Confissões Perplexas de um Neo-Idoso

Como isto pode acontecer!

A cabeça ficou branca, sem esquecer os bigodes da mesma cor cultivados para os netos puxarem. Passado o tempo da aposentadoria, continuo trabalhando, na espera que a vovó – linda como quando a conheci – complete seu tempo de serviço e possamos nos divertir juntos.

Com sessenta anos tornei-me legalmente idoso e passei a usufruir de direitos compensatórios à idade. Por ter atingido recentemente esta marca sou, ainda por algum tempo, um neo-idoso. Com mais alguns anos serei um idoso pleno – faço sinceros votos, mais no sentido cronológico do que no físico!

Ninguém completa 60 anos impunemente. O consolo é a alternativa, muito pior! Mas é fisioterapia e de manhã, remédio para isso e aquilo; de noite, poções e comprimidos para aquilo e para isso. Para que nós, oficialmente velhinhos, possamos nos sentir bem, por um tempo, espero alongado. As pílulas valem a pena, pois é a melhor fase da vida. Vem a certeza tranqüila de que fizemos a nossa parte e lutamos “o bom combate”. É muito bom ver as filhas e genros vivendo com dignidade e os netos crescendo saudáveis e bonitos. É maravilhoso viver mais do que nossos pais e avós, pois, com o tempo, aprendemos a melhor degustar os prazeres humanos.

Atingida a marca dos sessenta resolvi de imediato, exercer meus novos direitos. No primeiro dia útil após data do aniversário, fiz valer a precedência legal dos mais velhos: furei a fila do DETRAN, deixando para traz um grande número de taxistas e motoboys. Determinado, comprovei minha condição de idoso e me registrei.

Os velhinhos motorizados de Brasília somos registrados no DETRAN. Sou o velhinho nº 24.951. O número alto confirma o explosivo aumento da população de minha classe etária. Seria muito maior se as mulheres aceitassem o destino e se registrassem como velhinhas, o que não fazem para esconder a idade

Passar na frente dos outros é complicado. Sou de um tempo em que se oferecia o lugar para as mulheres e ficava-se de pé. O arcaico hábito de abrir-lhes as portas e deixá-las entrar é tão arraigado que não consigo deixá-lo de lado. Por vezes, noto um meio sorriso divertido nos lábios daquelas que procuro homenagear com esses gestos fora de moda.

Não raro, a reação feminina pode ser quase violenta, e mais ainda, nos Estados Unidos.

O motorista de um ônibus das imediações de Boston dava freadas bruscas. Por duas ou três vezes jogou no chão a pobre anciã. Impassíveis os passageiros sentados assistiam a cena. Não agüentei, levantei-me e ofereci meu lugar. Em troca recebi a inesperada resposta que traduzo do inglês:

_ “Fique sabendo, que sou muito capaz de cuidar de minha vida e não preciso de ninguém para me ajudar“.

Caiu mais duas vezes, antes que, lançando-me olhares de fúria, resolvesse sentar.

A gentileza pode ter resultados imprevistos. Antes das leis de proteção dos deficientes, grávidas e idosos, meu único irmão, carne da minha carne e sangue do meu sangue, resolveu colocar em brios todos os marmanjos da fila do banco para que dessem precedência a uma senhora grávida. Com espontaneidade, iniciou um pequeno comício em voz alta:

“_ Deixem-na passar na frente! Vocês não percebem que esta senhora está grávida?”

Após silêncio, a dama alvo da gentileza, em voz desconsolada, afirmou com o sofrimento esculpido no rosto martirizado:

“_ Meu senhor, muito obrigada, mas eu não estou grávida”.

Por essas e outras razões não vale aquele ditado popular “faça o bem, não olhe a quem!”

Certo é o “olhe sempre muito bem a quem você está fazendo o bem!”.

Por ser classificado como velhinho, não vou passar à frente de mulheres ou de famílias, de pais com crianças e de outros sofredores, que possuem direitos (alguns de ordem moral) maiores do que os meus. Em alguns casos, a ultrapassada e entranhada noção de cavalheirismo me impede. Mas, em bancos, supermercados ou aeroportos entro na fila separada, o que pode ser constrangedor, embora confortável.

Onde a coisa pega mesmo é nos estacionamentos, palcos de verdadeira luta de classes (etárias). Como a esperança de vida da população cresce ano a ano, a competição intraclasse também é feroz. Não é raro ver um velhinho bravo olhando para outro que acabou de pegar a sua vaga

Assim que fiz sessenta anos fui presenteado com um pacote embrulhado em fitas por uma amiga advogada. Era o “Estatuto do Idoso”, que li com redobrada atenção.

“Reza” o art. 41 da norma jurídica doada pela gentil causídica:

“Art. 41. É assegurada a reserva, para os idosos, nos termos da lei local, de 5% (cinco por cento) das vagas nos estacionamentos públicos e privados, as quais deverão ser posicionadas de forma a garantir a melhor comodidade ao idoso.”

O direito não poderia ser mais claro! É, no entanto, como vim a aprender a duras penas, fonte permanente de chateação e desrespeito para velhinhos motorizados.

O estacionamento mais próximo ao meu local de trabalho na Câmara dos Deputados possui mais de 300 vagas. Deveria reservar para idosos, segundo a proporção prevista na lei, no mínimo, quinze. Tem duas. E assim acontece nos demais estacionamentos dessa Casa de Leis. Para piorar, as poucas vagas para idosos viram “vagas coringa” usadas por pacientes do serviço médico ou por terceiros selecionados por critérios desconhecidos. As demais têm dono, com nome e cargo. Por isto não podem ser cedidas temporariamente, uma vez que é mais fácil ferir um direito difuso do que o de indivíduos identificados.

Reclamações esbarram em considerações didáticas relativas à assimetria de poder entre velhinhos e os diversos escalões da Administração Pública. Além disso, o governo tem que funcionar e a distribuição de vagas consiste em importante mecanismo gerencial. Insurgir-se é quase antinacional. Também, há reações nervosas dos que se sentem ameaçados em sua prerrogativa de parar o carro junto ao local de trabalho e assim poder dar o melhor de si para o bem da Pátria.

Certo velhinho, que ao fazer a barba matinal encontro todos os dias refletido no espelho, não pode estacionar devido ao garotão que jogou o carro na sua frente e ocupou a vaga reservada. Após o xingamento convencional, retirou-se o jovem e foi cuidar da vida. Apresentada a queixa, respondeu o PM com cara de raposa de desenho animado e voz grave de autoridade: “voooouuuuu lááááá daaaaquiiiiii aaaaaa pooooooucooooooo!”

Não houve multa e compreendo a atitude. O sol de Brasília é de rachar, a seca exaure as pessoas e grande é o desgaste com o deslocamento até o local da infração. Afinal, a impunidade está do outro lado da rua, pois falo de espaço contíguo à Praça dos Três Poderes. Não será um soldado de polícia que, armado do seu talonário, vai mudar o ritmo compassivo do coração da República.

O que fazer?

Ao valor da cidadania, pelo qual tanto se sacrificou minha geração, contrapõe-se o “eles venceram“, da bela canção de Merquior “Como os Nossos Pais“, interpretada por Elis Regina. A sobrevivência recomenda não ficar com raiva devido a efeitos na pressão sangüínea e outros danosos à saúde do corpo e à paz do espírito.

É melhor deixar para lá… Já fiz a minha parte.

Mas, por sestro, vício, ou má catadura, não resisti, e redigi esse artiguinho

2017-11-02T19:38:01-02:00By |Opinião|