Morreu a ditadura! Três vezes salve a esperança!
Mas a alegria com o Brasil daquele ano de 1985 foi se dissolvendo em vagas de desencanto. Governos civis se sucederam em aplicar golpes “brancos” para estender ou duplicar mandatos presidenciais. A intimidação física dos militares para submeter políticos foi substituída por imunda corrupção. Abandonada a brutalidade, o controle sobre a sociedade transferiu-se para os meios de comunicação, mais sofisticados e eficazes que armas de fogo.
Porém, voltemos a 1988, quando o sol da liberdade brilhou no céu da Pátria por um breve instante. Foi quando ingressei na FLACSO-Brasil. Sua implantação, pouco antes, exprimiu uma ampla tentativa de reorientar as prioridades nacionais. A criação da FLACSO-Brasil coincidiu com o fim do governo militar e com tomada de fatias do poder por uma geração comprometida com a fraternidade entre os seres humanos. Vestir a identidade latino-americana significava assumir a solidariedade com os vizinhos. Movimentos parecidos aconteceram na Argentina e em outros países com o concomitante fim dos regimes militares, de maneira que a vontade do diálogo e da integração aconteceu dos dois lados.
Até o fim da ditadura, o Brasil viveu a iminência de um conflito com a Argentina. Nossos exércitos se concentravam no Sul e toda a estratégia militar nacional partia da premissa do conflito potencial com a Argentina. Rondon, após a arbitragem da questão de Palmas, abriu a Estrada Patriótica, hoje a Estrada Parque do Pantanal, para atingir a fronteira do Paraguai, cujo território seria estratégico para a movimentação das tropas dos dois países. Quem controlasse o Paraguai envolveria o território do outro em movimento militar clássico. Em plena Segunda Guerra Mundial, após a ocupação da Europa Continental pela Alemanha Nazista, Perón declarava que “uniria a América do Sul” assim como Hitler havia unido a Europa. Até os anos 50, a Argentina era a grande potência econômica sul-americana, o que fazia seus vizinhos terem medo de seu poderio. Uma das justificativas para a construção de Brasília no centro do País foi a da defesa contra um eventual ataque argentino.
A situação foi se invertendo com o desenvolvimento brasileiro contínuo e acelerado durante mais de sete décadas. O poderio brasileiro tornou possível a retomada da postura arrogante do século XIX e os demais estados da região passaram a temer o Brasil. Durante a ditadura, a América do Sul voltou a ser considerada como espaço geopolítico para a “Projeção Continental do Brasil”, título do livro do General Golberi do Couto e Silva. O Brasil reassumia a postura de delegado das potências centrais para manter a América do Sul bem comportada. Essa atitude revivia a história do Império Brasileiro, cuja casa real vinculava o País à Santa Aliança Européia, na forma de um subimperialismo regional. Mudara, apenas, o pólo central de Poder, transferido da Europa para os Estados Unidos.
Durante o governo Médici, a construção de Itaipu representou um momento crítico no crescimento das tensões entre Brasil e Argentina, mas funcionou a chamada “diplomacia militar”. Falou mais alto o interesse comum dos militares dos diferentes países, que compunham uma aliança continental contra os opositores aos sangrentos regimes políticos que geriam. Mas militares são militares e, por definição, as forças armadas legitimam sua existência pelo conflito potencial com outras forças armadas, o que mantinha o nível de tensão sempre elevado. Quase aconteceu a guerra entre Chile e Argentina devido à questão do Beagle e formou-se uma frente antibrasileira reunindo Argentina, Peru e Venezuela. A aliança alicerçava-se em um discurso geopolítico e histórico que entendia o Brasil como uma continuidade do Império Português, que por malícia e perversa esperteza teria conseguido ampliar suas fronteiras na América em detrimento dos espanhóis valorosos, mas ingênuos. Essa tese foi desmontada por Buarque de Holanda, quando demonstrou em seu livro Extremo Oeste que a expansão brasileira foi, antes de tudo, conseqüência do desinteresse do estado espanhol no que é hoje o interior brasileiro, devido à sua obsessão pelo ouro e a prata do Peru.
Havia um profundo desprezo por nossos vizinhos latino-americanos. Era ridículo ver os brasileiros culturalmente mestiços se arvorando em representantes da civilização frente à “barbárie” latino-americana. A grosseira expressão “cucaracha” usada pelos norte-americanos era e, felizmente, deixa de ser aos poucos, de uso comum pelos brasileiros a referir-se a seus vizinhos. A arrogância não era, entretanto, só brasileira. Os argentinos, por exemplo, desde Sarmiento, percebiam o mundo cortado pela oposição civilização e barbárie. Da mesma forma como Buenos Aires via o resto do País como um amontoado de bárbaros, a Argentina como um todo assim percebia o brasileiro e os demais povos das Américas. O sistema argentino de hierarquias possuía (e ainda possui em alguma medida) um forte critério racista. Éramos “los macaquitos”.
