Raízes Étnicas do Brasil: modelos de integração

RAÍZES ÉTNICAS DO BRASIL: MODELOS DE INTEGRAÇÃO

(Conferência apresentada à 38ª Assembléia Geral dos Bispos do Brasil – publicada pela CNBB)

George de Cerqueira Leite Zarur

Quero expressar meu agradecimento `a CNBB, nas pessoas de seu Presidente, D. Jaime Henrique Chemello, de seu Vice-Presidente, D. Marcelo Pinto Carvalheira e de seu Secretário Geral, D. Raymundo Damasceno Assis, pelo honroso convite para proferir esta conferência aos bispos brasileiros. Guardarei, sempre, a lembrança deste momento, com muita gratidão e alegria. Saúdo o moderador desta conferência, o Padre Marcelo Azevedo, Diretor do IBRADES, e todos os bispos e convidados presentes. É uma grande emoção sentir pulsar o coração da Igreja.

Foi-me indicado discorrer sobre o tema “Raízes étnicas do Brasil: modelos de integração”. Vou-me concentrar nas raízes étnicas negra e indígena, aquelas que sofreram os efeitos da escravidão e sofrem, hoje, com maior peso, o da exclusão social e política, lamentavelmente lembrada pela violência gratuita contra índios que, há pouco, se manifestavam em Santa Cruz de Cabrália. Os portugueses serão considerados, na medida em que seu poder colonial impôs as relações étnicas no Brasil e os demais a eles foram forçados a se integrar. Usarei a comparação com o sistema interétnico norte-americano, como metodologia para melhor avançar a discussão. Afinal, a história americana também se construiu a partir das relações entre europeus, índios e negros, e muitas das análises sobre o Brasil e propostas de ação política para o nosso País são produzidas nos Estados Unidos, por pesquisadores norte-americanos.

Cabe, também, uma discussão preliminar do que seja etnia e das implicações deste conceito para as ciências sociais e para o pensamento político. Tal preocupação decorre do entendimento de que conceitos, como armas, podem ferir ou matar. O conceito de “etnia” tem sido particularmente danoso. Sua definição precisa é indispensável para que represente um instrumento de defesa de populações definidas por um critério étnico, e não o contrário.

Etnia é um conceito antropológico que denota grupos humanos que marcam sua identidade por diferenças culturais escolhidas para este fim.

Uma primeira relação do conceito de etnia é, portanto com o de identidade social. Este último conceito passou a ser amplamente utilizado, a partir da década de 70, como marco para novas questões teóricas e para a pesquisa empírica. A partir de então, “identidade étnica” passou a representar um termo de extrema importância. Hoje, o conceito de etnia é, em conseqüência, intrinsecamente associado ao de identidade. Um importante avanço decorrente desta relação foi o abandono da idéia de etnia como algo imanente aos seres humanos. Pelo contrário, passou-se a conceber as distinções étnicas como contextualmente construídas, relativizadas a culturas, histórias, geografias e interesses particulares.

A percepção das diferenças físicas ou biológicas entre seres humanos é, assim, culturalmente produzida, e os efeitos discriminatórios desta percepção, também resultam da ótica de cada cultura particular. Assim, supostas diferenças “raciais” representam, apenas, um critério particular de diferenciação étnica. Comuns são, também, as distinções étnicas definidas exclusivamente por critérios religiosos, caso de sérvios, croatas e bósnios, por exemplo. O número de situações em que “raça”, conceito biológico, é utilizado para a segmentação étnica é muito pequeno e reflete a ênfase dos últimos séculos. No século XVI, Shakespeare apreende este movimento histórico, ao criar a figura trágica de Otelo, triste mouro de pele escura, inferiorizado em seu ciúme, mas, ainda assim, um importante líder militar, casado com mulher branca.

Raça e etnia são conceitos que, embora distintos, carregam uma perigosa proximidade semântica. “Raça” implica elementos biológicos como base para diferenças culturais inatas. “Etnia” também implica diferenças culturais, porém sem causas biológicas. Supostas diferenciações “raciais” são, elas mesmas, critérios culturais de diferenciação entre grupos humanos, ou seja, critérios para traçar fronteiras étnicas, da mesma forma pela qual religião, rituais, roupas, nomes e alimentos são usados para este fim. A diferença entre “raça” e “etnia” é, portanto, sutil, e, por isto mesmo deve ser sempre acentuada.

