PUBLICADO EM “O GLOBO” DE 30/04/2004
Por que mais esta decepção com os rumos do Brasil, agora com o governo Lula? As explicações puramente econômicas ou políticas muito pouco dizem da crise que vem assolando nosso país. Outras razões, de ordem cultural, são fundamentais para compreendermos o desengano em que o povo brasileiro vive, há pelo menos 20 anos.
O Brasil é (ou era) imaginado como a nação do futuro. A idéia de um futuro nacional maravilhoso é, do lado popular, apoiada em fortes razões religiosas. Brasília está cercada de seitas místicas, que a predizem a “Capital do Terceiro Milênio”, ou que lembram a profecia de Dom Bosco de uma nova civilização por estas paragens, onde não haveria fronteiras de “raça, classe ou credo”. Do lado dos intelectuais, isto é, da elite, o mesmo nacionalismo projetado na esperança de um futuro brilhante se estende de Euclides da Cunha a Gilberto Freyre e Manuel Bomfim. Segue-se a iminente chegada do milênio, com o desenvolvimento econômico de Juscelino a Geisel e a interrupção da promessa socialista.
Daí que a atual crise seja muito mais grave do que uma crise econômica. O freio na economia dos últimos vinte anos ameaça a própria identidade nacional brasileira, pois, pela primeira vez, o progresso deixa de ser contínuo e a desordem se instala nos valores sociais e comunitários. Teorias abandonam os conceitos de nação, povo e história, e substituem-nos por “mercado” ou “sociedade”, o que contribui para a situação atual, pois “mercado” e “sociedade” fazem sentido, somente, quando a serviço do povo e da nação.
A crise na identidade brasileira se exprime na mudança da visão da etnicidade. A importação simplista do brutal racismo biológico americano pode levar a um enorme desastre. Este modelo, que assimila o mestiço (“pardo”, “moreno”, “mulato” etc.) à “raça negra”, diminui os próprios negros, que “contagiariam” a pureza branca. Anula, também, nossa herança cultural indígena, na verdade, tão importante quanto a negra. É enorme o potencial de violência dessas simplistas teorias, a rigor, de extrema direita, por gerarem políticas racistas socialmente “focadas” que, ao longo das décadas, um dia podem agir a favor e, outro dia, contra os grupos estigmatizados. Geram políticas oportunistas que apresentam as vantagens de não aumentarem o déficit público e serem vendidas como “politicamente corretas”.
Da mesma maneira como se destrói a simbologia da mestiçagem, central à identidade brasileira, toda a visão de um brilhante futuro se esvai na cabeça de economistas e sociólogos, convencidos da nossa “natural” inferioridade sob o manto das teorias da globalização. O discurso do fim do Estado nacional, do mundo unipolar e da dependência inexorável, nos faz, de fato, inexoravelmente dependentes, leva ao mundo unipolar e contribui para o fim do Estado nacional.
A coesão da elite, no Brasil tradicional, fundamentava-se no sistema de parentesco, que estruturava as oligarquias regionais e, até hoje, influencia o sistema de empresas familiares e carreiras dentro ou fora do Estado. Os pobres se relacionavam com o sistema, por intermédio de laços com os membros da elite, que tomava conta do país, com a mesma atitude dos fazendeiros com o seu patrimônio.
É de se perguntar o que acontecerá, no momento em que a velha elite é substituída por outra sem qualquer compromisso com o todo, como chefes sindicais, pastores evangélicos e radialistas, ou ainda, quando o que resta da elite tradicional aliena a nação e o povo, em troca de uma passagem de segunda classe para uma imaginária elite mundial em formação.
A crise de valores metodológicos e, a partir daí, de valores ideológicos, deságua na qualidade das lideranças políticas. Pessoas estrategicamente situadas podem fazer a diferença. Um caso paradigmático é o de Rondon que “virou o jogo” na situação dos direitos humanos no Brasil. Presidentes como Getúlio e Juscelino mudaram o rumo da História, mesmo pagando um preço notavelmente trágico. Falta hoje a generosa coragem desses heróis da nacionalidade.
GEORGE DE CERQUEIRA L. ZARUR é economista e antropólogo.