A criação da FLACSO-Brasil na aurora precocemente esmaecida da democracia brasileira espelhava a decisão coletiva de considerar os demais países latino-americanos como passageiros da mesma nau em que viajamos. A Nova República levou o Brasil a assumir-se como América Latina e, para tanto, criar a FLACSO-Brasil, instituição voltada para entender a região e sugerir, criar e gerir mecanismos acadêmicos de integração. Intérprete dessa vontade coletiva foi Ayrton Fausto, criador da Flacso-Brasil. Ayrton, devido a sua notável capacidade de articulação foi capaz de mobilizar vontade política e canalizar recursos materiais e humanos para a nova instituição. O Brasil e a América Latina serão seus eternos devedores devido a essa realização.
Com o fim da ditadura pude dar conseqüência ao meu interesse pela América Latina. Minha proposta era a de usar as Ciências Sociais para o entendimento e a concórdia onde sempre dominaram a desconfiança e o desprezo. Já possuía experiência na utilização da Antropologia em estudos internacionais, pois realizei minha pesquisa de doutorado e publiquei um livro sobre uma comunidade norte-americana, o que me qualificou para a elaboração da proposta de pesquisa internacional que, mais tarde, me levaria à FLACSO.
Meu envolvimento com a América Latina iniciou-se, mesmo antes do meu nascimento, com a participação em projetos regionais de meu pai, o geógrafo Jorge Zarur, um dos fundadores da moderna geografia brasileira. Quinze dias após ver a luz desse mundo, meus pais me entregaram a uma avó e a uma tia, para viajar, por quase dois anos, por todos os países do Continente Americano, quando Jorge coordenou o “Primero Censo de Las Americas”. Ocupou a posição de diretor do Centro Panamericano de Recursos Naturais, nos anos 50 do século passado, localizado na Universidade Rural do Rio de Janeiro. O Centro integrava o Instituto Panamericano de Geografia e Historia (IPGH), órgão associado à OEA.
Meu tio, o também geógrafo Speridião Faissol, que seria presidente do IPGH, me apresentou a alguns amigos de meu pai ainda atuantes no instituto – todos de fora do Brasil – que leais à memória do companheiro precocemente falecido, indicaram o filho para coordenar o Comitê de Antropologia do Instituto.
Fiquei muito impressionado com a Conferência do IPGH de que participei no Rio, em 1984. Assisti uma bela reunião da Comissão de História, à qual o Comitê de Antropologia era subordinado. Para se ter uma idéia, em uma tarde apenas, vi apresentarem seus trabalhos, o filosofo mexicano Leopoldo Zea, além dos brasileiros Antônio Cândido e Francisco Iglesias, envolvidos no projeto “História das Idéias na América”, de responsabilidade da Comissão. Entusiasmado com o exemplo, resolvi fazer funcionar o Comitê de Antropologia do Instituto. Infelizmente, cedo percebi que a liderança desse colegiado não mais era que posição simbólica. Muitos países eram representados, não por antropólogos, mas por diplomatas. Sobre a conhecida revista “Antropologia Americana”, única manifestação concreta do comitê, seus membros não tinham qualquer controle. Era dominada por um fechadíssimo grupo de antropólogos mexicanos que impediam que os membros do comitê a quem seriam subordinados, opinassem sobre matérias editoriais ou quaisquer outras. Foi em referência a esse grupo que ouvi, pela primeira vez, a palavra castelhana “transa” (“trança”), gíria que traduz nosso termo “panelinha”.
Aos poucos, fui trabalhando a proposta política de uma Antropologia compromissada com a construção de uma identidade latino-americana, como disse Bonfil Batalla, “um programa para a Antropologia latino-americana”. A idéia era a Antropologia se investir do papel de criadora de identidades e não apenas, de neutra estudiosa das identidades. Assim, seria contribuir para a criação de uma identidade comum para a América Latina. Propus a criação de um grupo autônomo de antropólogos, o Grupo de Trabalho Sobre Identidades na América Latina, cuja primeira reunião coordenei em 1987, na Universidade de Brasília. O tema da reunião foi “A Antropologia na América Latina”, título do livro que publiquei pelo IPGH, na cidade do México, em 1990.