A questão das identidades étnicas é, ainda, complicada por sua relação com os sentimentos associados com a idéia de nação. Ao contrário das antigas dinastias imperiais que reuniam sob seu governo diferentes povos, a tendência do estado nacional moderno republicano, surgido com a revolução francesa, é a uniformidade lingüística e cultural. No Brasil, a solução mais eficaz para o paradoxo envolvendo diversidade étnica e nação está na tese da miscigenação, que encontraria sua expressão maior na brilhante obra de Gilberto Freyre.

Não se sabe ao certo quantos indígenas viviam no Brasil ao tempo da chegada dos europeus, mas, levando-se em conta o acentuado decréscimo populacional decorrente do contato interétnico, este número devia a chegar a algo entre cinco e dez milhões.

Os índios que os europeus encontraram, aqui em Porto Seguro, falavam uma língua do tronco lingüístico tupi. Eram os tupis litorâneos, como os tupinambás ou tupiniquins, descritos pelos primeiros cronistas, que ocupavam as costas brasileiras de Santa Catarina ao Pará, adentrando as barrancas do Rio Amazonas por milhares de quilômetros. Além dos tupis, o Brasil ainda contava, em seu interior, com grupos indígenas classificados nos troncos jê e aruak, além de uma importante grande família isolada, a carib.

Posteriormente, haveria uma uniformização lingüística, criando-se uma verdadeira “língua brasileira”, o nhengatú ou “língua geral”. Os jesuítas traduziram a Bíblia para a língua dos tupis da costa e passaram a utilizá-la como língua brasileira, a todos ensinada como aspecto da própria catequese. Até finais do século XVIII, era falada em quase todo o território nacional, funcionando mais ou menos como o guarani, hoje no Paraguai. Há não muito tempo, o nhengatú ainda era língua franca em áreas caboclas e indígenas do Alto Rio Negro.

As classificações lingüísticas escondem a enorme diversidade existente entre os grupos indígenas brasileiros. De fato, a distância filogenética entre diferentes línguas do tronco tupi faladas no Brasil é maior do que a existente, por exemplo, entre os povos indo-europeus. Do ponto de vista político, os indígenas não possuíam qualquer sentimento de unidade intertribal. A identidade não era a de “índio”, mas de tupinambá de tal e tal aldeia, ou a de aweti, ou a de awa-canoeiro ou a de tapirapé, e assim por diante. O índio genérico é uma criação do colonizador.

Considerando tal diversidade, que incluía centenas de línguas, milhares de dialetos e de micro-unidades políticas, a maneira mais adequada de se caracterizar a situação dos índios brasileiros é através de uma tipologia ecológica, ou seja, por intermédio da relação entre meio ambiente natural e cultura. Desta forma, nas terras baixas da América do Sul, isto é, fora dos Andes, há dois grandes tipos de grupos indígenas: o primeiro é formado pelos habitantes das florestas tropicais e o segundo, pelos habitantes das savanas e outros campos abertos.

Há cerca de vinte anos, explorei tais diferenças em um estudo, sobre os indígenas do Centro-Oeste brasileiro, investigando o contraste entre os índios de cerrado e os do Alto Xingu, de floresta tropical. As conclusões então obtidas podem ser extrapoladas para a maior parte da América do Sul.

As principais diferenças entre os dois tipos consistem em uma maior população e complexidade social dos grupos do cerrado. Caçadores, organizam sua sociedade a partir da premissa da mobilidade no espaço, do nomadismo interno a uma determinada área e da velocidade nos deslocamentos para raids guerreiros. Enfatizam rígidas e formalizadas classes de idade, além das diferenças entre os sexos na divisão do trabalho e na sua organização interna. Possuem uma agricultura desenvolvida.

Já os índios xinguanos, nossa amostra dos grupos de floresta tropical, são, primeiramente pescadores e classificam como tabu a carne de grandes animais. Estão distribuídos em aldeias com pequenas populações espalhadas à beira de mananciais piscosos. Sua organização interna fundamenta-se, apenas, na divisão do trabalho entre os sexos e, assim, na oposição entre homens e mulheres. É, portanto, menos complexa do que a dos caçadores dos campos abertos, onde, adicionalmente, as hierarquias etárias assumem um papel importante.

Os tupis do litoral tinham populações maiores, ficando em uma situação transicional entre os dois tipos acima descritos. O tamanho de suas populações decorria da sua organização para a guerra, destinada à captura de prisioneiros para o sacrifício ritual.

