(escrito quando da escolha de Obama como candidato democrata)
“Não sai candidato; se sair perde; se ganhar, morre assassinado.”
A previsão já está em parte errada: Barak Obama já saiu candidato. Tomara que vença a eleição, que viva por muitos anos e morra de velhice, desmoralizando essa aposta que está na cabeça de muito americano. Daquele engordurado por fast food, que, infantilizado, bate palminha em processos descritos como “dinâmica de grupo”. Que, entre uma lata e outra da aguada cerveja Old Milwaulkee, assiste à Fox TV; daquele para quem um filme não tem graça se não incluir cenas cruéis de violência, em que a morte é o destino natural dos outros e uma impossibilidade para o herói (americano e branco, em geral). O enredo que o faz dormir feliz inclui passagens de estupro dosadas com muito sofrimento.
Por isto, a simples indicação de Obama como candidato é um sintoma da capacidade de renovação e de sobrevivência da democracia norte-americana. De que há uma expressiva e educada parcela da população do País que rejeita a mentalidade grosseira que inventou Bush.
Após estudar e viver nos Estados Unidos, nunca poderia imaginar que veria um negro candidato por um dos dois grandes partidos à Presidência dos Estados Unidos. Ainda melhor: um negro com nome mulçumano e filho de mulçumano africano.
Mesmo no Partido Democrata seria, há não muito tempo, inimaginável a cena que estamos assistindo. Estupefato, boquiaberto, assombrado, embasbacado, e todos os demais adjetivos similares disponíveis na língua portuguesa não são suficientes para descrever meu espanto. Nem para contar da minha renascida esperança na democracia americana. A escolha de Obama como candidato representa uma revolução simbólica muito maior do que a da eleição de um operário para a Presidência da República do Brasil. É comparável à escolha de um Evo Morales para a Presidência da Bolívia: Evo e Obama expressam situações limite em um quadro de radicalismo e de crise social e política.
A situação de Evo e Obama é análoga, pois não estão quebrando fronteiras de classe, como na eleição de Lula, mas, anulando barreiras étnicas em sociedades em que tal corte é muito rígido. Diferença importantíssima, das incontáveis existentes entre os dois, é o seu posicionamento no discurso étnico: Evo se posiciona como indígena em confronto com elites brancas, enquanto Obama se identifica como mestiço, enfatizando a unidade de seu País. Enquanto os índios são maioria na Bolívia etnicamente bipolarisada, os negros são apenas um, dentre os múltiplos segmentos étnicos norte-americanos
Lembrando os conceitos weberianos convencionais de classe e casta, o racismo norte-americano tem sido descrito, desde os anos 30, como organizando um sistema de castas. Castas e classes fazem a divisão social do trabalho. Castas, endogâmicas por definição, são, por isto, impenetráveis. Já classes são caracterizadas pela mobilidade individual e pela interpenetração. É normal, em um sistema de classes que as pessoas deixem de ser empresárias ou trabalhadores braçais, que fiquem ricas ou pobres. Por isto é inerente ao conceito de classe, a possibilidade de um operário trocar o torno mecânico pela Presidência da República.
A quebra do paradigma político racial representa radical transformação na maneira das pessoas verem o mundo. Essa mudança passou nos Estados Unidos, inicialmente, pela divisão do trabalho: os negros já não colhem muito algodão em Dixie, mas são considerados especialistas em certos tipos de crimes, como o tráfico de drogas. Nos guetos negros concentram-se as grandes estatísticas criminais e nas prisões e nos corredores da morte, o número de negros e muitas vezes maior do que o de brancos. Entretanto, o próprio racismo ao procurar se justificar com a fórmula do “separated but equal” criou as condições para o surgimento de uma classe média negra. Neste setor, negros e brancos convivem, com relativa cordialidade, no mercado de trabalho. Muito diferente das comunidades residenciais brancas e negras, extremamente segregadas.
O que está havendo com o fenômeno Obama é, portanto, a prevalência dos valores impessoais de mercado, caracterizados pelo mérito, sobre os valores comunitários tradicionais norte-americanos construídos sobre o conceito de raça. O escritório se sobrepondo à vizinhança, a competência se impondo sobre a suposta inaptidão racial. Seu apelo de campanha foi construído pela rejeição da idéia de raça e sua substituição pela idéia de classe.
