Curt Nimuendajú, como certa vez disse Roque Laraia (1988) “constituiu-se em uma das poucas entidades mitológicas da etnologia brasileira. Todos os novos antropólogos costumam a se maravilharem com a sua figura legendária. Empolgam-se com as aventuras de Nimuendajú junto a grupos, então de difícil acesso, ou com a saga da pacificação dos Parintintin, no qual ele teve um proeminente. Os seus feitos passaram a ser considerados partes integrantes da epopéia de nossa ciência.”
O que fez de Curt Nimuendajú nosso herói cultural? A resposta é que inaugurou um padrão de trabalho que se tornaria modelo para gerações de antropólogos brasileiros. Esse paradigma, no qual eu e tantos outros nos formamos, associava intenso trabalho de campo com apaixonado indigenismo. Durante, pelo menos cinco décadas essa generosa associação caracterizou a antropologia brasileira. Herbert Baldus referiu-se a Nimuendajú, como “talvez o maior indigenista de todos os tempos” (1946: 241). Alfred Metraux, aponta o caráter revolucionário de sua obra, que “nos trouxe uma nova imagem do índio brasileiro e mudou nossas noções tradicionais sobre a etnografia sul-americana” (1950: 250 ).
Nimuendajú, como muitos antropólogos que permaneceram muito tempo no campo, passou por um processo de auto-questionamento de sua identidade. Nasceu na Alemanha, mas ao estudar as culturas indígenas, sentiu-se índio. Porém fez-se legalmente brasileiro ao se naturalizar em 1922. Sempre transitou entre as três identidades, a alemã, a nacional brasileira e a indígena. As alterações em seu nome expressam esse deslocamento. Kurt Unkle era o seu nome na Alemanha. Após o elaborado ritual de batismo dos Apapokuva-Guarani, que o chamaram Nimuendajú (aquele que faz sua própria casa), passou a assinar seus trabalhos como Curt Nimuendajú-Unkel. Seu nome Kurt abrasileirou-se para Curt. Neste nome triplo, reunia suas três identidades, O “Curt” do alemão abrasileirado, o Nimuendajú indígena e o Unkel alemão. Por fim, deixou cair o Unkel, mas, não seria por um passe de mágica que iria abandonar a língua e a visão do mundo de sua origem alemã.
Com a naturalização Nimuendajú fez-se brasileiro e, emocionalmente, identificava-se com os índios, como evidenciam o nome que escolheu e sua inquebrantável lealdade para com os povos indígenas. Porém, sua identidade de brasileiro era bem mais difícil de ser plenamente assumida. Procurou combinar afeto e lealdade frente a esses dois entes coletivos: o Brasil e as sociedades indígenas brasileiras como fizeram Rondon e muitos outros indigenistas ao situarem o índio como a própria essência do Brasil. Porém, há, hoje, expressivas linhas ideológicas que excluem o índio da identidade nacional ao classificar todos os “pardos”, os mestiços morenos, como afrodescendentes ou ainda quando em defesa da desejável autonomia dos povos indígenas exageram ao substituir a expressão “índios do Brasil”, pelo modismo politicamente correto “indios no Brasil”, que classifica os povos indígenas como não brasileiros. Nimuendajú tinha, ainda, um problema adicional por ter nascido na Alemanha, país com que o Brasil esteve em guerra por duas vezes, no período em que aqui viveu. Faulhaber (2005, 115-117) cita suas cartas, em que se queixa da exacerbada atitude do governo e da população contra os alemães, mesmo os naturalizados, durante a segunda guerra mundial.