Todos os grupos indígenas brasileiros partilham, em sua organização original, o fato absolutamente relevante de não constituírem sociedades de classe. As diferenças sociais são mínimas e conferidas por genealogia e status guerreiro. Não há propriedade individual da terra mas, apenas, a de instrumentos agrícolas e a de uns poucos bens pessoais. A organização social depende do sistema de parentesco, do status, e não do contrato. A divisão do trabalho dá-se, essencialmente, entre homens e mulheres e entre jovens e velhos. Desta forma, todo homem adulto é guerreiro, pescador ou caçador, artesão, desenvolve atividades agrícolas e religiosas, além de participar da vida política da aldeia. Em muitas das pequenas comunidades indígenas, o sistema político vigente é o que uma colega antropóloga denominou como sendo de ”anarquia sem caos”, uma democracia ainda mais direta do que a grega, pois inclui todos os homens adultos. As mulheres são excluídas do sistema político, uma vez que a igualdade civil entre homens e mulheres é um fenômeno historicamente recente, do século XX, resultante do progresso tecnológico ocidental, que anula as diferenças físicas entre os sexos no trabalho humano.

Nas comunidades indígenas tradicionais, isoladas do contato com a sociedade ocidental, trabalha-se muito pouco, duas horas e meia por dia, segundo alguns cálculos. Come-se muito bem e tinha-se, antes da chegada dos europeus, um bom padrão de saúde. Não existe nada mais enganoso do que a imagem dos chamados “primitivos” famintos, por não controlarem adequadamente a natureza. Como sobra tempo, dança-se e canta-se muito. É enfatizada a solidariedade, a partilha, a distribuição da riqueza por meio de atividades rituais. Festa, religião e trabalho não são esferas da atividade humana distintas e não se pode separar, com clareza, o sagrado do profano. A exploração dos recursos naturais é realizada de forma a se garantir sua renovação permanente.

Isto não quer dizer que as sociedades indígenas fossem, antes da chegada dos europeus, livres de problemas decorrentes da guerra e de outros fatores. Seus membros eram, porém, em geral, mais felizes do que os homens nascidos em nossa sociedade ocidental contemporânea.

A chegada dos europeus representou um cataclismo para essas pequenas comunidades, iniciando-se, então, um dos mais terríveis genocídios da história humana. Primeiro, a doença. Os índios, simplesmente, não tinham resistência a alguma moléstias, como a gripe e o sarampo. Não mais do que um incômodo passageiro para os portugueses, representavam, para os índios, a morte em larga escala e o fim de sociedades inteiras, algo semelhante à peste negra que dizimou a Europa medieval. Pequenas aldeias espalhadas, com a população dispersa, eram mais protegidas contra essas epidemias. A prática de “aldear” os índios, em grandes reduções, para sua catequese acabou por facilitar a transmissão de doenças e contribuir para o seu extermínio. Os indígenas assim concentrados, tornavam-se, também, presas mais fáceis para bandeirantes em busca de escravos.

Mesmo quando o índio escapava da escravidão e da doença, a desorganização de sua cultura levava à miséria material e moral. A destruição sistemática de valores morais e religiosos e de costumes tradicionais, desestruturava identidades coletivas e individuais, criando um novo índio, bêbado e maltrapilho, que não encontrava qualquer melhor razão para continuar vivendo.

Embora não pudessem livrar-se do pensamento de sua época e do contexto colonial que os envolvia e os fazia seus agentes, era de alguns religiosos a única voz que se ouvia em favor dos índios. Jesuítas, como Anchieta, viviam em conflito com os colonos portugueses. Jamais serão esquecidos os emocionantes sermões do Padre Antônio Vieira, em sua defesa, as leis que conseguiu junto ao Rei D. João IV, e a luta que por eles travou durante toda a sua vida. Na América espanhola, aquele que viria a ser o bispo de Chiapas, o Padre Bartolomé de Las Casas conseguiu ver vitoriosa sua tese de que os índios tinham alma, qualificando-se, portanto, como seres humanos.

Os primeiros portugueses que se instalaram nesta Bahia e em outros lugares, como São Vicente, usaram os índios como escravos e as índias como procriadoras. Como demonstra recente pesquisa de biólogos da Universidade Federal de Minas Gerais, a miscigenação com mulheres índias foi, até mesmo, maior do que com negras, associada à inexistência estatística de cruzamentos de homens índios com mulheres brancas. O fato de no Brasil se falar, predominantemente, o nhengatú, até o século XVIII, devia-se não só à opção dos preceptores jesuítas, mas também, ao fato de ser esta a língua falada em casa pelas mães da maior parte dos brasileiros. Criou-se, assim, uma sociedade de mestiços, os mamelucos, que uniam a avidez predatória dos exploradores coloniais ao conhecimento do ambiente e às técnicas de sobrevivência indígenas.

