PREFACIO
Por Charles Wagley
Há muitos anos atrás, Clyde Kluckholn, um antropólogo dotado de enorme capacidade de percepção, infundiu um pensamento desagradável na minha mente, uma idéia que me tem preocupado até os dias de hoje. Numa longa noite de conversa, Kluckholn formulou a retórica pergunta: “Será que a Antropologia Social nada mais é do que a visão ocidental das culturas não-ocidentais e assim chamadas primitivas”? Neste tempo (por volta de 1940) era verdade que a Antropologia Sócio-cultural florescia predominantemente na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos. Grandes antropólogos sócio-culturais viveram e trabalharam em outros países, mas quase sem exceção, seu treinamento ou estímulo provinha de fontes norte-americanas, inglesas ou francesas (a antropologia alemã já tinha então sido distorcida pelos nazistas). Além disto, os antropólogos estavam ainda essencialmente envolvidos com culturas de tribos primitivas na África, Oceania, Américas do Norte e do Sul e Ásia. Estudos de sociedades camponesas e de comunidades componentes de sociedades complexas contemporâneas apenas tinham se iniciado. Pode-se imaginar como faz George Zarur neste livro, como nossa cultura e sociedade apareceria para um “índio antropólogo” que decidisse estudá-la. Porém, para que fosse antropólogo, um índio xinguano teria que ser treinado em antropologia, que é parte da tradição ocidental, envolvendo teorias e métodos dessa origem. Estaria a sua visão contaminada pelo treino e teoria provenientes da tradição intelectual do ocidente?
Após a 2ª Guerra Mundial, os antropólogos voltaram-se para estudos de pequenas comunidades participantes de sociedades nacionais e também a se interessar por cidades (como os estudos de Lloyd Warner e associados em Yankee City), partes de cidades como as favelas do Rio de Janeiro ou os bairros de Lima, instituições como hospitais, associações como uma escola de samba do Rio de Janeiro (conforme, Maria Iulia Goldwasser – O Palácio do Samba, Rio de Janeiro, 1975) e outros aspectos de sociedades complexas. Mas, exceto pelos antropólogos ingleses e norte-americanos, que viajaram pela América Latina, África e Ásia, tais estudos foram realizados dentro dos confins da sociedade e cultura dos pesquisadores. Assim, Robert Lynn e Helen Lynd estudaram Yankee City e James West (Carl Withers) estudou Plainville, USA. Nasce uma nova pergunta. Estariam estes estudos da própria cultura do antropólogo, distorcidos pelas dificuldades de se observar e interpretar o que parece ser tão comum e natural como o ar que se respira? Seria capaz um antropólogo de outra origem de ver uma comunidade norte-americana de um ponto de vista diferente? Observadores de fora têm freqüentemente trazido novas visões e compreensões de sociedades que não a deles. Alexís de TocquevilIe em seu livro Democracia na América, publicado pela primeira vez em 1835 ,ainda é uma das fontes mais citadas para o sistema social norte-americano; e em 1940 quando a Carnegie Corporation decidiu deslanchar uma pesquisa gigante sobre relações raciais nos Estados Unidos, procurou Gunnar Myrdal, um sueco, para dirigir o estudo. Assim outsiders sensíveis, pessoas de uma outra cultura, parecem capazes de levantar idéias novas e distintas, quando estudam uma cultura diversa da sua. É compreensível, por estas razões, que historiadores brasileiros tenham tão freqüentemente citado viajantes e residentes estrangeiros do século XIX, como Daniel P. Kidden, Iohn Luccock, John Mawe, Thomas Ewbank, Henry Bates, Maria Graham e outros.
Os Estados Unidos têm tido sua porção de visitantes estrangeiros como a senhora Fannie Trollope e o grande Charles Dickens e nem todos nos acharam simpáticos. Mas poucos antropólogos sociais treinados nos acharam merecedores de um estudo. Talvez por que já tenham passado mais de 200 anos desde que os Estados Unidos deixaram de ser uma dependência colonial exótica. Como coloca George Zarur, na primeira página deste livro, “a Antropologia implica normalmente uma relação colonial entre sociedade da qual o antropólogo é membro e a sociedade estudada. . .”. É possível que isto seja historicamente verdadeiro. Talvez os antropólogos norte-americanos tenham sido motivados a estudar a América Latina devido a relações similares às coloniais entre os Estados Unidos e os países ao nosso Sul. Mas se este é o caso, parece ser apenas um lado do problema, pois seria de igual ou maior importância que uma sociedade dependente entendesse a sociedade dominante. Sempre me pareceu estranho que nos Estados Unidos mantenhamos institutos e centros de estudos latino-americanos enquanto não há institutos ou “centros“ similares de estudos norte-americanos na América Latina. Se nós temos nossos brazilianistas treinados para analisar e interpretar a sociedade brasileira, por que o Brasil não tem os seus (norte) americanistas para fazerem o mesmo nos Estados Unidos? Seria de grande importância para o Brasil compreender o outro colosso mais ao norte. Para repetir um bem conhecido ditado mexicano: “Quando os Estados Unidos espirram, a América-Latina fica gripada”.