Tinha certo desprezo pelos não índios do interior, que chamava “neo-brasileiros”, uma maneira de valorizar os índios ao situá-los como os brasileiros originais. Sempre me impressionou essa rejeição de Nimuendajú a esses caboclos e agricultores que ia muito além do justificado sentimento de repulsa frente aos que desejavam assassinar os índios, escravizá-los e tomar suas terras. Perguntei a pessoas que o conheceram, como Herbert Baldus, Heloisa Alberto Torres e Eduardo Galvão, que me explicaram que essa atitude tinha a ver com uma espécie de desprezo cultural, uma vez que valorizava os “índios puros” e percebia as populações caboclas como culturalmente inferiores. Como índios decadentes. Essa idéia de “pureza cultural” poderia representar uma herança do velho difusionismo, especialmente na versão de Graebner com seus Kulturkreise. Embora não me lembre de qualquer referência de Nimuendajú a Graebner, tanto em Graebner, como em Rivers, como nos demais difusionistas, está presente a idéia de que a proximidade temporal e espacial de um grupo humano a um centro de difusão de cultura representaria um valor fundamental explicitamente para explicar a cultura e, implicitamente, para o desenho axiológico de uma hierarquia dos grupos humanos.
A dimensão cultural, que Nimuendajú usou para comparar índios e caboclos é, hoje, problemática. Comparar para melhor e pior culturas diferentes é algo a ser realizado com múltiplas ressalvas metodológicas. Entretanto, não resta dúvida quando a comparação se restringe às melhores condições materiais de vida de índios que mantém o controle de seus territórios tradicionais e dos recursos naturais neles existentes. Caboclos explorados nos seringais, por exemplo, estão em piores condições de vida do que as de índios que produzem para o seu próprio sustento. Deste ponto de vista, Nimuendajú tinha sólidas razões para considerar as sociedades indígenas superiores à dos que denominou “neo-brasileiros”.
São pouquíssimas as informações sobre Nimuendajú antes de sua chegada ao Brasil. Embora não tivesse qualquer formação universitária, possuía, indiscutivelmente, sólida formação cultural, como transparece de sua maneira de escrever e de seu treinado raciocínio. Podemos supor que seu evidente preparo decorre da boa educação básica que caracterizava e caracteriza a Alemanha e de um ambiente cultural mais amplo. Na Alemanha, trabalhava como aprendiz na fábrica de lentes Zeiss, onde era assíduo visitante da biblioteca da empresa, o que muito diz do ambiente em que viveu, pois empresas com bibliotecas para seus operários não são muito comuns em outros países.
Aliás, uma formação universitária, até algumas décadas atrás, tinha função diversa da atual. Mesmo no Brasil, conheci autodidatas com educação mais sólida do que muitos egressos do ensino superior. Como evidencia a literatura sobre o ensino superior brasileiro (ver, por exemplo, o livro de Alberto Venâncio, “Das Arcadas ao Bacharelismo”), a universidade era um espaço de treinamento político das elites. A formação do médico ou do advogado acontecia, principalmente, na prática profissional do consultório ou do escritório. Antes da universidade, eram os bons colégios que ensinavam a escrever, a ler, a pensar e transmitiam os aspectos essenciais da chamada “cultura geral”, aí incluída a leitura de clássicos do pensamento universal e brasileiro, muita literatura e filosofia.
É possível que Nimuendajú tivesse bebido das águas do idealismo romântico da cultura alemã do século XIX e dos começos do século XX. Sua vinda para o Brasil, ao que consta, teria tido como motivo o essencialmente romântico desejo de viver entre índios. O romantismo alemão valorizava as pessoas simples, o folclore e as lendas antigas, em uma tradição, que chega até Wagner. Esse romantismo é compatível com a idealização do passado da antropologia de Graebner e dos difusionistas.
O ambiente cultural em que se formou, deve ter contribuído para a excelência de seu trabalho, pois Nimuendajú podia ser muito sofisticado. Não escapou a Nunes Pereira, em sua publicação de 1946, observar a importância sobre sua obra do ambiente cultural da região da Turíngia, onde nasceu.
Chegando ao Brasil em 1903, não se sabe, exatamente o que Nimuendajú andou fazendo até 1905. Em todos os anos seguintes, de 1905 até 1943 esteve entre índios, por períodos mais ou menos extensos. Interrompeu essa rotina durante os anos de 1943 e 1944, quando se dedicou a elaborar seus famosos Mapas. Retornando aos Tikuna, faleceu em 1945. Como demonstra Roque Laraia, em seu já citado artigo de 1988, a razão de sua morte foi o seu precário estado de saúde.