O sistema de relacionamento com os índios era, no Brasil, inteiramente diverso do norte-americano. Estimulava-se a mestiçagem, devido à falta de gente em Portugal, e os índios eram considerados como súditos reais. Mesmo sem maiores conseqüências práticas, havia leis para sua defesa. Nos Estados Unidos, os indígenas eram considerados como nações autônomas, com as quais se assinavam tratados e se fazia guerra, declaradamente de extermínio, para a desocupação de suas terras para os colonos brancos.

Já no século XVII, relatava-se a virtual destruição das populações nativas que habitavam o litoral brasileiro, seja por doença, seja pelos sofrimentos da escravidão, seja devido a guerras. Os que sobreviviam pertenciam a comunidades com populações originais altas, dentre as quais, por chance estatística, alguns escapavam. Essas populações residuais seriam capazes de, ao longo dos séculos, criar mecanismos de resistência às doenças trazidas pelos europeus e de voltar a crescer. Calcula-se, hoje, em mais de trezentos mil, o número de índios no território nacional. Há bolsões indígenas espalhados por quase todo o País. São, geralmente, sociedades marginais à economia, à política e à cultura nacionais, vivendo uma brutal crise de valores que atinge, mesmo, situações extremas de suicídio coletivo, caso de alguns grupos de Mato Grosso do Sul.

Muitos grupos indígenas que permaneceram no Brasil sobreviveram em áreas de refúgio, regiões ermas, sem maior atrativo econômico para a expansão ocidental. Alguns estabeleceram contatos comerciais mais ou menos permanentes com a sociedade envolvente. Outros permaneceram completamente isolados. Até hoje, nosso País possui, em seu território, populações nativas isoladas, concentradas no Alto Solimões, Rondônia e Acre. Esta situação , possivelmente, se repete apenas na Nova Guiné.

Há os casos mais díspares. Em áreas como Roraima e no Alto Rio Negro, as populações indígenas são numericamente predominantes. Na Amazônia, o mestiço com feições indígenas está em todo lugar. Há, ali, uma sutil gradação social e cultural que vai do índio ao caboclo. No Nordeste, apenas um grupo indígena, os fulniô, de Águas Belas, Alagoas, mantém sua língua nativa. Quase todos os demais agregam-se em torno de um único ritual tradicional, o Toré. No Sul e no interior de São Paulo, a sobrevivência dos poucos índios remanescentes, xokleng e kaingang e guarany, já se deve à política indigenista estatal, pela garantia da terra aos que escaparam dos ataques dos bugreiros, assassinos profissionais, que no começo do século passado os exterminavam para que seu território fosse ocupado por colonos europeus e fazendas de café.

Os índios constituem, claramente, grupos étnicos, com fronteiras sociais bem delimitadas. Já a caracterização étnica dos negros brasileiros é muito mais complicada, devido à ausência de critérios evidentes, comunitários, de delimitação étnica.

Os escravos negros vieram substituir os escravos índios, exterminados rapidamente. Eram, em geral, vendidos por potentados locais a mercadores africanos ou árabes, que os revendiam aos portugueses. A escravidão começava na própria África. Suas sociedades de origem estavam, portanto, articuladas ao que hoje se denomina “globalização econômica” pois, já chegaram ao Brasil presos às correntes do “brigue imundo” de que nos falou o poeta. Originários de etnias diversas e falando línguas diferentes eram amalgamados nas senzalas. Calcula-se que tenham vindo em número de três milhões e, hoje, seus descendentes estão em todo o País.

Este foi outro genocídio em larga escala, consubstanciado pela morte de milhões de seres humanos nos porões dos navios, no excesso do trabalho, na má alimentação e nos castigos físicos. O debate intelectual no interior da Igreja espelhava as contradições da época. O Padre Las Casas, no século XVI, defendia a posse de alma pelo índios, mas não pelos negros! O nosso querido Padre Vieira, como demonstrou o Padre José Carlos Aleixo, antecipou-se a Castro Alves, denunciando o sofrimento dos negros e D. João Evangelista Terra, em seus importantes livros sobre a catequese de índios e negros no Brasil Colonial, demonstrou o reconhecimento dos direitos religiosos a negros e sua defesa pela Igreja, a partir do sec XVI. Por outro lado, de acordo com José Murilo de Carvalho, nos finais do sec. XVIII, D. José Joaquim de Azeredo Coutinho, Bispo de Pernambuco e, posteriormente, Inquisidor-Mor do Santo Ofício defendia acaloradamente a escravidão, em seus escritos.

