinado por Ventura Santos, Maria Cátira Bortolini e Marcos Chor Maio investiga como identidades biológicas compõe-se com identidade sociais. Analisa o “site” de uma firma norte-americana voltada para levantamentos genéticos para a identificação da suposta etnia, tribo, localidade de origem.,. Seus principais clientes são afro-americanos.

Os brancos podem construir suas genealogias com base em documentos históricos, enquanto os negros podem fazê-lo, agora, com o uso da genética. A investigação genética acontece no caso estudado, por meio da ênfase no lado africano e o esquecimento de ancestrais europeus, pois todos os mestiços norte-americanos são considerados “negros”. A própria investigação é uma afirmação da origem africana, pois existe a rejeição a priori da ancestralidade branca. Da mesma forma, os “brancos” brasileiros, quase todos mestiços, freqüentemente, ocultam sua ancestralidade negra. A manipulação genealógica ocorre nas duas situações.

O nono capítulo assinado por Verlan Valle Gaspar Netto e Ventura Santos é sobre a apropriação de achados científicos. É fascinante assistir ao percurso de Luzia, crânio feminino encontrado em Lagoa Santa, um dos mais antigos registros humanos das Américas. Luiza, como demonstra o artigo vira uma pessoa, “a primeira brasileira”, negra e até militante involuntária do movimento negro. A “verdade científica” pouco importa quando da sua apropriação.

Os dois últimos capítulos são sobre a recente política racial brasileira. O primeiro, de autoria e Chor Maio e Ventura Santos descreve os “olhos da sociedade” e os “usos da antropologia”, por intermédio das cotas raciais, no vestibular na UNB. Os autores no resumo do artigo falam em procedimentos que “ecoam uma perspectiva de raça determinista e essencializada e que, além disso, envolvem a participação de cientistas sociais” para julgar quem é e não é negro. Traduzida para o discurso comum, “perspectiva de raça determinista e essencializada” é, simplesmente, racismo. Envolve pressão psicológica para que o candidato participe do movimento negro, tenha namorado/namorada negros e receba vantagens importantes como a possibilidade de entrar mais facilmente na universidade.

O artigo seguinte, de Marcos Chor Maio e Simone Monteiro discute a racialização da saúde no Brasil. São competentemente documentados os deslocamentos políticos e a historia recente da problemática. Os autores estabelecem muito cuidadosamente, no final, a diferença entre “a naturalização das hierarquias raciais do século XIX” com “os partidários do racialismo do novo tipo, que acreditam que as categorias produzidas pelos opressores como o conceito de raça, podem informar utopias libertadoras”.

Não vejo tal diferença tão acentuada, uma vez que o conceito de raça supõe poder em sua semântica. A semântica de “raça”, como a de outros conceitos, incorpora toda a experiência histórica de sua aplicação ao longo do tempo. Tratá-lo como “categoria”, como ontologicamente “não essencializado”, embora consista em procedimento adequado para a antropologia, não quer dizer que se vá apagar, como em um passe de mágica, seu conteúdo emocional de discriminação, segregação, ódio e hierarquização, quando usado na formulação e execução de políticas públicas. Evidencia neste sentido é apresentada no próprio capítulo anterior sobre cotas raciais na UNB e por dezenas de outros exemplos. Além disso, “raça”, conceito biológico, permitam-me a redundância intencional, é “essencialmente essencializado”, pois não há como separá-lo da atribuição de características biológicas. Seu tratamento como construção social para justificar políticas públicas não passa de artifício para mantê-lo exatamente onde sempre esteve. Faz o oprimido igual ao opressor.

Alonguei-me nessa resenha, pois o livro de Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos é fascinante. Desperta a reflexão, é bem escrito, inteligente e original.

Ótima leitura que a todos recomendo.

Bibliografia

Bertold Brecht, Vida de Galileo, trad.Yvette Centeno. Lisboa: Portugália Editora, 1970.

Leach, Edmund “Nascimento Virgem” in Edmund Leach (organizador: Roberto da Matta). Rio de Janeiro: 1983.

Morgan, Lewis Henry Systems of Consanguinity and Affinity of the Human. Family. Lincoln: University of Nebraska Press, 1997.

Schneider, David A Critique of the Study of Kinship. Ann Arbor: The Universisty of Michigan Press.

1987. American Kinship: a cultural account. Chicago: The University of Chicago Press, 1980 (segunda edição).

Skidmore, Thomas O preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro:. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1976.

Zarur, George de Cerqueira Leite Parentesco, Ritual e Economia no Alto Xingu. Brasília: Fundação Nacional do Índio, 1975.

A Utopia Brasileira: Povo e Elite. Brasília: FLACSO/Editorial Abaré, 2003.

“A Guerra da Identidade” in Série Estudos e Ensaios/Ciências Sociais, Flacso-Brasil: Junho de 2009.

2017-11-02T19:43:28-02:00By |Opinião|