O longo tempo de campo é outro fator a explicar a excelência da obra de Nimuendajú, pois muitos de seus insights e observações só poderiam ter sido obtidos após anos de convivência no mesmo grupo indigena. Embora intermediasse períodos de campo mais longos ou curtos, apenas com os Guarani de São Paulo permaneceu por dois anos. Seu trabalho “A Lenda da Criação e Destruição do Mundo na Religião dos Apopokuva-Guarani” foi considerado por Egon Schaden como “obra monumental” (apud Castro Faria, 1981). Metraux, no obituário de Nimuendajú que escreveu para a Societé des Américanistes (1950) a considera uma “obra clássica”. Herbert Baldus (1946) a classifica como “uma de suas publicações mais importantes”.
Este estudo foi publicado em 1915, tempo em que Nimuendajú não tinha qualquer contato com Erland Nordeskiöld ou com Robert Lowie, com quem posteriormente estaria associado. Melatti (1985,10) questiona a idéia de que Nimuendajú estivesse “guiado pela mão de Lowie”, pois antes de seu contato com Lowie, demonstrava já estar interessado nas principais questões sobre os Jê do Brasil Central, que abordaria em publicações conjuntas com esse antropólogo da Universidade da California. Melatti supõe que Nimuendajú teria usado um guia do tipo Notes and Queries, mas, seja qual for o roteiro de coleta de informações utilizado, o fato é que conseguiu organizá-las em monografias admiráveis.
Nunes Pereira (op. cit, pg 23) cita uma carta de Nimuendajú:
“Freqüentei, com predileção a companhia dos velhos e, de modo especial, a dos pajés (médicos) e me fiz instruir durante horas seguidas sobre os mistérios da velha religião. Até hoje eles se mostram orgulhosos de seu aluno”.
Logo, faz sentido entender a qualidade da obra de Nimuendajú, também, como resultante de sua prolongada imersão na cultura indígena. Observadores como Melatti (op.cit.) ressaltam sua “longa vida de pesquisa” e Metraux nos informa ser “impossível de dar a lista de todos os grupos que visitou”. Com alguns esteve por curtos períodos, para coletar vocabulários, mitos e coleções de objetos indígenas. Com outros permaneceu por longo período e, não por acaso, sobre esses escreveu suas mais brilhantes monografias.
Longo tempo de campo propicia um conhecimento único da cultura e da sociedade indígenas adquirido de duas maneiras: primeiro, por meio do conhecimento da língua; segundo, por induzir a um profundo respeito aos índios como seres humanos, fazendo com que os antropólogos se sintam membros de sua sociedade e dedicados aprendizes de sua cultura. Nimuendajú não tinha formação universitária, mas aprendeu com os próprios índios. Essa humildade frente à cultura indígena marca a melhor etnologia. O trabalho de campo, desde Boas e da crítica de Malinowsky aos “antropólogos de gabinete” constituiu-se em uma espécie de culto da antropologia, rito de passagem indispensável para que o antropólogo se transforme internamente e consiga relativizar suas verdades, ver um pouco pelo menos, da forma como os seus nativos vêem o mundo.
Nimuendajú foi inicialmente funcionário do Museu Paulista, instituição que deixaria para se filiar ao SPI, em 1911. Permaneceu no SPI até 1915. De 1915 a 1921, segundo Nunes Pereira, viaja por conta própria ou apoiado pelo Museu Paraense Emílio Goeldi. Em 1921 efetua a heróica atração dos Parintintim. Foi apoiado financeiramente por instituições brasileiras, como o SPI, o Museu Goeldi, o Museu Nacional e o Conselho Nacional de Proteção aos Índios. Entretanto, sua maior fonte de renda, eram museus do exterior para os quais fazia e vendia coleções etnográficas e em especial o Museu de Gotemburgo, após estabelecer duradoura parceria com seu Diretor, Erland Nordeskiöld. Mais tarde, outra longa associação seria estabelecida com Robert Lowie, que lhe trouxe o apoio financeiro de fontes norte-americanas. Como assinala Castro Faria, em seu artigo no volume que acompanha o Mapa Etno-histórico, a possibilidade de publicar em conjunto com Lowie no American Anthropologist e em outros fontes biliográficas de prestígio tornou seu trabalho reconhecido e legitimado.
