O Discurso Liberal e a Expansão do Ensino Superior no Brasil

Introdução

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A política oficial para a Educação Superior dos últimos anos caracterizou-se pela expressiva expansão do número de alunos, por meio do aumento do número de instituições particulares de ensino e das vagas por elas ofertadas. Este crescimento resultou da produção e “marketing” de um discurso liberal, em economia e política, para a educação superior, durante o período FHC.

O programa do Presidente eleito mantém a proposta de expansão do ensino superior pela iniciativa privada. A maior diferença é que pretende o congelamento da relação atual de vagas entre instituições públicas e privadas, aceitando, porém, em suas características fundamentais, o modelo implantado nos últimos anos. Não busca um decréscimo relativo do ensino superior privado. Mantida esta relação, o sistema público de educação superior fica no seu tamanho atual, pois o sistema de ensino privado está parando de crescer, como demonstra a quantidade de vagas ociosas, hoje na casa de 20%.

Este artigo critica o discurso de expansão do ensino superior pela iniciativa privada, implementado a partir de 1994. Demonstra os problemas com um modelo de política para a educação superior, assumido pelo governo que sai e mantido, em linhas gerais, pelo governo que entra, de acordo com o programa que apresentou.

O quadro abaixo reflete o crescimento do ensino superior de 1994 a 2001:

ENSINO SUPERIOR: MATRÍCULAS NA GRADUAÇÃO

TOTAL Instituições Públicas Instituições privadas
1994 1.661.034 690.450 970.584
2001 3.030.754 939.225 2.091.529
Crescimento 82% 36% 115%

Fonte: INEP

As instituições federais absorvem pouco mais da metade dos alunos matriculados nas instituições públicas, e seu crescimento no período foi, apenas, ligeiramente maior do que a média das instituições públicas (que incluem, além das instituições federais, as estaduais e municipais).

I . Uma Política de Educação de Massas

A política recente de expansão do ensino superior é conseqüência das seguintes premissas:

1 – haveria uma relação direta e necessária entre expansão do ensino superior e desenvolvimento econômico e social. Como “toda oferta cria sua própria demanda” (“Lei de Say”), na tradição da economia liberal, haveria, como decorrência do número de graduados na universidade, a criação concomitante de vagas e posições no mercado de trabalho, com reflexos automáticos no sistema econômico e na geração de renda. Esta foi a posição defendida, em diferentes oportunidades por Moura Castro, Schwartzman e Batista de Oliveira ( ver, por exemplo, o artigo desses três autores, de 1997, “Ensino Superior: quando a exceção é a regra”, ou Moura Castro, Higher Education in Latin American and The Caribbean: a strategy paper);

2. o Brasil estaria em situação de atraso, não só em relação aos países mais desenvolvidos, como também, em relação aos seus vizinhos da América Latina, em vista da baixa proporção de matriculados na faixa etária relevante, neste nível de ensino. Este argumento fundamenta a proposta de expansão do ensino superior. Consta tanto na primeira versão do Plano Nacional de Educação, apresentada pela Oposição, como na versão aprovada pelo Congresso Nacional, com o beneplácito do governo que sai;

3. Haveria uma forte demanda reprimida, devido ao aumento do número de concluintes do Ensino Médio que teriam o direito à educação superior. A educação superior é, neste discurso, considerada uma continuidade natural do ensino médio, não uma ruptura;

4. o acesso ao ensino superior seria um direito de cidadania, e sua universalização, uma decorrência da democratização da sociedade. Uma “educação universitária de massas” seria uma característica dos Estados modernos. Daí, também, a política de quotas étnicas ou para pobres.

II – Crítica à Política de uma Educação Universitária de Massas

Não há qualquer relação necessária entre expansão do número de vagas no ensino superior, de um lado, e desenvolvimento econômico e social, de outro. Casos como o da Bolívia, país dos mais pobres, citados no Plano Nacional de Educação (PNE), seriam utilizados, de forma mais adequada, para criticar do que para justificar a necessidade de expansão indiscriminada do ensino superior. O caso da Argentina, atualmente mergulhada em uma crise brutal, também citado na fundamentação do PNE, funciona da mesma forma, como um teste negativo da relação “crescimento do ensino superior – desenvolvimento econômico”.

Por outro lado, há que se lembrar o exemplo oposto, o do Japão, que, em 2000, para uma população total de cerca 127.000.000 de habitantes, tinha aproximadamente 2.700.000 estudantes universitários, além de 300.000, nos chamados “Junior colleges” (dados do “JIN- Japan Information Network”). Assim, o Japão, com todo o seu desenvolvimento econômico e uma população não tão menor que a brasileira, tem um número de estudantes universitários próximo ao do Brasil.

Embora a educação básica represente, sempre e em qualquer circunstância, fator essencial para o desenvolvimento econômico, o ensino superior só contribuirá neste sentido, na medida que integre um projeto nacional como o que faltou ao governo que se encerra .

A falta desta visão mais ampla acabou tornando a educação superior e a educação, em geral, uma espécie de panacéia para todos os problemas nacionais. A primazia absoluta que lhe foi concedida tornou-se uma maneira de ocultar a importância de outros aspectos, como, por exemplo, a taxa de juros, o nível de emprego, a reforma agrária, etc.