É verdade que seria disseminada no pensamento social brasileiro a tese do “bom senhor de escravos” brasileiro, que o historiador norte-americano Frank Tannenbaum trataria de desenvolver nos finais dos anos 40, contrastando os sistemas escravocratas norte-americano e brasileiro. O argumento principal é o de que a escravidão no Brasil não teria sido tão cruel quanto nos Estados Unidos, pois, na tradição católica, os escravos ocupariam um lugar na sociedade, tendo o direito ao batismo, a construir suas igrejas, a pertencer a irmandades religiosas, além da possibilidade de constituir família. Com o tempo, já nos séculos XVII e XVIII, não se discutia, na América Ibérica, se os negros tinham ou não tinham alma, pois já não havia mais dúvidas a respeito de sua essencial humanidade. Assim, era-lhes permitida a alforria, fosse como retribuição a serviços prestados ou reconhecimento de paternidade de mestiços, fosse por compra, uma vez que podiam trabalhar por conta própria, quando não estivessem prestando serviço ao senhor. Era aos ex-escravos, até permitida a posse de escravos. Tannenbaum relaciona a escravidão brasileira com a romana, onde tal relação jurídica não era considerada um estigma definitivo, biológico, mas um infortúnio econômico temporário. Daí o título de seu pequeno clássico sobre o tema: “Escravo e Cidadão”.

O contraste com os Estados Unidos, especialmente com os estados do Sul, era, de fato, impressionante. Sua humanidade era rejeitada por postulado genético pois, à semelhança das criações de cavalos ou de gado, disseminaram-se, nesse País, as fazendas de criação de escravos. Era escolhido o escravo mais saudável e forte como reprodutor, sendo-lhe entregue mulheres selecionadas para que a prole alcançasse um melhor preço no mercado. Os direitos de organização religiosa, o primeiro passo para a afirmação de sua cidadania, só seriam alcançados muito tardiamente.

No mundo ideal das normas, o ponto de vista de Tannenbaum é defensável, pois alguns direitos, atribuídos aos escravos no Brasil, inexistiam nos Estados Unidos. Na prática, é desmentido pelos instrumentos de tortura, pela morte precoce devido ao excesso de trabalho e à falta de alimentos, pelo estupro sistemático da mulher negra pelo senhor branco, bem como, pela multiplicação dos quilombos, cujo número atesta as reais condições de vida nas senzalas brasileiras. Eram em pequeno número os negros que tinham acesso àqueles elementares direitos.

A denúncia da existência de preconceito contra negros no Brasil iria acontecer, gradativamente, a partir do anos 50. De transcendental importância, neste sentido, foi a realização de uma pesquisa financiada pela UNESCO, que incluiu sociólogos e antropólogos das universidades de São Paulo, da Bahia e de Columbia, em Nova York. O pensamento produzido nas universidades, a partir dessa investigação pioneira, iria popularizar-se, ao longo das décadas e influenciar a maneira pela qual os brasileiros passaram a se ver.

A equipe de sociólogos paulistas, liderada pelas figuras notáveis de Florestan Fernandes e Roger Bastide, incluía alguns de seus alunos mais conhecidos, como Otávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Uma das teses centrais da pesquisa então desenvolvida, apresentada no livro de Fernandes “A Integração do Negro na Sociedade de Classes”, fazia a ponte entre o marxismo e a questão étnica. Ficou evidenciada a existência de fortes atitudes de estigmatização de negros no Brasil, ou seja, a existência do preconceito e que este decorria da competição presente na sociedade capitalista. Onde o capitalismo estivesse mais avançado, o preconceito se faria sentir com maior força.

A pesquisa na Bahia, desenvolvida sob a liderança dos antropólogo Thales de Azevedo e Charles Wagley, chegou a conclusões extremamente interessantes. A equipe incluía, dentre outros, o estudante de pós-graduação Marvin Harris, que viria a ser um dos mais importantes antropólogos norte-americanos de sua geração. Como a investigação realizada em São Paulo, também contribuiu para demonstrar que o Brasil não era nenhum paraíso racial e que o preconceito fazia parte do cotidiano da vida brasileira. Porém, enquanto a pesquisa paulista referenciava a situação brasileira a um quadro interpretativo geral, o marxismo, a pesquisa realizada na Bahia partia da comparação entre as situações empíricas brasileira e norte-americana.