A relação com Nordeskïold foi mais do tipo comercial, mas tinha uma base e uma justificativa científica. Nos começos do século XX, a antropologia ainda se concentrava nos museus de história natural. Nessa época, já tinha rompido com o evolucionismo e, no plano epistemológico, se desgarrado do amplo leque do naturalismo científico do século XIX. Porém, ainda guardava características de “ciência de museu”. O catalogar e o inventariar de objetos museológicos assumia importância teórica para o difusionismo então hegemônico, como no já citado Graebner por meio dos critérios de “forma e quantidade” na definição dos seus Kulturkreise.
Neste nosso século XXI, não há mais espaço para o desdém com que antropólogos sociais víamos as coleções etnográficas e os estudos de cultura material, em compreensível reação histórica a um paradigma derrubado pela revolução científica da qual participávamos. Os objetos etnográficos podem expressar questões cruciais em seu simbolismo, como, por exemplo, na análise de Levi-Strauss do totemismo e de suas representações. Além disto, a cultura material manifesta evidências importantíssimas da tecnologia, da vida econômica e do padrão adaptativo dos grupos humanos, questão que tive a oportunidade de explorar em artigo que teve como ponto de partida a comparação da cultura material dos Jê do Brasil Central com os índios Xinguanos. O artesanato de palha leve, descartável e a ausência de cerâmica são característicos de grupos humanos, como o Jê, que partem da premissa da mobilidade no espaço para organizar sua vida social.
Herbert Baldus, com quem trabalhei como bolsista de Iniciação Científica da Fapesp em 1966, na tentativa de manter seu jovem estagiário interessado no cansativo trabalho de classificar peças etnográficas, dizia-lhe que “pegar nas peças indígenas era uma maneira de sentir, de conhecer profundamente as culturas que as produziram”, como se os objetos carregassem a alma dos artesãos que os confeccionaram. Porém, objetos etnográficos, como afirmava Nimuendajú, são “esculturas”, o que faz pensar na afirmação de Baldus como algo mais de que uma tentativa, se bem que exagerada, de motivar sua relutante mão de obra. Eloísa Fenelon e Berta Ribeiro, por exemplo, realizaram belos estudos de coleções etnográficas enquanto coleções artísticas. E não há dúvida que a arte produzida pelas culturas não ocidentais pode maravilhar os ocidentais. Precisamos montar exposições de arte indígena tão belas como as de arte africana ou polinésica do Metropolitan Museum of Art de Nova York. Em 1979, organizei juntamente com a arquiteta Gisela Magalhães, com base em poucas peças muito escolhidas da coleção Eduardo Galvão, uma exposição que buscava transmitir toda a força e a universalidade da arte e do design indígenas.
Dentre todos os trabalhos de Nimuendajú, o mais original é seu mapa etno-histórico, que segue a mesma lógica do ordenar e do classificar das ciências cultivadas nos museus. Obra concluída nos últimos anos de sua vida reúne toda sua experiência prévia. É como se Nimuendajú quisesse, com nanquim e lápis de cor, perpetuar a diversidade de milhares de registros de grupos e línguas indígenas que, um dia, ocuparam o território brasileiro. O Mapa é de notável relevância para a etnologia e para a proteção das terras indígenas. Sua publicação iria representar justa homenagem a seu lendário autor. Daí o interesse recorrente de gerações de antropólogos, na publicação do Mapa. Em 1981 consegui reunir os meios necessários para publicá-lo.
Nimuendajú afastou-se das aldeias indígenas para elaborar seus mapas, após encontrar problemas para obter autorização para se deslocar ao campo, devido ao fato de ter nascido na Alemanha, país com o qual o Brasil estava em guerra e, ainda, devido a problemas de saúde.
Um pequeno volume acompanha a publicação. Inclui, de autoria de Nimuendajú, suas Observações, o Índice de Tribos, o Índice Bibliográfico e o Índice dos Autores. Compreende ainda cinco artigos, de autoria respectivamente do geógrafo Virgílio Correa Filho; do antropólogo Luiz de Castro Faria; do Cartógrafo do IBGE Rodolpho Pinto Barbosa; das lingüistas Charlotte Emmerich e Yonne Leite; e um de minha autoria.