A educação superior tem uma relação evidente com a renda pessoal. Moura Castro, Schwartzman e Oliveira (op. Cit.) a utilizam para justificar a expansão do número de vagas pois, maior o número de diplomados no ensino superior, maior a sua renda. Entretanto, há muitos outros fatores que vão afetar o emprego e a remuneração dos diplomados no ensino superior. Segundo estudo do professor Márcio Pochmann, da UNICAMP, por exemplo, enquanto nos Estados Unidos e na Inglaterra há um crescimento de vagas de alta qualidade no setor serviços, o crescimento dessas vagas no Brasil, também no setor serviços, ocorre em atividades como as de segurança, limpeza, comércio, construção civil e profissões como as de cozinheiro e garçom. Pochman descobriu que as áreas técnicas são aquelas que mais desempregaram, com queda de empregos para técnicos de eletricidade, eletrônica, telecomunicações, química e mecânica, inclusive para o pessoal de nível superior.

Há um saldo positivo de 1989 a 1996, segundo este mesmo estudo, de 6,9 milhões de postos de trabalho, mas concentrados nas ocupações de pior qualificação do setor serviços, como emprego doméstico, limpeza e vigilância. Por outro lado, o estudo demonstra que há um excesso de pessoal qualificado para as vagas existentes. De acordo com o professor Cláudio Salm, da UFRJ, o que temos agora são “babás mais educadas”.

Embora as pessoas portadoras de diploma de nível superior tendam a não ficar desempregadas, como demonstram essas pesquisas, muitas vão ocupar posições abaixo da sua qualificação formal. Engrossam os quadros de telefonistas, motoristas de táxi, soldados de polícia e babás com curso superior, que começam a se espalhar pelo Brasil. Por outro lado, expulsam do mercado pessoas menos preparadas formalmente, mas perfeitamente aptas a desempenharem a função exigida pelo emprego.

Há, desta forma, uma curva de rendimentos decrescentes na educação superior, que acarreta um elevado custo social e o cruel engano dos que se sacrificam para obter um diploma universitário, sem conseguir um emprego compatível com a sua formação. O crescimento do ensino superior só fará sentido – e só contribuirá para aumentar a renda média da população – no bojo de um projeto nacional voltado para a redistribuição de renda e para o desenvolvimento econômico, amparado em políticas industriais, agrícolas, de ciência e tecnologia, de energia, de transporte e outras.

Existe, sim, uma demanda reprimida, no que diz respeito às expectativas de acesso à universidade, decorrente do número de concluintes do segundo grau. Esta demanda reprimida, entretanto, resulta em grande parte das falsas expectativas criadas pelo próprio governo, pela imprensa e pelo “pensamento único” no imaginário popular. A imagem, divulgada pelos meios de comunicação e pelo governo, da educação superior como solução mágica para todos os problemas, cria, naturalmente, o desejo de concluir um curso superior. Não é oferecida, como na Alemanha, uma opção efetiva de conclusão do Ensino Médio em escolas técnicas, seguida de uma efetiva e bem remunerada colocação no mercado de trabalho. Por isto, caminha-se para uma situação em que a candidatura a qualquer emprego deverá exigir diploma universitário.

A premissa da universalização da educação superior (aqui incluída a política de quotas étnicas ou para carentes) resulta da incompreensão do papel da universidade, na medida em que esta é entendida como uma espécie de grupo escolar gigante ou de escola técnica avançada. A educação básica é, evidentemente, um direito central da cidadania e a base para o seu exercício, mas o mesmo não acontece com o ensino superior. A função da universidade não se esgota na formação de profissionais e não tem nada a ver, diretamente, com a distribuição de renda. A universidade existe para criar cultura, ciência e tecnologia, para atuar como consciência crítica da sociedade e para produzir as elites políticas, científicas e profissionais da Nação. Por isto, as propostas de educação universitária de massas são, na melhor das hipóteses, ingênuas, embora sempre dotadas de um forte apelo populista.

Em muitos países, como nos Estados Unidos, citados como modelo de sistema educacional supostamente bem sucedido, o ensino superior exerce, em larga medida, uma função compensatória, dada a séria crise de qualidade atravessada pela educação básica naquele País, onde muitas das escolas superiores funcionam como uma espécie de escola técnica avançada, ensinando “artes e ofícios”.

III. Expansão do Ensino Superior através da Rede privada de Ensino

A expansão do ensino superior está sendo realizada pela empresa privada seguindo as premissas e as razões abaixo, de acordo com a política governamental dos últimos anos.

1. Os recursos do Estado seriam priorizados para a educação básica, dadas as carências históricas neste nível. O Estado brasileiro não teria recursos para investir na expansão do ensino superior, o que, de resto, não seria recomendável, por ser ineficiente. Portanto, esta seria uma tarefa a ser assumida pela iniciativa privada. Daí a necessidade de reorganização da educação superior no País.

Em decorrência, houve um efetivo corte de recursos para as instituições federais de ensino superior.

A tabela abaixo retrata o tratamento orçamentário e político por elas recebido de 1994 a 2002:

DESPESAS DO TESOURO COM ÀS IFES – 1995- 2002 – em milhões de reais

ANO TOTAL NOMINAL TOTAL ATUALIZADO
1995 5.218 8.659
1996 5.219 7.719
1997 5.564 7.693
1998 5.731 7.651
1999 6.613 8.656
2000 6.785 7.412
2001 6.933 6.933
2002 6.988 6.988

FONTE: SIAF

2. O controle rigoroso pelo Estado, no que diz respeito à abertura de novas instituições de ensino superior, ensejaria casos de corrupção, como os que teriam ocorrido no antigo Conselho Federal de Educação.

