O ENCANTADOR DE GENTE
George de Cerqueira Leite Zarur
Orlando a todos encantava. Vi Orlando “brabo”, mas nunca o flagrei triste por mais de uns poucos instantes. O afeto que espontaneamente espalhava, explica sua capacidade de acalmar guerreiros pintados para a morte e de conquistar o apoio de políticos para causas humanitárias. Fascinava e o fazia para o bem.
Os índios do Xingu consideram Orlando um herói, com correto senso de justiça. Os Yawalapiti não se esquecem que Orlando convenceu os sobreviventes de sua tribo a reconstruir sua aldeia. Ainda guardo a imagem de uma única casinha habitada por uns poucos remanescentes Yawalapiti, que se transformou, hoje, em belíssima aldeia com mais ou menos 200 habitantes. Ameaçadas de desaparecimento, e revividas no Alto Xingu, foram também as etnias Maitipu, Nahukwa, Trumai e Txicão. No Médio Xingu, os Suiá, Juruna e Kayabi passaram por processo semelhante. Não tivessem sido os Panará, emergencialmente, levados para dentro do Parque do Xingu teriam desaparecido por completo, dada a decisão do governo militar de tomar sua terra.
Em 1961, primeira vez que estive no Xingu, a região era habitada por poucas centenas de índios, que ainda se recuperavam da devastadora epidemia de sarampo de 1954. Em 1971, quando retornei à área, para viver entre os índios Aweti – convencido que fui pelos Villas Bôas a estudar antropologia – encontrei alguns adultos e multidões de crianças correndo pelos ensolarados pátios das aldeias. Já se prenunciava a recuperação de um padrão demográfico que asseguraria a continuidade da vida social. Graças à proteção física, cultural e política oferecida pelo Parque do Xingu, hoje, sua população é de mais de quatro mil índios.
Os índios do Xingu estão plenamente conscientes do papel dos Villas Boas, mas muitos caraíbas (“brancos”) não sabem que a política indigenista brasileira do século XX foi marcada por Rondon e pelos Villas Bôas. Rondon, no começo do século XX, revolucionou o que era, mas ainda não se chamava, “política de direitos humanos”. Convenceu o País, definitivamente, de que os índios tinham o direito à vida. Rondon enfrentou e derrotou, ideológica e politicamente, o evolucionismo dominante no seu tempo, que pregava a sobrevivência dos mais aptos e o extermínio dos mais fracos, como um imperativo biológico.
Os Villas Bôas, em íntimo contato com a melhor antropologia dos meados do século XX, pertenciam a um grupo intelectual e afetivo que reunia os antropólogos Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro e o médico Noel Nutels. Esse grupo foi responsável pela idéia de que a terra deveria ser preservada, como condição para garantia da vida dos índios. Mas não só: afirmou-se pela primeira vez, que a cultura indígena representava um valor humano essencial que, também, deveria ser protegido. Coube aos Villas Bôas participar da elaboração desses princípios e, ainda, de sua aplicação eficaz. Esta foi outra revolução na política de direitos humanos, no Brasil e no mundo, pois era reconhecido o valor da diversidade cultural. Esta era época em que os estados nacionais – dando seqüência a uma política iniciada com a revolução francesa – atuavam no sentido inverso, o da universalização de uma cultura hegemônica em seu território, que se confundiria com a “cultura nacional”. A luta pelos direitos dos índios a uma cultura própria representou uma verdadeira ruptura intelectual e política, na qual os Villas Bôas tiveram um papel decisivo.
Orlando nos conta de um outro Brasil, com o qual ele mesmo, Cláudio, Leonardo, Álvaro, Noel, e tantos outros viviam em comunhão e ao qual dedicavam infindável lealdade. Suas memórias, seus “causos” e sua luta pelos índios são narrados com a elegante simplicidade com que falava e encantava os que tiveram suas vidas enriquecidas por sua amizade.
Que bom, Orlando, ouvi-lo de novo!