Assim, os pesquisadores norte-americanos e brasileiros constataram que os sistemas de classificação étnica brasileiro e norte-americano diferiam radicalmente. Nos Estados Unidos, o critério de classificação de uma pessoa como negra é biológico/racial. A biologia popular é elevada ao plano legal, de forma que, por exemplo, no estado de Mississipi, quem tiver 1/8 de “sangue” negro é considerado como negro. Ser negro, nos Estados Unidos é, portanto, uma questão de “contágio” genealógico, o que leva a que existam pessoas louras, de olhos azuis, com aparência nórdica, legal e socialmente classificadas como negras. Há, desta forma, uma oposição absoluta entre negros e brancos, sendo o mulato, a classe intermediária, uma categoria sociologicamente inoperante. É o jus sanguinis, aplicado ao sistema de classificação étnica, segmentando internamente a sociedade.

Já, no Brasil, a classificação étnica parte da aparência dos indivíduos. Uma pessoa clara, com traços afilados, jamais será classificada como “negra”, mesmo tendo algum ancestral negro muito próximo. Não há, no Brasil, a oposição absoluta entre negros e brancos, mas um continuum que vai do branco louro, ao chamado “negro puro”, passando por dezenas de categorias intermediárias, como mulato claro, mulato escuro, mulato sarará, e muitas outras. A cor da pele, isoladamente, só classifica alguém como negro se a pessoa for muito escura. Traços como a forma do nariz, dos lábios, e o tipo de cabelo são igualmente importantes.

Outro aspecto na classificação étnica brasileira é a posição social do indivíduo, gerando o que se denominou de “raça social”. Quanto mais elevada o status de alguém, maior a tendência a ser considerado como “branco”. Inversamente, quanto mais pobre, mal vestida e menos educada a pessoa, maior a tendência a ser percebida como mulata ou negra. Dessa mesma pesquisa, resultou a constatação de que quanto mais pobre o setor considerado, maior a miscigenação.

Tal contraste entre os sistemas norte-americano e brasileiro foi elegantemente descrito pelo professor Oracy Nogueira, que denomina o primeiro “preconceito de raça”, e o segundo, “preconceito de marca”.

Esta pesquisa, dos anos 50, explicitou diversos aspectos das relações negros-brancos, no Brasil, alguns dos quais, hoje, percebemos como evidentes, mas que, na época, não eram. Contrariou o senso comum nacional, que postulava a perfeita igualdade entre etnias. Demonstrou, por outro lado, a americanos que “raça”, herança biológica, não era uma categoria universalmente reconhecida. Mostrou que, no Brasil, a ausência da violência física sistemática contra negros, como encontrada nos Estados Unidos, era compensada por uma extrema brutalidade na repressão aos pobres, brancos ou negros, e à sua organização política.

A partir dos anos 60, os Estados Unidos assistiram a importantes avanços na área de direitos civis sendo, legalmente eliminada a segregação racial. Foram extintas barreiras raciais em escolas, universidades e em espaços públicos como meios de transporte coletivo e cinemas. Entretanto, na prática, a segregação continua existindo. Em primeiríssimo lugar, a segregação espacial, uma vez que os negros permanecem concentrados em seus “guetos”. Além de várias outras formas de segregação social e profissional: às entidades encarregadas da vigilância aos direitos humanos, não têm escapado, por exemplo, que a absoluta maioria dos condenados à morte, nos Estados Unidos, é composta de negros.

Pude constatar, na prática, em minha pesquisa de campo de 1973 e 1974, entre negros e brancos de um estado do Sul dos Estados Unidos, a enorme tensão existente entre as suas comunidades. Eram insultos, lutas de rua, assaltos, estupros, e assassinatos inspirados por razões de ordem étnica. Um dos maiores problemas denunciados por entidades negras eram as mortes nas estradas desertas, de responsabilidade da própria polícia.

Não obstante, tal situação não impediu que se impusesse, a partir dos anos 70, o nacionalismo norte-americano, no estudo do sistema de relações comparada negros-brancos, nos Estados Unidos e no Brasil. Passou-se, em diferentes livros e artigos, a defender a tese de que o sistema brasileiro seria “pior” do que o norte-americano, pois ao discriminar-se e, ao mesmo tempo, tratar-se o negro com cordialidade, impedia-se sua organização e sua ação política. E que, ao não se reconhecer o negro como estranho ao corpo social, negava-se sua existência como etnia; que a ausência do racismo biológico, para opô-lo absolutamente ao branco, representava um mecanismo destinado a impedir sua vida autônoma; que a anulação das diferenças raciais, pela pobreza comum a negros e brancos, impedia que o negro brasileiro formasse comunidades separadas; e que a ausência de segregação residencial atrapalhava sua organização política.