3. Para que fosse possível a expansão da rede privada de ensino superior na velocidade pretendida, a nova organização do ensino superior brasileira passou a fundamentar-se nos seguintes aspectos:

1º criação quase livre de novas instituições e cursos para atender a dinâmica do mercado econômico, sempre buscando profissionais com novos perfis, e a demanda pelo que nos Estados Unidos é denominado “liberal arts”. Esses últimos seriam cursos de Humanidades, que serviriam para a formação ampla da personalidade, para enriquecimento cultural da pessoa e, no caso norte-americano, como pré-requisito para a continuidade dos estudos em certas carreiras;

2º liberdade para a criação de novos cursos e instituições por três conjunto de ações:

Pela flexibilização do conceito de universidade, para que um grande número de instituições de ensino passasse a contar com as prerrogativas da autonomia universitária, podendo assim criar, livremente, cursos e vagas. O texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), aprovada no Congresso Nacional, resultante de um substitutivo de iniciativa do governo, explicita em seu art. 52, os critérios para que uma instituição possa ser considerada como “universidade”.

De acordo com este artigo da LDB:

“Art. 52. As universidades são instituições pluridisciplinares de formação dos quadros profissionais de nível superior, de pesquisa, de extensão e de domínio e cultivo do saber humano, que se caracterizam por:

I- produção intelectual institucionalizada mediante o estudo sistemático dos temas e problemas mais relevantes, tanto do ponto de vista científico e cultural, quanto regional e nacional;

II – um terço do corpo docente, pelo menos, com titulação acadêmica de mestrado ou doutorado;

III – um terço do corpo docente em regime de tempo integral.”

Entretanto, os diferentes decretos regulamentadores deste artigo, respectivamente os de nº 2.207, de 15 de Abril de 1997 e nº 3.860, de 9 de Julho de 2001, simplesmente se omitiram no que diz respeito ao caput e ao inciso I do referido artigo da LDB. Assim, passou-se, apenas, a exigir um terço do corpo docente, pelo menos, com titulação acadêmica de mestrado ou doutorado e um terço do corpo docente em regime de tempo integral, exigências não muito difíceis de serem cumpridas, do ponto de vista burocrático. O Conselho Nacional de Educação passou a classificar como “universidades” instituições as mais diversas, que preenchessem os critérios formais de número de mestres e doutores, e professores em tempo integral.

O art. 53 da mesma LDB inclui, dentre as prerrogativas da autonomia universitária, os direitos de criar cursos “obedecendo às normas gerais da União e, quando for o caso, do respectivo sistema de ensino”. Adiciona, também, o direito de criação de novas vagas.

Assim, as dezenas de universidades, recém-reconhecidas, passaram a poder criar cursos e vagas, livremente, pois o MEC não impôs qualquer exigência prévia mais estrita para a abertura de novos cursos superiores.

b) Pela extensão do conceito de autonomia a instituições não classificadas como “universidades”.

Reza o § 2º do art. 52 da LDB:

“§ 2º. Atribuições de autonomia universitária poderão ser estendidas a instituições que comprovem alta qualificação para o ensino ou para a pesquisa, com base em avaliação realizada pelo Poder Público.”

Com base neste artigo foi criada por decreto (o que é juridicamente discutível) a figura dos “centros universitários” (Decreto nº 2.306, de 19 de agosto de 1997), aos quais passaram a ser estendidas as atribuições de autonomia.

Ainda, foi autorizada a grande número de instituições avaliadas favoravelmente pelo MEC a criação de novos cursos e vagas, sem qualquer formalidade maior.

Para justificar este movimento, argumentavam o MEC e o Banco Mundial, pela comparação com outros países, que, no mundo inteiro, a pesquisa científica e tecnológica estaria concentrada em algumas poucas instituições e que, portanto, deveria haver espaço para outro tipo de instituição baseada apenas no ensino.

c) Pela substituição dos “currículos mínimos” por “diretrizes curriculares”

A LDB, ao invés de usar a expressão “currículos mínimos” utiliza a expressão “diretrizes curriculares”. Nos termos vagos da LDB, esta alteração nada significa. Porém, o MEC, por intermédio do decreto regulamentador da LDB e o Conselho Nacional de Educação, por meio de pareceres, abandonou a grade curricular por curso, deixando a elaboração dos currículos a critério das diferentes instituições. O argumento que fundamentava esta transformação era o da necessidade de adequação dos currículos às necessidades do mercado e a da descentralização acadêmica. As instituições poderiam mudar seus currículos de acordo com a procura por profissionais com um determinado perfil, ou ainda, por pessoas que buscariam o ensino superior para seu enriquecimento cultural, sem pretender alguma melhoria de seu padrão de renda.

4. Avaliação a posteriori em substituição à fiscalização prévia.

Passou-se a pouca ou nenhuma fiscalização prévia, no que diz respeito à abertura de novas instituições ou cursos no ensino superior, o que facilitou, sobremaneira, o crescimento do número de instituições privadas. A fiscalização a priori foi, em larga medida, substituída pela avaliação a posteriori do desempenho de novas instituições e cursos, por intermédio de mecanismos como o “Exame Nacional de Cursos”, “Provão”, dentre outros.

A intenção declarada pelo MEC, quando da implantação desta nova sistemática, era a de fechar os cursos que fossem avaliados negativamente de forma repetitiva, e que não tivessem qualquer esperança de recuperação.