Consegui então reunir importantes lideranças das Antropologias da América Latina, como Carlos Herran e Isabel Hernández, da Argentina; Nina Friedman, da Colômbia; Guillermo Bonfil Batalla, do México; Juan Ossio, do Peru; e Nelly Arvelo- Jiménez e Horacio Biord Castillo da Venezuela, dentre outros. Do lado brasileiro, participaram, dentre outros, Roberto Cardoso de Oliveira, Roque Laraia, Alcida Ramos, Gilberto Velho, Marisa Correa e Rubem Olivem.
O seminário foi precedido por complicado levantamento de nomes nas diferentes Antropologias nacionais, pois não se sabia quem era quem nos outros países e como encontrá-los. Na época nem sequer se sonhava com e-mail e não me lembro se já existiam máquinas de fax, às quais, de qualquer forma, não se tinha acesso. A comunicação fazia-se pelo correio convencional lento e inseguro em quase todos os países da região ou por telefone (também lento e inseguro, além de caro). Algumas cartas foram enviadas cinco ou seis vezes para diferentes endereços para que os convidados me informassem que não poderiam comparecer. Mas funcionaram as poucas redes existentes. Guillermo Bonfil foi meu professor, em 1971, no Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional e tornou-se meu bom amigo. Alcida Ramos indicou-me antropólogos de outros países que, como ela, realizavam pesquisa entre índios e atuavam na defesa dos povos com quem tinham trabalhado. Fernando Calderon, então diretor do CLACSO, que conheci em uma reunião da ANPOCS, ajudou-me nas escolhas.
A Antropologia era a mais desarticulada das Ciências Sociais na América Latina. O único foro permanente latino-americano era o já citado Comitê de Antropologia do IPGH, de baixo vôo acadêmico, em que pesem meus ingênuos esforços. Houve reuniões esporádicas, com a participação de brasileiros, organizadas por organismos como o Instituto Indigenista Interamericano – que publicou meu primeiro artigo no Exterior, em sua revista America Indígena, mas não existia uma tradição de encontros acadêmicos regulares entre antropólogos latino-americanos. Tal situação contrastava com a da Sociologia, da História e da Ciência Política que mantinham uma rotina permanente de reuniões. A própria FLACSO havia jogado um papel importante neste sentido, mas a Antropologia não estava entre as prioridades da instituição.
Assim é que neste encontro de 1987, respirando o ar da liberdade que se espalhava pelo continente, os antropólogos reunidos em Brasília lançamos a idéia da Associação Latino-americana de Antropologia, criada mais tarde em Florianópolis.
Procurei dar continuidade às reuniões do Grupo de Trabalho Sobre Identidades na América Latina. Consegui associar o Grupo de Trabalho com o Centro Latino-Americano de Ciências Sociais – CLACSO, com a ajuda da antropóloga Ruth Cardoso, que representava o Brasil no conselho da instituição. O apoio do sociólogo argentino Alejandro Piscitelli do CLACSO foi essencial para a concretização desse movimento.
Eram ainda poucas as ações acadêmicas voltadas para América Latina, no Brasil daqueles idos de 1988. A convite de Ayrton Fausto, o Grupo de Trabalho passou a integrar a FLACSO. Já estava, então, implantado o Programa de Doutorado Conjunto com a UnB sobre a América Latina e o Caribe, no qual lecionei e no qual tive a oportunidade de trabalhar o tema das identidades latino-americanas com estudantes de diferentes países. O doutorado continuou a funcionar até 1998. Iniciamos Ayrton e eu, em 1988, uma parceria profissional que continua até o presente e lançamos as bases de uma amizade fraterna cimentada em lutas e iniciativas comuns, que só vem crescendo nesses quase vinte anos.
A segunda reunião do Grupo de Trabalho Sobre Identidades na América Latina organizei a partir de Harvard, onde permaneci como pesquisador visitante de 1991 a 1993. Aí já tínhamos acesso à maravilha tecnológica chamada “fax”, o que possibilitou a organização do encontro à distância, facilitado agora com o apoio da estrutura da FLACSO. A reunião realizada em Brasília, com recursos da OEA, foi um verdadeiro sucesso. Fui pessoalmente a Washington para expor a importância do evento e, com o apoio dos diplomatas brasileiros em Washington, consegui o dinheiro da OEA para realizá-la. Posteriormente, a OEA publicaria dois volumes reunindo os trabalhos apresentados na conferência, sob o titulo de “Etnia e Nação na América Latina”.
A terceira reunião do Grupo de Trabalho aconteceu em Brasília em 1995, com o apoio do CNPq e da CAPES. Resultou em um livro com os trabalhos então apresentados, com o título do tema da reunião, “Região e Nação na América Latina”, editado pela FLACSO em co-autoria com a Editora UnB.