O mapa de Nimuendajú é um gigantesco banco de dados sobre a distribuição no espaço e no tempo das tribos indígenas brasileiras. É testemunho do estado da arte da etnologia de seu tempo. Foi artesanalmente elaborado com os recursos da época, o desenho a nanquim. Reúne, em sua última versão, praticamente toda a literatura então disponível para a identificação do nome das tribos indígenas brasileiras atuais e extintas, conhecidas até a data sua elaboração, sua classificação lingüística, sua localização atual, sua localização histórica e, em muitos casos o sentido de suas migrações.
No item “1” das notas que acompanham o Mapa, Nimuendajú expressa sua preocupação em afirmar a originalidade de seu trabalho e no item “2”, sua superioridade sobre os demais então existentes.
Explica que:
“O Mapa não se baseia em trabalho etno-geografico de outro autor nenhum. Os dados bibliográficos, as informações particulares e os estudos e observações pessoaes minhas á respeito foram acumulados durante alguns dezenios de annos.
Elle se distingue de todos os outros trabalhos congêneres pela tentativa de conseguir uma perspectiva histórica afim de evitar os anacronismos que enxameiam naquelles.”
Também no que diz respeito à classificação lingüística, Nimuendajú enfatiza a originalidade e o valor de seu trabalho. Só inclui nas suas famílias lingüísticas, as línguas “claramente isoladas, deixando como isoladas um número de línguas que Rivet, p.ex, inclui em alguma família estabelecida, ao meu vêr, porém, com provas insufficientes. Da mesma forma, classifica como desconhecidas, línguas que outros autores identificaram, sem a necessária comprovação. Segundo informa, apontar as lacunas foi, portanto, um dos objetivos de seu trabalho.
A perspectiva histórica foi obtida por intermédio da localização das tribos atuais, da localização passada das tribos atuais, que denomina de “sedes abandonadas” e das tribos extintas. Nimuendajú distinguiu-as usando letras diferentes. As tribos extintas ou que mudaram de localização, quando havia informação confiável, tiveram escrito abaixo de seu nome, o ano ou o século em que foram documentadas naquele sítio e uma seta indicando o rumo da migração.
O Mapa ainda faz a classificação lingüística das tribos. As línguas são classificadas em “famílias”, “línguas isoladas” e “desconhecidas” distintas pelas cores e espessura das linhas que sublinham os nomes das tribos.
Embora a publicação de 1981, fosse baseada no mapa de propriedade do Museu Nacional elaborado em 1944, Nimuendajú desenhou quatro mapas. O primeiro foi concluído em 1942 para o Handbook of South American Indians. Como demonstram Emmerich e Leite (1981), foi considerado demasiado grande e com insuperáveis problemas gráficos para sua publicação devido ao excesso de cores usadas na classificação lingüistica. Houve uma simplificação, na qual, embora reconhecido o valor do trabalho, muito se sacrificou.
Fascinados pela obra apresentada ao Handbook e, eventualmente, preocupados com as dificuldades que Nimuendajú enfrentava para voltar a viver entre os índios, diretores de diferentes instituições brasileiras a encomendaram novas versões a seu autor. A segunda foi elaborada em 1943, por solicitação de seu amigo Carlos Estevão de Oliveira, Diretor do Museu Paraense, hoje, Museu Paraense Emílio Goeldi. Segundo Nunes Pereira (1946, pg., 30) havia, ainda, uma terceira versão em “proporções menores” desenhado a pedido de José Maria da Gama Malcher, Inspetor de Índios do Pará. Este mapa pode ter sido destruído no incêndio do SPI de 1968. Foi elaborado com o apoio do cartógrafo Mayr Fortuna da Comissão de Limites. A quarta versão é de 1944. A mais completa, foi encaminhada ao Museu Nacional, a pedido de sua Diretora, D. Heloisa Alberto Torres. Compreende 1400 nomes tribais e 972 referências bibliográficas. Foi como se as versões anteriores, com menor número de referências, representassem ensaios para um retrato mais preciso dos índios brasileiros apresentado na última.