IV – Crítica da Política de Expansão da Educação Superior pela Iniciativa Privada

1. Sobre a suposta ineficiência da universidade pública brasileira

A universidade pública não é ineficiente, como pretendem seus críticos. A evidência oposta tem mais consistência, se for considerado que realiza mais de 90% da pesquisa científica e tecnológica brasileira; que das instituições governamentais depende a manutenção de hospitais universitários, os quais, em muitas cidades, representam a única possibilidade de atendimento gratuito para a população carente; que delas depende a garantia de boas bibliotecas, laboratórios, e de um corpo docente qualificado, além de formar profissionais, via de regra, melhor preparados. Por seu envolvimento com a pesquisa é da universidade pública que se origina a produção cultural, a crítica social e a busca de soluções para os grandes problemas nacionais.

Um aspecto a ser considerado, quando se diz que a universidade pública é financeiramente ineficiente, é o absurdo pagamento de aposentados pelo orçamento dessas instituições. Logo, à medida que aumenta o número de aposentados, diminui a quantidade de recursos efetivamente disponíveis para o ensino, para a pesquisa e a extensão. Este problema tem se tornado crítico, nos últimos anos, devido ao grande número de aposentadorias.

No que concerne a uma comparação de custos, ver o estudo de autoria de Paulo de Sena Martins, “A Guerra Estatística” (1999), que demonstra que os custos da universidade pública não são exagerados .

Não obstante, o governo erigiu a idéia da ineficiência da universidade pública como um fundamento de sua política para o ensino superior. Assumiu a tese liberal de que o Estado deveria resumir-se ao velho “laissez-faire” e se retirar, até, da educação superior.

A crítica à universidade pública obedecia à mesma lógica da que se fazia à participação do Estado em telecomunicações, em siderurgia, em informática, em geração de energia, etc. A universidade era, assim, considerada apenas produtora de um serviço econômico, e não uma instituição central à própria identidade nacional.

Ao mesmo tempo, foram sendo realizadas pesquisas que demonstraram que o status econômico dos estudantes matriculados nas instituições públicas de ensino superior não seria tão elevado, ou seja, que a universidade de melhor qualidade, mantida pelo Poder Público, não era o espaço de uma minoria econômica privilegiada. Análise de dados do questionário sócio-econômico do “Provão”, realizada pelo próprio INEP, demonstra que, nas instituições federais de ensino superior, a percentagem de formados com renda familiar acima de R$ 3.021,00 é de 24,4%, enquanto nas particulares é de 31,5%. Nas instituições municipais e estaduais as percentagens são ainda menores, de 18,7 e 19,9%, respectivamente.

Assim, não procede a hipótese da ineficiência do Estado, no que diz respeito à educação, sob qualquer ponto de vista, econômico, social, pedagógico, político ou cultural.

2. Sobre a suposta escassez de recursos para o ensino superior público, em vista da prioridade para o ensino básico.

A formulação de políticas públicas no Brasil perdia sentido, no passado, devido à inflação. Agora perde sentido em vista da carga de juros e do uso do superávit primário para o pagamento de juros da dívida pública. A situação é, ainda, mais complexa se for considerado que os juros têm sido mantidos, no entendimento de alguns analistas, em patamar artificialmente alto (ver artigo anterior de nossa autoria publicado na “Revista de Conjuntura”, do Conselho Regional de Economia).

Toda e qualquer política social, inclusive na área de educação, fica, assim, comprometida por uma deformação de base, a prioridade ao pagamento da dívida pública, em detrimento do apoio a programas sociais e de desenvolvimento econômico.

Assim, é falsa a dicotomia “prioridade para o ensino básico versus prioridade para a educação superior”, pois há recursos para se apoiar ambos os níveis de ensino. A real dicotomia é, de um lado, entre o pagamento e o crescimento artificial da dívida pública e, do outro, políticas sociais e de desenvolvimento.

Portanto, a desproporção fica evidente considerando-se os R$ 86,4 bilhões (7,3% do PIB) pagos em 2001 em juros da dívida pública, e algo próximo a sete bilhões de reais alocados para as universidades federais, no mesmo período.

Quanto à suposta primazia para o ensino básico, há que se observar que a Constituição Federal, nos termos de seu art. 211, atribui esta prioridade aos Municípios e aos Estados. Assim, não há por que o Banco Mundial e/ou o MEC estabelecerem prioridades, que já estão previstas em nossa Lei Maior.

Portanto, os recursos alocados para bolsa escola, FUNDEF e outras atividades de apoio ao ensino básico, não podem ser considerados como concorrentes dos recursos alocados para as universidades federais.

3. Sobre a flexibilização dos procedimentos para abertura de novos cursos e instituições para que fosse possível a expansão do ensino superior privado

O argumento de que a avaliação prévia dos pedidos de abertura de novos cursos e instituições pelo MEC ensejaria a prática da corrupção integra o discurso maniqueísta que classifica o Estado como “o mal” e o mercado livre como “o bem”. Após sete anos de vigência da nova sistemática, consubstanciada pela transformação do antigo Conselho Federal de Educação em Conselho Nacional de Educação, o que se vê é um aumento significativo nos casos de corrupção e nos escândalos. Isto é especialmente verdadeiro, uma vez que o novo Conselho é composto, em larga medida, por representantes das próprias instituições que pretenderia fiscalizar ou controlar.

