Minas e Bahia são maiores do que França e Espanha. Neste 2011, seguimos de carro por regiões menos visitadas da Espanha, explorando o roteiro de conjuntos arquitetônicos considerados “Patrimônio da Humanidade” pela Unesco. Começamos nossa viagem pelas cidades de Trujillo e Caceres na região da Extremadura.
Nossa primeira noite fora de Madrid passamos em Trujillo, cidade pequena e antiga da Extremadura, que como outras regiões do Sul da Europa, é um mar de oliveiras com algumas manchas de parreirais. É um cenário plano e desolado. Este tipo de atividade econômica se associa historicamente à uma população dispersa e à emigração. A pobreza do mediterrâneo europeu tem muito a ver com a atual crise do euro, pois esse tipo de economia regional baseado na monocultura ao tempo em que enriquece os países industrializados como a Alemanha, que ganhou um mercado consumidor cativo, acaba por gerar um severo desequilíbrio fiscal como o que agora se observa em Portugal, Espanha e Itália. Não se vive só de turismo….
Trujillo muito tem a ensinar sobre a conquista da América espanhola. É o puebloonde nasceu Francisco Pizarro, cuja estátua e palácio se situam na Plaza Maior. Nas imediações fica a casa de Francisco Orellana, cuja família mantinha laços de parentesco com a de Pizarro.
Trujillo: Estátua de Francisco Pizarro
Naquela planura, qualquer elevação era estratégica do ponto de vista militar, especialmente se permitisse uma visão de 360 graus ao redor. Por isto, já nos tempos romanos o sítio de Trujillo tinha uma fortificação. Atualmente, a construção mais antiga é um castelo árabe do ano 1000 posicionado no ponto mais alto da cidade. Do alto, para qualquer lado que se olhe a longínqua linha do horizonte lembra o mar. Movimentos de tropas seriam percebidos a uma distância de quarenta ou mais quilômetros.
Trujillo: Vista da Muralha do Castelo Árabe

À medida que se desce o morro, a cidade fica menos antiga. A Praça principal (Plaza Mayor) reúne edificações que chegam até o século XVIII. No século XIII, a cidade foi tomada aos árabes.Segundo a narrativa tradicional Nossa Senhora foi vista do lado cristão durante a batalha. Por isto, a padroeira da Extremadura, cuja imagem está no antigo castelo árabe de Trujillo, é chamada de Virgen de La Victoria. Porém no mesmo século XIII na área rural próxima à cidade, um pastor encontrava uma madona completamente negra que veio a ser chamada “Nossa Senhora de Guadalupe”.
Trujillo: influência árabe
É a mesma Nossa Senhora de Guadalupe que falava Nahuatl e que apareceu no México ao índio Diego. Como demonstrei em meu artigo “A Mãe Morena” (neste site), a pele escura das Nossas Senhoras latino-americanas simboliza a mãe indígena ou negra. Nâo é indevido supor que, como ocorreu na América com as mulheres indígenas, os cristãos vitoriosos na reconquista ibérica tenham se apoderado das mulheres árabes O pastor que encontra a Guadalupe espanhola devia ter a pele escura, como o Diego mexicano. Como Diego, adorou-a e deve ter sido ternamente consolado por sua mãe árabe morena.
Trujillo: Muro
Assim, a estrutura simbólica que engendra a narrativa mexicana de Nossa Senhora de Guadalupe não é uma criação original americana, mas a transferência do antigo complexo religioso espanhol. É notável a omissão desse antecedente ibérico em toda a literatura sobre a Padroeira Latino-Americana. É, igualmente, interessante a inversão do sentido do símbolo. A Guadalupe mexicana é sempre lembrada pela Teologia da Libertação, por ser a mãe dos índios e dos mestiços oprimidos. Já após a sua descoberta por um pobre pastor, a Guadalupe espanhola tornou-se protetora real. Os reis de Espanha construíram em Guadalupe um enorme monastério, que foi, por séculos, o mais importante do País.
A festa da Guadalupe espanhola transformou-se na celebração da “hispanidad”, conjunto de nações de língua castelhana da qual a Santa é padroeira coletiva. A divina mãe morena de um possível pastor árabe convertido ao cristianismo, cuja sociedade havia sido recentemente subjugada, transforma-se em mãe de um índio convertido ao cristianismo, cuja sociedade havia sido recentemente subjugada. Mas, na Espanha, ao longo do tempo converte-se em símbolo de uma vertente do expansionismo imperialista europeu. Os símbolos, afinal, espelham a história e tendem a ser apropriados pelos poderosos.