A quarta e última reunião do Grupo de Trabalho, com apoio da CAPES e do CNPq aconteceu em Recife, com a coordenação conjunta do meu amigo Parry Scott, antropólogo da UFPE. Mais tarde, sairia em Recife, pela editora da Universidade, o livro “Identidade e Fragmentação na América Latina” compreendendo os estudos expostos no encontro.
Serei sempre muito grato a todos os participantes do Grupo de Trabalho que me honraram ouvindo o meu chamado e apresentando nas reuniões, trabalhos que sempre primaram por sua excelente qualidade. Confesso, porém, que, em Recife, senti absoluto cansaço. Decidi não mais organizar os encontros e lutar pelas minguadas verbas para passagens e diárias dos participantes, tendo, por vezes, que adiantar dinheiro das minhas economias pessoais e até, em uma ocasião, que complementar os insuficientes recursos alocados. De qualquer forma, o Grupo de Trabalho Sobre Identidades na América Latina ficará para sempre. Seus quatro livros são referência fundamental na abertura de uma frente importantíssima para a Antropologia de nossos países.
Mas não deixei de dar continuidade a meus estudos sobre América Latina como pesquisador/professor internacional da FLACSO. Um bom momento foi o meu trabalho de campo em Cuba, em 2005, a partir do qual publiquei dois artigos, um sobre Etnicidade e outro sobre a Economia política. Estou planejando continuar minha pesquisa sobre pensamento social em outros países, pois o conhecimento da América Latina, objetivo do programa institucional da FLACSO, torna-se projeto pessoal para seus colaboradores.
Consegui, ainda, estabelecer proveitosa cooperação entre a FLACSO-Brasil e a Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados. A Consultoria conta com um dos mais respeitados e competentes dos corpos técnicos do governo brasileiro. A FLACSO abriu um programa de treinamento avançado em pesquisa que tem sido intensivamente utilizado pela Consultoria Legislativa que, até o presente já envolveu nove de seus membros. Os resultados desse trabalho deverão ser publicados brevemente.
Nesses 19 anos que tenho colaborado com a FLACSO-Brasil assisto Ayrton Fausto recriá-la todos os anos, apresentado projetos e idéias e lutando pelas indispensáveis verbas para sua continuidade. É luta desigual, uma vez que toda a verba fixa da FLACSO resume-se a U$ 100.000,00 anualmente repassados pelo governo brasileiro. A FLACSO é um organismo internacional mantido com as contribuições dos estados participantes. É sabido que o governo brasileiro tem por hábito atrasar ou não pagar suas contas a entidades internacionais. Por isto, mesmo a liberação de quantia pequena como esta para a escala governamental, só acontece após verdadeira prova anual de paciência nas ante-salas ministeriais. Outros recursos são provenientes de contratos e convênios, também, de difícil negociação.
A atitude do governo brasileiro frente à FLACSO reflete a baixa prioridade concedida à América Latina na cultura política brasileira. Em que pese a centralidade do discurso latino-americano desde a volta da democracia ao Brasil, nossa cultura política continua autocentrada. A situação da FLACSO-Brasil contrasta com a de vários outros países, como o México, que, também, possui uma estrutura universitária consolidada. Isto não impede que, mesmo sob a atual orientação política de inclusão mexicana na esfera norte-americana, considere a FLACSO patrimônio político a ser preservado.
Restaria a opção, seguida pela FLACSO de alguns países, de captar recursos de origem norte-americana para pesquisas com temas e metodologias definidas externamente. A ênfase em “metodologias quantitativas” (lembrando as disputas sociológicas dos tempos da guerra fria), por exemplo, é ainda tão presente em certas unidades nacionais da FLACSO que, em alguns casos, até a antropologia, a disciplina como um todo, é vista com desconfiança por enfatizar metodologias qualitativas de pesquisa. Entretanto, as unidades da FLACSO do Brasil, da Argentina e outras têm mantido sua autonomia na priorização de temas e metodologias de pesquisa.
A FLACSO conquistou merecida reputação, por sua contribuição histórica às Ciências Sociais latino-americanas. É uma conhecida “grife” acadêmica. Além do renome internacional é uma rede latino-americana que desempenha função única, que nenhuma universidade ou centro de pesquisas tem condições de exercer.
Para que atinja plenamente os objetivos para os quais foi criada é indispensável a institucionalização da FLACSO-Brasil no âmbito do governo brasileiro, que lhe garanta quadros estáveis administrativos e de pesquisa.