A discussão do “pior” racismo não faz o menor sentido e tais argumentos são, eles mesmos, uma apologia do racismo. Na mesma linha fez-se a crítica à questão da miscigenação, enquanto desiderato político. Defendem alguns brazilianistas que o Brasil visaria, por política de estado, à extinção do negro por meio de sua absorção pela massa da população, ao “branqueamento”. Seria como uma forma sutil de genocídio.

O “branqueamento,” proposto por autores como Batista de Lacerda e Silvio Romero, no começo do século XX, consiste em uma linha lateral do pensamento social brasileiro, para responder ao racismo supostamente científico daquele tempo e, assim, tentar provar a viabilidade do País. O pilar da ideologia nacional é outro, a miscigenação, da qual o branqueamento representa uma conseqüência (dentre muitas outras) e não o contrário. O problema para a identidade brasileira, cuja solução foi claramente explicitada por Gilberto Freyre, é o de um brasileiro novo racialmente e novo culturalmente, na medida em que, no início do século, raça e cultura estavam associadas. O essencial é a idéia de “civilização brasileira”, a construção da nação pela afirmação da sua diferença frente às demais, pela formação de uma nova raça mestiça, como pretendiam Sylvio Romero e Euclydes da Cunha, ou de uma nova etnia morena, como queria, recentemente, Darcy Ribeiro.

Teses como a da exagerada importância do branqueamento na ideologia nacional resultam de uma formidável confusão conceitual, que dramatiza as dificuldades semânticas de comunicação entre culturas. A miscigenação continua a ser um objetivo nacional, mas “branquear”, no Brasil, não significa “limpar o sangue”, como nos Estados Unidos, isto é, diluir o sangue negro, a uma quantidade tão pequena que o torne insignificante. Talvez além do 1/8 do Sul daquele País. “Branqueamento”, no Brasil, significa “amarronzamento”, mestiçagem, resultando em uma cor de pele como a do atual Presidente da República; quer dizer “entrar na classe média”, além de deixar de ser classificado com a aparência de “negro”. Tais estudos omitem que, dentre os múltiplos ideais brasileiros de beleza humana destaca-se o de uma pele morena associada a traços finos e cabelo liso: quase um tipo hindu ou do norte da África. Esquecem, também, que negra é a imagem de Nossa Senhora que nunca deixa os brasileiros sozinhos pelas estradas da vida.

O problema, com essa visão, por vezes, acriticamente aceita até por pensadores brasileiros, é a incapacidade de relativizar categorias lingüísticas e culturais. A tendência de tomar a metáfora como literal. De considerar raça, conceito supostamente biológico, na forma assumida na cultura americana, como universal e imanente à condição humana.

No Parlamento brasileiro, tem-se repetido, ultimamente, a apresentação de projetos de lei, imitando a chamada “ação afirmativa” norte-americana. Esta política, nos Estados Unidos, além de negros, contempla outras das chamadas “minorias sociais”, como latinos e mulheres. Tais proposições, que objetivam conceder a negros quotas de vagas nas universidades e de empregos na iniciativa privada e no serviço público, esbarram no obstáculo da indefinição jurídica do que seja um negro no Brasil. A única solução formal seria a adoção do jus sanguinis norte-americano, que além de incompatível com a cultura brasileira, traria o racismo para o próprio corpo jurídico nacional. O termo “afro-descendentes”, usado com o objetivo de incluir mestiços nas cotas propostas, levaria, além disto, a uma lei inteiramente inócua pois, talvez, oitenta por cento dos brasileiros cabem nesta categoria.

A alternativa ao jus sanguinis seria a identificação étnica por um critério sociológico de identidade, como o previsto no estatuto do índio em vigor. Entretanto, os negros brasileiros, com exceção dos quilombolas, não constituem grupos sociais estáveis identificados por critérios étnicos, não residem em vilas, bairros ou guetos apenas seus, nem dispõem de uma organização comunitária própria e exclusiva, como a dos negros norte-americanos ou dos índios brasileiros. O mesmo acontece a pessoas que nada têm de índio, na Amazônia, mas que, se tiverem feições indígenas, sofrem o peso maior do preconceito, da mesma forma que os negros no restante do País. Os dois casos são de etnias difusas, sem fronteiras bem delimitadas por marcos culturais, o que dificulta, extraordinariamente, a formulação de uma política para compensação das desigualdades a que estão sujeitas.