As mudanças na legislação, a não aplicação da lei, em alguns casos, e as alterações nos procedimentos para a abertura de novos cursos e instituições de ensino superior significaram, na prática, uma marcante mudança de critério no que diz respeito às prerrogativas dos mais variados estabelecimentos de ensino. Assumiu-se que instituições que não associam ensino, pesquisa e extensão teriam direito à autonomia universitária, o que, para alguns, tornaria supérfluo o art. 207 da Constituição, que atribui a autonomia, apenas, às universidades. Neste caso, seria inconstitucional a extensão da autonomia, na forma prevista na LDB, levada a extremos pelo MEC.

É absurdo o argumento de que uma parcela expressiva dos candidatos às vagas no ensino superior procura cursos gerais de Humanidades que contribuam para sua ilustração e cultura geral, como no caso dos cursos norte-americanos de “liberal arts”. Não há dúvida de que a maior parte dos brasileiros candidatos ao ensino superior, público ou privado, está lutando para conseguir uma profissão e, portanto, uma melhor posição no mercado de trabalho. Este fato demonstra a essencial mistificação do argumento, uma vez que é mínima, no Brasil, a quantidade de senhoras idosas, com tempo livre, ou donas de casa que procuram se ilustrar! No último censo do ensino superior, recém divulgado, detectou-se um aumento no número de vestibulandos de mais de 50 anos, mas o seu número ainda é irrisório (menos de 70 vezes o de vestibulandos nas faixas mais jovens), em que pese a bombástica divulgação do assunto. Mesmo nos Estados Unidos, os cursos de “liberal arts” funcionam, freqüentemente, como pré-requisito para uma formação profissional (caso dos cursos de Direito, por exemplo).

A não-necessidade da pesquisa para se caracterizar uma instituição ou um curso superior parte de um conceito estrito de “pesquisa científica”. Não resta dúvida de que apenas poucas instituições, em todo o mundo, contribuem sistematicamente para o avanço do conhecimento científico. Porém, tradicionalmente, a associação pesquisa-ensino representa um princípio pedagógico, isto é, o posicionamento da investigação, por mais despretensiosa que seja, como posição de princípio assumida por professores e alunos. Neste sentido, a “pesquisa” identifica-se com o despertar de uma atitude de permanente curiosidade e questionamento, e opõe-se ao conhecimento livresco, à verdade não contestada, imposta pela cátedra.

A tentativa de excluir a “pesquisa” da idéia de universidade representa, apenas, mais uma tentativa de se eliminar o controle de qualidade no ensino superior, para que se facilite a livre abertura de novas instituições. A idéia de pesquisa, como princípio pedagógico, contraria, por exemplo, o sistema de franquias, que se estende, hoje, pelo ensino privado brasileiro, multiplicando “pacotes” educacionais pré-fabricados.

Outra inovação importante foi o conceito de “diretrizes curriculares”, em substituição aos antigos “currículos mínimos”. Estes compreendiam um núcleo de matérias comuns, ficando uma margem de liberdade para que as instituições colocassem matérias opcionais.

As diretrizes curriculares são orientações extremamente gerais sobre as diversas áreas do conhecimento, pouco ou nada exigindo em termos de um conteúdo curricular comum para o mesmo curso superior. Assim, um curso de Economia ministrado em uma instituição pode ser completamente diferente de um curso de Economia de outra instituição.

Uma conseqüência da nova sistemática é que as instituições de ensino superior podem organizar os conteúdos curriculares dos cursos que oferecem de acordo com os professores disponíveis no momento, em uma dada localidade, o que facilita, sobremaneira, a abertura de novos cursos. Outra, é que os estudantes passam a ter dificultada a transferência entre instituições: não é raro que um estudante de último ano, ao se transferir para outra instituição, tenha que recomeçar seu curso, devido à diferença de currículos.

Uma implicação séria da falta de currículos mínimos origina-se da relação que historiadores (como José Murilo de Carvalho, por exemplo) têm estabelecido entre a unidade da educação superior, no Brasil, e a própria unidade política do País. De fato, o partilhamento de valores próprios originários de um sistema acadêmico comum teria ensejado a unidade de valores da elite política e a unidade nacional brasileira.

4. Sobre a avaliação a posteriori do ensino superior

A substituição da avaliação e da fiscalização prévias pela avaliação a posteriori traz problemas dos mais graves. O primeiro é a dificuldade de se fechar um curso superior em funcionamento, mesmo que este tenha um nível baixíssimo. Esta era uma conseqüência facilmente previsível, em vista dos interesses envolvidos. O autor deste estudo, por exemplo, em artigo publicado em 1999, sobre Autonomia Universitária, previu este resultado.

Hoje, quando timidamente o MEC procura tomar medidas de correção de rumo de algum curso superior ou, quando após um longo processo de tergiversação, vê-se obrigado a fechá-lo, simplesmente não o consegue. Liminares e outras medidas judiciais o impedem.

Esta dificuldade inviabiliza todo o modelo proposto, caracterizado pela avaliação como contrapartida à ampla liberdade das instituições, pois o Estado não é capaz, sequer, de proteger os direitos do consumidor – pois assim é considerado o aluno – de serviços que o próprio Estado classifica como de má qualidade.