Entretanto, a questão racial acompanha, como uma sombra, a candidatura democrata. Há notícias de que Obama estaria perdendo terreno, pois seu opositor, típico político republicano branco veterano de guerra, teria melhores condições de enfrentar a “ameaça do terrorismo” e de “comandar” o País. Fica a pergunta: porque seu adversário seria mais bem equipado nesta área? Uma hipótese é a de que, por ser mais velho e veterano teria mais experiência para tanto. Outra é a de que os brancos, na visão racista tradicional da cultura norte-americana, é que teriam condições de assumir o comando de atividades militares. A influência eleitoral desse fator militar demonstra que parcela importante do eleitorado norte-americano continua apostando no machismo branco bélico. Na guerra como um espetáculo emocionante. Mesmo porque, após o fim do exército voluntário nos Estados Unidos, quem morre do lado americano são mercenários de origem humilde, negros, latinos e brancos pobres.
O machismo bélico é algo muito entranhado nos Estados Unidos. Até como turista já recebi ameaças. No final do século passado, em viagem de trem na Bélgica, fiquei em uma cabine com dois norte-americanos professores de “High School“. Ao saberem de minha nacionalidade, um dos meus interlocutores, investidor em títulos públicos brasileiros, informou-me que dada a possível inadimplência do Brasil – tratava-se do momento da grande crise de desvalorização do Real após a reeleição de FHC – poderia ser necessária a tomada pela força de bens e, eventualmente, de territórios, para compensar perdas de cidadãos norte-americanos. Supunha que o Brasil, ainda tinha sua principal riqueza no café e pensava em tomar alguns milhões de sacas para ressarcir os prejuízos. Após o fim da União Soviética, muito americano médio tentou transferir para sua vida pessoal o gigantesco poder de seu País. Minha mulher e eu mudamos de cabine.
Na presente eleição, o corte político expressa uma sociedade culturalmente dividida, como há muito não se via. De um lado, o voto étnico de negros e outros “não brancos”, como os latinos que estão se inclinando crescentemente para o lado democrata, além de jovens brancos e de setores brancos que privilegiam a competência, valor de mercado. São pessoas que desejam a diplomacia antes da guerra e privilegiam políticas sociais voltadas para o bem estar da maior parte da população.
Do outro lado está a continuidade do modelo belicoso atual, com um novo Presidente. Seu projeto é apoiado pela classe média que aposta em valores tradicionais e religiosos. Resta saber quantas pessoas nesta categoria irão votar em Obama, insatisfeitas com a crise econômica que levou muita gente a perder suas casas e anos de dinheiro guardado. Ou quantos, ao contrário, culpam os negros e os imigrantes (latinos em sua maior parte), pelo desemprego e pelo aumento das dificuldades econômicas e que, por isto, votarão nos republicanos.
Grave é a questão moral. Houve momentos que os Estados Unidos representaram um paradigma moral para o mundo. Assim foi no tempo de Roosevelt, com as pessoas do Presidente e da admirável Eleanor; assim foi com a figura notável de John Kennedy e, embora ineficiente em geopolítica, havia um forte apelo moral em Jimmy Carter. Em seu discurso após a escolha, Obama enfatizou a herança de Roosevelt e Kennedy.
A vitória de Obama representará uma encruzilhada histórica nos Estados Unidos, crucial para a história do mundo. Vencendo, poderá resgatar o patrimônio moral norte-americano jogado no lixo, devido ao apoio a sanguinárias ditaduras, torturas e brutais agressões aos direitos humanos. Agressões aliadas ao “duplipensar” de George Orwell, com o uso, por pura propaganda, do mais hipócrita dos discursos favorável a esses mesmos direitos humanos. Além de uma guerra que custou muitas centenas de milhões de vidas inocentes, iniciada a partir da mentira de que Sadam Hussein possuia armas de destruição em massa.
Obama não será nenhuma resposta mágica para o atoleiro em que se encontram os Estados Unidos e o mundo. Seu governo estará imerso no cipoal de interesses econômicos e políticos que dominam a política americana, além da terrível resistência de uma matriz conservadora apoiada por parcelas hegemônicas da imprensa e da opinião pública. Mas sua simples vitória representará um passo sem precedentes no rumo da decência.
Salve Obama!