Trujillo: visão noturna da Plaza Mayor
Em Trujillo salta, literalmente, aos olhos, seja por ser a terra de Francisco Pizarro, seja pela arquitetura ou, ainda, pela continuidade do culto de Guadalupe no México, que a conquista da América era vista pelos espanhóis como uma continuidade lógica e natural das guerras e da submissão imposta aos árabes.
Andamos uns cinqüenta quilômetros para chegar a Cáceres. Sempre escolhemos um hotel do centro antigo, esquecemos o carro e andamos a pé. Em Cáceres é difícil achar hotéis com estacionamento. Por isto ficamos em um estabelecimento em que se desce à garagem subterrânea por um elevador no qual o automóvel, após demoradas manobras, é esprimido a milímetros das paredes. Com base em modelos biológicos pensei em lubrificar o veículo para uma melhor penetração na câmara apertada, mas desisti ao imaginar as reações que a idéia mal interpretada poderia suscitar.
Cáceres: vista da cidade murada
Cáceres é cidade maior e movimentada, dentro da qual está a antiga cidade murada tombada pela Unesco como patrimônio da humanidade. A cidade intramuros é belíssima. É uma combinação de estilos de épocas diferentes. As torres árabes ainda estão lá.
Cáceres: torres
c
O melhor é fazer a apresentação de Cáceres por meio de imagens, pois o ponto alto é a arquitetura de sua cidade murada..
Cáceres: vista da cidade murada
Extramuros, o que há de mais interessante é o centro tradicional com sua grande Plaza Mayor e as ruas e becos próximos. Enquanto a cidade murada é visitada principalmente por turistas, esse centro tradicional é invadido por multidões de moradores locais nos fins de semana e nos finais de tarde. Saem para ocupar o espaço público, verem e serem vistos na melhor tradição urbana mediterrânea.
Cáceres: muralhas e torres vistas da Plaza Mayor
O espanhol falado na Extremadura tem uma melodia ritmada especial, que me lembrou uma variação de um toque militar. Essa nuance é perceptível quando falam as mulheres e as crianças em momentos de excitação. Mães e filhos a compartilhar alegria em voz gritada.
Cáceres: habitante
A Espanha, como toda a Europa, vive um período de tensão com os imigrantes. Com os árabes, que estão bem perto na geografia e na cultura espanhola, a situação é gravíssima. Os latino-americanos foram bem vindos até recentemente, mas hoje são vistos como competidores pelos escassos empregos disponíveis. A aceitação dos imigrantes latino-americano nas últimas décadas é a contrapartida à já mencionada idéia da “hispanidad”, que apregoa a identidade cultural e a homogeneidade entre a Espanha e suas ex-colônias.
Cáceres: janela
O conceito de “hispanidad” serviu para justificar o colonialismo espanhol nas Américas. Após a perda de Cuba, a última colônia americana, reconstruiu a identidade nacional espanhola por meio do culto ao passado glorioso. A Espanha era um país paupérrimo até seu ingresso na comunidade européia. A “hispanidad” dava alento às levas de espanhóis que emigravam para suas ex-colônias do Novo Mundo.
Cáceres:torre de igreja
Recentemente, a “hispanidad” vem sendo usada para justificar relações econômicas privilegiadas com a América Latina. A Espanha se posicionou como a portal da comunidade européia para a América Latina, para a venda de armas e investimentos em telefonia, bancos, e semelhantes.
Cáceres: viela
Em nossa viagem, as atitudes frente aos estrangeiros só nos afetavam em um primeiro momento de desconfiança até que os interlocutores percebessem que não estávamos tomando o emprego de ninguém. Porém, em Cáceres fomos confundidos com imigrantes. Em um restaurante na Plaza Mayor, um garçon se recusou ostensivamente a nos servir. Uma garçonette que queria evitar briga, trouxe-nos uma coca-cola. Paguei a conta, deixei a gorjeta e saí rápido, pois não me passaram desapercebidos outros indivíduos de catadura similar nas imediações. Este foi o único episódio de discriminação em toda a Espanha.
Cáceres: beco na cidade murada
Seguimos para Salamanca próxima etapa da viagem e tema do nosso próximo relato.