A quase livre abertura de novos cursos superiores, com o suposto controle pela avaliação a posteriori, possibilitou a operação de cursos não reconhecidos, ou seja, cujos diplomas não têm valor para o exercício profissional. Só em junho de 2002, o MEC tornou disponível uma lista dos cursos reconhecidos, de forma que, antes disto, desenvolveu-se um lamentável processo de propaganda enganosa, lesando estudantes que não tinham conhecimento de que os cursos em que se matricularam não possuíam a chancela do reconhecimento oficial.

A avaliação a posteriori do ensino superior tem, também, problemas decorrentes da própria metodologia que emprega. O principal instrumento utilizado é Exame Nacional de Cursos, “Provão”.

Em dezembro de 2001, o MEC alterou os critérios do Provão, principalmente, no que diz respeito à atribuição de notas aos diversos cursos.

O critério anterior seguia uma curva na qual, em todas as áreas do conhecimento, a distribuição era, sempre, a seguinte: 12% dos cursos recebiam nível A; 18% dos cursos recebiam nível B; 40% dos cursos recebiam nível C ;12% dos cursos recebiam nível D; e os restantes nível E.

O novo sistema, hoje aplicado, não parte de uma curva de distribuição pré-estabelecida, mas atribui notas em função de sua proximidade maior ou menor às médias obtidas em cada curso. Esta distância é medida pelo desvio padrão de cada curso frente à média.

O primeiro sistema era inteiramente absurdo, uma vez que não havia, de fato, uma comparação de cursos, mas sua distribuição por uma curva aprioristicamente estabelecida.

Desta forma, ficava inteiramente comprometida a questão das diferentes situações das diversas áreas do conhecimento. Por exemplo, em uma área onde a maior parte dos cursos estivesse, de fato, próxima à média, mesmo aí, 12% seriam ungidos com o nível “A” e 12% seriam estigmatizados com o nível “D”. Já o nível C compreenderia, sempre, 40% dos cursos.

Em outra situação, onde houvesse um pequeno número de cursos excelentes e uma enorme quantidade de cursos de péssima qualidade, esta variação também não seria aferida, persistindo a mesma distribuição anterior.

Não havia qualquer metodologia fundamentando o modelo de distribuição, ou seja, não havia qualquer justificativa racional para que 12% dos cursos fossem nível “A”, 18% nível “B”, e assim por diante.

A nova fórmula de distribuição continua absurda, pois o conjunto de cursos de uma determinada área continua a ser considerado como um universo “fechado”. A comparação é entre os cursos de uma dada área do conhecimento, no conjunto das instituições brasileiras, e não desses cursos frente a um padrão ideal, que identifique o que se espera do ensino superior naquela determinada área. A nota atribuída aos cursos brasileiros continua sem espelhar se estes preparam bem ou mal aqueles que o concluem, visto que, pelo novo critério, se todos os cursos de uma determinada área forem péssimos por padrões internacionais, nem por isto a maior parte deixará de se aproximar da média e muitos receberão nível “A”.

O correto seria estabelecer, a partir de uma ampla consulta a especialistas de cada área, uma série de conteúdos, conhecimentos e aptidões que os diversos profissionais deveriam possuir, e atribuir-se a menção ao curso em função do desempenho dos alunos no exame elaborado a partir desses conhecimentos, conteúdos e aptidões. Assim, todos os cursos de uma determinada área poderiam ser, teoricamente, de nível A ou ter nível D.

Esta seria a forma direta, sem subterfúgios, para se estabelecer um ordenamento das instituições através do Provão.

O Provão, portanto, é formulado de maneira a esconder uma ampla faixa de cursos de má qualidade, ao invés de evidenciá-los, sua função declarada.

V . Conclusões

1- Política para a Educação Superior e Projeto de Nação

A primeira conseqüência da política do governo Fernando Henrique para a educação superior foi uma expressiva mudança de conceito de universidade. A universidade, cuja missão era a de produzir um projeto de Nação, compreendendo uma consciência moral, um ambiente cultural, o desenho deste mesmo projeto de Nação e preparar indivíduos para levá-lo à frente, foi reduzida de status, passando a enfatizar a produção de um serviço, o ensino, cujo objetivo principal seria o de formar profissionais para o mercado de trabalho.

É verdade que, em diferentes países existem algumas instituições voltadas para o primeiro objetivo acima, e outras, voltadas para o segundo. Não há porém, a necessidade de se destruir as primeiras para se implementar as últimas. Além disto, nem todos os empregos deveriam exigir curso superior: há países dotados de um eficiente sistema público de educação média, sem os custos que a universidade acarreta. A expansão foi, portanto, excessiva.

É plausível a suposição de que, ao desistir de uma boa universidade pública de alta qualidade, o País estaria desistindo de qualquer aspiração ou intenção de se tornar uma Nação autônoma e desenvolvida. Logo, a desistência e, em alguns casos, o desprestígio da universidade pública, no Brasil recente, decorre do abandono de um projeto de Nação.

A formação de elites, a produção de conhecimento e o desenho de projetos políticos e econômicos não caberia a países como o Brasil. A formação das elites locais ocorreria pela participação de brasileiros, quase sempre como estudantes, em universidades do exterior, aprendendo o papel que cabe a uma despretensiosa elite periférica. Durante a Colônia, as elites brasileiras experimentaram este tipo de formação na Universidade de Coimbra.