Por isto, além do combate à discriminação, pela aplicação da lei e pela valorização de sua identidade, as ações em defesa dessas populações estigmatizadas por razões étnicas devem ser associadas a uma política mais ampla que contemple a questão da extrema pobreza que, em muitas regiões brasileiras, superpõe-se à etnicidade. Além disto, há no Brasil, outros critérios de classificação e atribuição de status tão importantes quanto o étnico. São as classificações regionais, quase-étnicas, como, por exemplo, as de gaúcho, mineiro e nordestino. Esta última sujeita a estigmas tão fortes quanto os associados a algumas classificações estritamente étnicas.

A fragmentação dos movimentos sociais, apartando índios, negros, sem terra, mulheres e sindicalistas, dentre outros, é um grave problema pois a desunião a todos enfraquece. Há, mesmo, situações limite como, por exemplo, casos de conflito aberto entre índios e sem terra.

Não se pode deixar de reconhecer a especificidade de cada desses setores mas, pensadores sociais comprometidos com o ser humano, especialmente nós, que vemos na humanidade sofredora Aquele que morreu na Cruz, estamos devendo um quadro teórico e metodológico que integre e articule esses movimentos, que substitua ações isoladas, radicais e ineficazes, gritos de desespero, por um projeto nacional consistente para o Brasil.

O primeiro passo é o de resgate da idéia de nação, ou seja, de que possuímos um passado comum e um destino comum; a idéia de que, não obstante nossa diversidade estamos no mesmo barco. Barco outro que esta patética nau capitânia, que mal consegue flutuar, construída para comemorar quinhentos anos de iniquidade.

As razões da especificidade do sistema étnico brasileiro frente ao norte-americano, tem a ver com a maneira pela qual se exprimem os valores fundamentais, historicamente associados às duas culturas, estruturando as comunidades em que as pessoas vivem seu dia a dia.

A posição puritana, enfatizando o Antigo Testamento, parte da premissa da exclusão. Os eleitos, como percebeu Weber, explicando o capitalismo, já estariam previamente assinalados. A eleição divina seria transmitida por linhas de sangue, conforme demonstram as longas genealogias do Antigo Testamento. Os membros do povo escolhido teriam o direito de viver em relações de simetria e respeito uns com os outros, o que não se aplicaria no tratamento dispensado a estranhos à comunidade. Aspectos como a democracia interna, associada à segregação racial, decorrem da premissa da exclusão na organização da cultura norte-americana.

A posição ibérica tradicional, alicerçada no catolicismo e informada por uma longa experiência histórica de interação com os árabes, parte da premissa da inclusão. O critério genealógico restritivo não tem grande importância, assumida a ênfase na universalidade do Novo Testamento. Todos são potencialmente salvos, desde que aceitas a ordem política e as hierarquias coloniais. Tanto a tolerância frente à diversidade, como a dura repressão aos desafios à ordem hierárquica respondem a essa outra premissa inclusiva.

O desenho das comunidades (tanto as locais como as nacionais/imaginadas) é diferente, portanto, na medida em que a inglesa e a norte-americana têm limites rígidos, enquanto a ibérica e a latino-americana possuem limites difusos. Nestas, até as fronteiras da consangüinidade são ampliadas por mecanismos como o do compadrio, por exemplo. Foi devido à premissa da inclusão hierárquica que as guerras contra os índios não eram consideradas, no Brasil, como conflitos com nações estrangeiras – à semelhança do modelo americano – mas ações destinadas a impor a disciplina a súditos rebeldes.

Agradecendo, mais uma vez, a oportunidade de falar aos bispos de meu País, despeço-me com um pensamento sobre a Igreja e sobre os tempos atuais. Inaugura-se, com o milênio, uma nova etapa da mesma globalização genocida iniciada, por volta de 1500, em sítios como este de Porto Seguro. Quando novas formas de opressão são impostas à humanidade, é para a Igreja que eu, e muitos outros, olhamos com esperança. Nela repousam os valores sagrados, eternos e absolutos que, algum dia, lavarão a marca de Caim, tinta de sangue negro, índio e de muitos outros povos, que a sociedade ocidental procura, inutilmente, esconder.