Emmerich e Leite (op.cit.) informam que D. Heloisa Alberto Torres, na condição de Diretora do Museu Nacional, fez repetidas tentativas para publicar o mapa, sempre esbarrando nas mesmas dificuldades gráficas que levaram ao empobrecimento de sua publicação pelo Handbook of South American Indians. Ainda, segundo essas autoras, em 1964, Roberto Cardoso de Oliveira, então Chefe da Divisão de Antropologia do Museu Nacional mandou redesenhar o mapa, com o objetivo de divulgá-lo.
Só em 1981, após trabalhoso e complexo trabalho, a excelente cartografia do IBGE pode transformar o mapa Etno-Histórico em um documento publicável. As classificações não foram alteradas, mas certos sinais do mapa, alguns de difícil leitura e de quase impossível tratamento gráfico para impressão foram alterados.
Por indicação do Professor Roberto Cardoso de Oliveira, aceitei, em 1975, a posição de Diretor da FUNAI, na qual permaneci até 1976. Em pleno processo de abertura política, o então Presidente da FUNAI, General Ismarth Araújo Oliveira, comprometido com esse projeto, procurava um antropólogo para esse cargo. Minha primeira providência, ao ocupar o gabinete que me foi designado, foi a de expor uma fotografia de Nimuendajú em local de destaque.
Subordinado ao Departamento que chefiava ficavam a Divisão de Estudos e o Museu do Índio, do qual participavam antropólogos como Cláudia Meneses e Carlos Moreira Neto, recentemente falecido. Trabalhavam também na FUNAI, os antropólogos Helio Rocha e Ney Land, contratados por Dona Heloísa Alberto Torres, inicialmente para o antigo Conselho Nacional de Proteção aos Índios, na qual D. Heloísa substituiu o Marechal Rondon. Dona Heloísa em curta passagem pela recém-criada FUNAI, em 1967, trouxe sua equipe para o órgão. O antropólogo Olympio Serra marcava da forma mais positiva o indigenismo brasileiro. No Conselho Indigenista da FUNAI interagi com o meu Professor e amigo Roque Laraia aqui presente.
Todos me falavam do mapa. Pude perceber que sua publicação representava um anseio coletivo de meus colegas antropólogos. Devido a sua condição de etno-historiador, Carlos Moreira Neto sempre insistia na necessidade de publicá-lo, que seria de interesse de uma antropologia acadêmica, mas, também, do indigenismo. Naquele período de nossa antropologia, as fronteiras entre indigenismo e etnologia ainda não estavam demarcadas como hoje. Do ponto de vista da defesa das terras indígenas, o mapa representava uma ferramenta essencial. As constituições brasileiras, desde 1934 até o presente, asseguravam aos índios, de uma ou outra forma, a posse das terras que ocupam. O mapa poderia trazer informações indispensáveis para a garantia desse direito.
Não consegui publcá-lo quando trabalhava na FUNAI, de onde saí em 1976, após. descobrir o quão ingênuo era o meu sonho de reviver a Sessão de Estudos do antigo SPI, no qual Darcy Ribeiro, Eduardo Galvão e Roberto Cardoso de Oliveira produziram trabalhos definitivos para a antropologia brasileira. Onde, ainda, o próprio Nimuendajú tivera brilhante atuação. A maioria das funções de chefia da FUNAI era ocupada por militares aposentados e tecnocratas que nada sabiam sobre índios. Não era diferente de outros órgãos públicos. Na época falava-se em cerca de dez mil militares reformados a ocupar funções de chefia no governo federal, da mesma forma como acontece com os indicados pelos partidos políticos dos tempos atuais.