Assim por muitos anos e várias razões eu esperei que meus colegas brasileiros em antropologia social voltassem seu interesse para o estudo das sociedades e cultura norte-americanas. Hoje a antropologia brasileira é uma disciplina séria e bem desenvolvida, com a necessidade de seguir uma orientação de pesquisa comparativa. Tais estudos dos Estados Unidos, por brasileiros podem fazer importantes contribuições substantivas à disciplina da antropologia social. Suas observações podem ajudar a nós, norte-americanos, a nos compreender de uma perspectiva comparativa. Eles podem funcionar para um entendimento mútuo, melhor que as traduções portuguesas de fontes norte-americanas, na medida em que explicam os Estados Unidos aos brasileiros, como eles são segundo as “lentes” brasileiras. A antropologia tem neste particular uma contribuição muito importante. Como explica George Zarur, os antrópologos sociais não se limitam a áridas estatísticas, visitas casuais a New York ou San Francisco, ou entrevistas com algumas poucas figuras poderosas, mas, pelo contrário, tentam penetrar na densidade dos problemas humanos, aspirações, comportamento e ideologia de um segmento limitado da sociedade. Exatamente como fez George Zarur na cidadezinha que ele chama de Mullet Springs, o antropólogo vive, torna-se um membro e participa da vida da pequena comunidade que ele estuda.
Neste livro George Zarur faz uma importante contribuição ao entendimento da sociedade e da cultura norte-americanas tanto para o público brasileiro como para o norte-americano. Ele, freqüentemente, descobre atitudes explícitas e normas de comportamento dos quais nós (norte-americanos) temos apenas uma vaga consciência. Os conceitos ideológicos que ele expressa pelas palavras smart e proud seriam provavelmente não captados pelo observador local. E sua interpretação do papel da esposa em Mullet Springs como menos conservadora e em “contato com a corrente principal de valores da sociedade americana” é um outro exemplo de observações valiosas encontradas nesta obra.
O Dr. Zarur está preocupado com a racionalidade ou a irracionalidade do comportamento econômico. Seus amigos pescadores de Mullet Springs não são nem mais nem menos racionais que as pessoas de outras cidadezinhas do Brasil, México ou qualquer lugar do mundo. Afinal Mullet Springs é um pedacinho de uma nação (os Estados Unidos), que gasta milhões de dólares todo ano para subvencionar plantações de fumo e gasta milhões de dólares no mesmo ano, em campanhas para ensinar seu povo sobre os perigos do cigarro. Racionalidade está ao que parece na mente das pessoas; o que parece irracional para o antropólogo ou o economista pode ser racional no pensamento do povo de uma dada cultura e sociedade.
Finalmente, George Zarur descreve neste livro um segmento da sociedade americana pouco discutido, a gente das pequenas cidades e vilas. Não são eles as pessoas sofisticadas das metrópoles ou os membros da enorme classe média da sociedade de consumo. Há centenas de milhares de Mullet Springs nos Estados Unidos da América e cada qual tem suas peculiaridade e diferenças. Sob a crosta de uma cultura de massa homogeneizada que é mostrada na televisão, no cinema e nos jornais e revistas de grande circulação, diferenças locais e regionais da herança cultural norte-americana são preservadas. É de uma Mullet Springs de certa forma mais rica, a menos de 300 quilômetros ao norte no Estado da Georgia, que o presidente Jimmy Carter vem. Mas nem Mullet Springs ou Plains (Georgia) , onde o presidente Carter nasceu, são como as muitas vilas da Nova Inglaterra, ou como as cidadezinhas das grandes planícies do meio oeste, ou ainda, como os povoados típicos da Califórnia. Há muitas Américas nestas vilas e distritos rurais, da mesma maneira como há muitos Brasis nas pequenas cidades que se espalham do Rio Grande do Sul ao Amazonas. Nestas duas nações gigantes do Novo Mundo, Brasil e Estados Unidos da América, o regionalismo ainda é um fator importante que deve ser considerado e compreendido.
Seja bem-vindo o leitor a este estudo humano e penetrante. da vida em uma pequena cidade no assim chamado Novo Sul dos Estados Unidos.
Charles Wagley