Charles Wagley e a Famíia de Cecíliia: as parentelas da elite brasileira
George de Cerqueira Letie Zarur
Soube de Charles Wagley e de Cecíia Roxo através dos amigos de meu pai, o geografo Jorge Zarur. Wagley veio para o Brasill durante a guerra como estudante pós-graduado e estabeleceu uma ampla rede de relações. Casou-se com Cecília Roxo, que como membro da elite brasileira de então relacionava-se à nobreza do império. Wagley tornou-se até mesmo personagem de Jorge Amado em seu livro Tenda dos Milagres.
Fez amizades e tornou-se conhecido. O casamento com Cecília e os laços fraternos que estabeleceu com membros da pequena, mas criativa elite intelectual brasileira dos anos 40 aos 60, o fez integrante do que chamou de uma “parentela”, rede de parentesco extensa estruturada de forma ambígua, que permitia aos seus membros a escolha de pertencimento em linhagens concretas, em resposta a vantagens na vida econômica e na distribuição do que Max Weber chamou de “honra social”. A escolha de sobrenomes ilustres e o esquecimento dos mais comuns, quando possível, manifestava a opção de pertencer àquelas linhagens integrantes da parentela que ofereciam maiores vantagens comparativas. A possibilidade de escolha da linha materna, paterna ou ate de algum ramo genealógico colateral fazia, a nosso ver, a parentela em amplitude e ambiguidade, algo bem diferente da caracterização clássica do kindreds em antropologia.
A descoberta da parentela, uma categoria social de difícil descrição, representou uma importante contribuição de Wagley aos estudos sobre Brasil e para a antropologia como campo do conhecimento. E o fez a partir da experiência vivida, de uma forma muito particular de “observação participante”.
No esforço de guerra, Wagley tornou-se amigo de intelectuais de esquerda, que, assim como o “liberal” americano, lutavam contra o nazi-facismo. Foi próximo de Florestan Fernandes e de Darcy Ribeiro, além de outros como Thales de Azevedo, que ficava mais ao centro do espectro político. Foi professor de Eduardo Galvão, o primeiro Ph. D brasileiro em antropologia, conhecido como homem de esquerda. Galvão treinado por Wagley em Columbia contou-me que havia informantes nas salas de aula e que professores e alunos referiam-se a Karl Marx, popular na academia americana daquela época. pelo cognome do “o velho”, para que os policiais não entendessem de quem falavam.
Wagley passou a pertencer à elite intelectual brasileira. Entrou para a história política brasileira ao participar da criação do Serviço Especial de Saúde Pública e para a história intelectual do País por sua contribuição à pesquisa, especialmente no estudo da UNESCO sobre relações raciais. Darcy Ribeiro, em um dos seus escritos, o considera um dos fundadores da moderna antropologia brasileira.
Em 1972 conclui meu mestrado no Museu Nacional, no Rio de Janeiro e recebi uma bolsa da Fundação Ford para prosseguir para o Ph D nos Estados Unidos. O programa de pós-graduação do Museu Nacional foi criado sob a liderança de Roberto Cardoso de Oliveira com o decisivo apoio de David Maybury-Lewis. Wagley enfrentava tempos difíceis e se transferiu para a Florida. Muitos de seus amigos no Brasil foram perseguidos durante o regime militar.
Para surpresa geral dos meus amigos norte-americanos que me julgaram fora de juizo, mas com a aprovação de meus amigos brasileiros que entenderam bem a minha “lógica cultural”, resolvi não ir para Harvard, mas seguir para Gainesville para realizar meu doutorado sob a orientação de Wagley. Gaionesville tinha, também, um excelente departamento de antropologia e Wagley era membro da minha parentela, à qual eu ele devíamos lealdade. Mais tarde, David Maybury-Lewis, generosamente, me perdoou e me recebeu como visitante em Harvard
Wagley se relacionava comigo por meio, principalmente, de três pessoas. A primeira era Yeda Linhares, grande amiga de meus pais, que frequentava nossa casa. Foi obrigada a se afastar do Brasil durante o regime militar e era boa amiga de Wagley. Mas eu tinha um laço ainda mais forte, um vínculo de parentesco dito “fictício”, mas notavelmente intenso com o geógrafo Carlos Delgado de Carvalho professor e protetor de meu pai nascido de uma humilde família de imigrantes. A famíia de Delgado de Carvalho se exilara na França acompanhando a família real brasileira. Delgado lembrava-se de, na infância, ter convivido com o imperador Pedro II. Afastando-se dos perigos da Primeira Guerra Mundial, retornou ao Brasil para casar-se com sua prima, Vera Roxo, que lhe trouxe um considerável dote, como era de costume naquele tempo. Vera era tia de Cecilia Wagley.
Em 1965, no meu primeiro ano de universidade fui ao Parque Indígena do Xingu, como aluno do Eduardo Galvão, estudante de Wagley e meu querido professor e amigo na Universidade de Brasília,. Ao tempo em que o Estruturalismo se ampliava como a linguagem da Antropologia Brasileira, Galvão continuava fiel à Ecologia Cultural na versão formulada por seu colega e amigo, o aluno de Wagley, Marvin Harris. Galvão foi demitido da Universidade de Brasília por ser de esquerda e eu com 19 anos de idade me transferi para São Paulo; para me afastar da repressão que se instalara na Universidade de Brasília.
Em minha decisão em ir para Gainesville pesou o fato de ser Wagley membro destacado de nossa comunidade intelectual brasileira e contar com a confiança pessoal da maior parte de seus integrantes. Era um dos nossos!
Tenho, ultimamente, estudado as identidades nacionais tradicionais brasileira e de outros países da América Latina, a partir de um modelo “Wagley”, de comunidades de elite estruturadas frente a pobres assimilados à ordem social apenas por sua participação como agregados às comunidades oligárquicas, organizadas no caso brasileiro, a partir do conceito de “parentela”.
Busco dar continuidade a conceitos e formulações originais de Wagley, sem nunca perder de vista que meu querido professor pertenceu a uma parentela brasileira, compreendeu-a e a trouxe para a Antropologia.