2. A Educação e o Diploma como Mercadorias

Em países avançados, mesmo a educação profissional, na universidade ou fora dela, reveste-se de um sentido de ”missão”, não de comércio. As instituições de ensino superior têm, em geral, uma autonomia gerencial que as levam a cobrar mensalidades, investir em ações etc, mas o lucro não é seu objetivo declarado. Ao contrário, o objetivo da maior parte dessas instituições é o avanço da educação, e os bons resultados financeiros representam um meio para se atingir este objetivo.

Não existe, nos países desenvolvidos, um modelo como o preconizado pelo Banco Mundial para o Brasil e outros Estados da África e da América Latina, que transfere a educação superior à iniciativa privada com fins lucrativos. Desconhecem a estranha figura brasileira da “mantenedora”, empresa cujo objetivo é o lucro através de investimentos no ensino superior. As “mantenedoras”, em países desenvolvidos, são, geralmente, “mantenedoras” mesmo, isto é, mantêm, por meio de rendimentos obtidos em fontes diversas, instituições de ensino e pesquisa. O contrário, fazer a instituição manter a “mantenedora” é, no mínimo, uma inversão do sentido convencional do termo.

No Brasil, até a implantação do atual modelo de educação superior, o ensino privado tinha essa característica de missão. Os aspectos financeiros eram meios, e não fins da educação superior. É o que ainda ocorre em algumas universidades mantidas por igrejas e comunidades e em outros estabelecimentos tradicionais.

A educação superior, considerada como mercadoria, produz serviços educacionais a serem vendidos no mercado econômico, por meio da formação profissional. Este seria o objetivo das instituições de ensino superior em países como o Brasil, segundo o modelo do Banco Mundial.

Como conseqüência deste modelo empresarial, foram criadas grandes oportunidades de negócios, de “big business” , sendo o ensino superior uma das áreas de maior expansão do setor serviços na economia brasileira, durante os últimos anos.

Concomitantemente, surgiu uma nova classe sócio-econômica, a de proprietários de instituições de ensino superior. Hoje, em muitas das cidades mais afluentes do País, e até em escala estadual e federal, os grandes empresários do ensino superior são lembrados como das “pessoas mais ricas”, à semelhança dos grandes comerciantes, fazendeiros ou industriais.

3. O aviltamento da qualidade do ensino e da formação profissional

Fosse apenas a educação a mercadoria a ser vendida no mercado econômico, a situação não seria tão grave. Porém, mais do que um serviço educacional, muitas instituições privadas de ensino superior fazem da venda de diplomas seu objetivo principal.

Isto se torna possível devido à falta de mecanismos efetivos de controle da expansão do ensino, à falta de fiscalização prévia no processo de abertura de novos cursos e instituições, aos problemas com a avaliação a posteriori e à incapacidade do MEC de tomar medidas punitivas em relação às instituições de qualidade muito fraca.

A maior parte das profissões de nível superior é regulamentada no Brasil. Cada profissão exige um diploma específico e conta com um território delimitado no mercado de trabalho, garantido por lei. Assim, em muitas circunstâncias, o que vale não é o preparo, mas o diploma.

Com o tempo, as empresas passam a conhecer as melhores e as piores instituições educacionais e a contratar diplomados pelas primeiras. O maior empregador, o Estado, emprega a maior parte de seu pessoal por intermédio de concurso público. Há uma seleção por mérito, e a fraqueza de muitas instituições leva a situações como a dos concursos para Juiz de Direito, que não têm conseguido preencher as vagas disponíveis, devido ao despreparo dos candidatos.

Lesado é o estudante das instituições de baixa qualidade, que, às custas de severos sacrifícios pessoais, freqüentemente estudando à noite e pagando uma pesada mensalidade, depois de formado percebe que o diploma não vai render-lhe grandes vantagens na melhoria de sua vida.

Lesado é o público, em geral, que se vê atendido por profissionais liberais despreparados. Profissionais liberais estabelecem-se por conta própria e não dependem de um emprego para atuar. É dramático o exemplo do pessoal médico. A quase livre abertura de cursos médicos, como se observa atualmente, sem qualquer controle maior de qualidade, representa um crime contra a vida e a saúde da população.

Devido ao excesso de diplomados, o mercado de trabalho passa a exigir educação superior para qualquer função. Para muitas dessas, como as de babá, telefonista ou soldado de polícia, este nível de qualificação seria, obviamente, desnecessário. O empregador, porém, vai preferir candidatos com diploma universitário, supostamente mais qualificados e recebendo o mesmo salário.

Além disto, nos concursos públicos, há a tendência de que os candidatos com diploma universitário tenham melhores probabilidades de aprovação, mesmo que pouco tenham aprendido no correr do curso superior. Daí os casos de diplomados em curso superior fazendo concurso para gari ou ascensorista.

Desta forma, um diploma de formação superior está deixando de representar um atestado de formação para o exercício de uma atividade profissional e tornando-se uma espécie de habilitação genérica para ingresso no mercado de trabalho; algo como um imposto pago a determinadas empresas educacionais, durante um certo número de anos, para que seja conquistado o direito de trabalhar. O credenciamento pelo diploma para todo e qualquer emprego e não mais, somente, para o exercício de uma profissão específica, representa uma nova e extrema forma de cartorialismo. Consiste, na prática, na concessão a empresas educacionais do privilégio de cobrar taxas obrigatórias para que as pessoas possam trabalhar. Os “excluídos”, mais do que os apenas pobres, são, crescentemente, os desempregados crônicos, a maioria sem uma qualificação formal mais avançada.

Usando os argumentos do liberalismo, a política para o ensino superior tem tido o efeito oposto, de colocar mais um “gesso” na economia, a um custo social elevadíssimo.