Em 1976 assumi a Coordenação de Ciências Humanas e Sociais no antigo Centro Nacional de Referência Cultural – CNRC, que viria a dar origem à atual Fundação Pró-Memória. O CNRC era um órgão de proteção do patrimônio cultural. A preservação, proteção e publicação de documentos importantes para a “memória nacional” eram alguns de seus objetivos. Seu criador e Coordenador Geral era o designer Aloysio Magalhães, a quem não foi tão difícil “vender” a idéia da publicação do Mapa. A iniciativa cabia exatamente nos objetivos traçados para nova instituição. Representava um trabalho artesanal, unindo ciência, arte e técnica, o tipo de obra para a qual a “equipe do CNRC” era sensível.
Após ganhar o apoio do CNRC, estive no Museu Nacional, onde vi o Mapa pela primeira vez e me reuni com o antropólogo Luis de Castro Faria, meu professor no mestrado no Museu Nacional, e com minhas colegas e amigas, as lingüistas Charlotte Emmerich e Yone Leite
No IBGE entrei em contato com o Speridião Faissol, Superintendente de Indicadores Sociais do órgão. Faissol era um cientista brilhante e líder da “geografia quantitativa” no Brasil. Criou o conceito de micro-regiões homogêneas e era difícil, naquela época, encontrar qualquer estudo brasileiro nas áreas de economia e planejamento que não se iniciasse com a situação da área estudada em uma dessas “micro-regiões”. Faissol, além de meu grande amigo, era meu tio. Convenci-o da importância do mapa para a antropologia e de que sua publicação representava um anseio dos antropólogos brasileiros. Colocou-me em contacto com Rodolpho Barbosa que chefiava um setor importante na área de cartografia do IBGE.
Após reunir-me com Barbosa, vi formadas excelentes equipes, uma no Museu Nacional e outra no IBGE, seus integrantes entusiasmados com a publicação Mapa de Nimuendajú. Restava fechar politicamente a publicação, o que consegui após “costurar” uma reunião do Presidente da Fundação Pró-Memória com o Presidente do IBGE.
Em 1979, após muito trabalho, viagens, reuniões e encontros, a cartografia já estava praticamente pronta. Foi obtido o mapa do Museu Goeldi para que fosse cotejado com o do Museu Nacional. Escrevi uma introdução para a publicação, na qual explorava sua importância para o indigenismo, mas resolvi reescrevê-la e evitar esse assunto. Era tão feroz a luta travada em torno das terras indígenas, que apregoar a importância do Mapa para sua defesa poderia impedir a publicação. Era mais sensato enfatizar seus aspectos acadêmicos e artísticos, seu perfil de “patrimônio cultural”, e ocultar sua função política de instrumento de defesa dos territórios indígenas, exatamente para que, uma vez publicado, pudesse exercê-la. Portanto, em manobra diversionista, concentrei-me na avaliação do impacto da publicação para o problema do peso do meio ambiente versus o peso da cultura tradicional no texto que, acreditava, seria a apresentação da obra. Essa discussão, então muito em voga, opunha, de um lado, antropólogos que trabalhavam com hipóteses e modelos do paradigma da ecologia cultural e de outro, os que privilegiavam explicações e problemas do estruturalismo.
Em 1979 afastei-me do CNRC. A introdução que redigi transformou-se em um dos artigos do livreto que acompanha o mapa, pois, o papel formal de organizador da obra foi-me negado pelos políticos que dirigiam a Pró-Memória e o IBGE, que atribuíram a trabalhosa publicação ao excelente desempenho desses órgãos de governo sob suas clarividentes gestões. Embora me sentisse “roubado” em não me ter sido creditado formalmente o papel de organizador da publicação, foi enorme minha alegria em ver o Mapa editado. Senti-me plenamente recompensado pelo generoso reconhecimento de meus professores e colegas Castro Faria e Roque Laraia, em artigos publicados sobre Nimuendajú.
Este é a história da publicação do Mapa Etno-histórico de Nimuendajú. É um registro da cultura, da sociedade e da ciência brasileira de um tempo que passou. Pode ser de interesse confrontá-la com os sistemas atuais de publicação de obras acadêmicas, mais impessoais do que o do tempo de Nimuendajú e de quando trabalhei para publicar essa obra maravilhosa da antropologia brasileira.
E assim, continuamos a construir a legendária figura tutelar do nosso maior antropólogo indigenista.
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