4. O ataque à universidade pública

O estímulo à iniciativa privada no ensino superior deu-se, em ampla medida, às custas da universidade pública, que só não foi efetivamente destruída devido ao seu peso político, sobretudo nos Estados mais pobres da Federação. De fato, na maioria dos Estados do Norte e do Nordeste, o papel de ensino superior privado é relativamente pequeno e a influência política da universidade pública é muito forte. No Nordeste, ao contrário do restante do País, o número de estudantes no ensino superior público é o dobro dos matriculados no ensino superior privado.

O governo Fernando Henrique fez várias tentativas, a partir de 1995, para aprovar emenda constitucional definindo e explicitando a autonomia universitária. A proposta original poderia levar ao abandono das universidades federais pela União e sua transformação em organizações sociais, com as quais o compromisso orçamentário fica dependente de um contrato de gestão, a critério do próprio governo federal. Poderia, ainda, levar à privatização.

A resistência da sociedade se fez sentir no Congresso Nacional, onde a Comissão encarregada da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) relativa à matéria chegou a uma proposta que preservava durante dez anos um patamar mínimo de 75% dos recursos federais vinculados à educação para a universidade pública federal, nos termos do art. 212 da Constituição. Posteriormente, texto com igual objetivo foi incluído no Plano Nacional de Educação. A PEC garantia, além disto, autonomia gerencial às instituições, para que pudessem gerir de forma mais eficiente os recursos a elas alocados e o seu patrimônio.

Essa Proposta de Emenda à Constituição, apresentada pelo Poder Executivo, foi abandonada, por iniciativa do próprio Poder Executivo, uma vez que nos termos em que foi aprovada no Congresso, preservava a universidade federal. Foi, também, vetado pelo Presidente da República o item do Plano Nacional de Educação que assegurava recursos constantes para as universidades federais.

Há que se considerar, ainda, a resistência da comunidade acadêmica, principalmente dos professores, durante o período. Greves, por razões salariais, cujas conquistas se refletiram no próprio orçamento das universidades. Não resta dúvida de que os recursos financeiros alocados às universidades públicas estariam abaixo dos atuais, não fosse o crescimento dos recursos para pessoal, devido às conquistas obtidas pelas paralisações.

Não obstante, as greves foram altamente prejudiciais à própria universidade pública, devido à queda na qualidade do ensino, ao desprestígio e ao desestímulo das instituições, de seus estudantes e professores.

5. Restaurando a dignidade da universidade brasileira:

propostas para o ensino superior

Para se corrigir o rumo da educação superior no Brasil, impõem-se as seguintes medidas, no que diz respeito ao ensino superior público:

recuperação do papel da universidade pública, como instituição essencial à identidade e à própria sobrevivência do País;

atribuição de verbas, segundo um patamar histórico, para as universidades públicas, para contratação de docentes e infra-estrutura;

desvinculação dos inativos do orçamento das universidades públicas;

expansão do ensino superior principalmente pelo ensino público.

reavaliação do plano da carreira docente das universidades públicas.

No que diz respeito ao ensino superior privado, impõem-se as medidas abaixo:

fim do Conselho Nacional de Educação;

discussão do conceito jurídico de autonomia universitária, de forma a restringir sua aplicação quase livre, como ocorre atualmente;

substituição da avaliação a posteriori pela avaliação a priori e fiscalização intensa das instituições particulares de ensino superior;

compromisso absoluto com a qualidade, como critério essencial para autorização de funcionamento de cursos e de instituições de ensino superior;

realização de um exame obrigatório para acesso à educação superior, comum a todas as instituições, públicas ou privadas, formulado e aplicado pelo Ministério da Educação;

fechamento de todas as instituições que não tenham condições de funcionamento com um padrão de qualidade elevado, aferido por um critério de comparação internacional e requisitos do mercado de trabalho brasileiro.

criação de algo semelhante a um “exame de ordem”, como o da OAB e do CFC, a ser ministrado pelos conselhos profissionais das diversas carreiras ou pelo MEC, como condição para a prática profissional, além do diploma.

BIBLIOGRAFIA

Corbucci, Paulo Roberto

– “Avanços, Limites e Desafios das Políticas do MEC para a Educação Superior na Década de 1990: Ensino de Graduação”. IPEA: Texto para discussão Nº 869. Brasília, Março de 2002.

Ministério da Educação

– “Fatos sobre a Educação No Brasil: 1994-2001. Brasília, MEC, S/D”.

Sena Martins, Paulo

– “A Guerra Estatística”. Cadernos da Aslegis, nº 4, Janeiro-Abril, Associação dos Consultores Legislativos e de Orçamento da Câmara dos Deputados, 1999.

Zarur, George de Cerqueira Leite

– “Autonomia Universitária”. Humanidades, nº 43, Universidade de Brasília, 1999

– “Ciência, Mito e Sofrimento: O pensamento econômico e seus efeitos no Brasil”. Revista de Conjuntura, Ano II, Nº 8, Out/DEZ. Conselho Regional de Economia do Distrito Federal e Sindicato dos Economistas do Distrito Federal, 2001.

[1] Desejo agradecer à minha esposa Sandra Beatriz Zarur e à minha filha Márcia Zarur pela revisão deste artigo.

[2] Economista e antropólogo, Ph. D pela Universidade da Flórida, Ex-pesquisador visitante da Harvard University.