Avaliação da Educação Indígena no Plano Nacional de Educação – 2006

A educação indígena foi objeto de dois documentos, um de autoria do INEP e outro de autoria da Secretaria de Alfabetização e Diversidade do Mec. A análise meta a meta foi exaustiva e competentemente desenvolvida nesses documentos, razão pela qual vamos nos limitar a abordar as grandes questões da Educação Indígena frente ao Plano Nacional de Educação explorar suas repercussões na esfera legislativa. Essas questões repetem-se em diferentes metas.

1- A Transferência da Educação Indígena para os Estados e Municípios.

O governo federal, através do decreto nº 26, de 4 de Fevereiro de 1991 retirou da responsabilidade da FUNAI, a educação nas comunidades indígenas. O decreto é ilegal pois contraria frontalmente o inciso V do art. 1º da lei nº 5.371, de 1967 que cria a FUNAI. Esse último dispositivo inclui dentre as atribuições da FUNAI:

V – promover a educação de base apropriada do índio visando à sua progressiva integração na sociedade nacional;

Em que pese a ilegalidade do decreto, a educação passou a ser, de fato,papel dos estados e dos municípios.

A LDB, em seu art. 79 faz referência ao apoio financeiro e técnico da União aos “sistemas de ensino”, o que não configura a transferência das atribuições para os estados e municípios, pois dentre os sistemas de ensino está o próprio sistema federal.

O Plano Nacional de Educação, foi promulgado quase dez anos após o referido decreto e determina a legalização da transferência da educação indígena para os estados e municípios. Ao fazê-lo reconhece que essa transferência já efetivada não tem base jurídica.

A transferência da educação indígena para os estados e municípios representou um pesado golpe no bem estar e na proteção política das populações indígenas. Embora, a FUNAI sempre tivesse enfrentado todo tipo de problemas, a preservação da saúde e da educação indígena no âmbito do governo federal, representava uma garantia maior de sua continuidade.

A saúde e a educação das populações indígenas, desde a criação do SPI, em 1916, era responsabilidade da União. Existem relevantes razões para tanto. Os governos estaduais e municipais sempre consistiram em agentes políticos dos interesses regionais, de fazendeiros e madeireiras, mineradoras e garimpeiros, interessados nas terras e na exploração do trabalho dos índios. Esses interesses são legitimados, no meio regional, pela construção do preconceito contra o índio visto como inferior e preguiçoso. Essa visão sobre o índio é assumida pelos próprios índios, que passam a se ver pelos olhos dos brancos. A escola é o grande instrumento de luta contra o preconceito, veículo de formação de uma consciência indígena e de valorização de sua cultura. Portanto, entregá-la aos governos estaduais e municipais significa, freqüentemente, entregá-la aos algozes dos índios. Alguns preferem o índio sem escola e isto pode explicar porque apenas dez estados tenham, efetivamente, até o momento presente, assumido a responsabilidade legal por suas populações indígenas.

Para o governo federal, a dúbia vantagem conquistada foi a de transferir para terceiros problemas de dificílima solução, diluindo sua responsabilidade política e atenuando a situação de desgaste que a política indigenista, historicamente, sempre acarretou. Além do mais, representou uma forma de “enxugar” o governo federal, transferindo a terceiros, sem consulta previa, os ônus políticos e financeiros da educação indígena. Tal transferência, na realidade, não chegou de fato, a ocorrer, em muitos estados da federação. Houve, tão somente, o abandono de fato da educação indígena.

Em vista da ausência da União, passou-se a aplicar, em alguns casos, o § 2º do art. 211 da Carta Constitucional que atribui prioritariamente aos municípios o ensino fundamental e a educação infantil. Os municípios que obedeceram o conceito constitucional passaram, em geral, a manter, de acordo com suas conveniências, escolas em aldeias indígenas, sem qualquer especificidade didática ou adequação metodológica à cultura indígena. Não tinham qualquer obrigação de implementá-las, pois prevalecia (e ainda prevalece) lei nº 5.371, de 1967 que cria a FUNAI e chama à União, a responsabilidade pela educação indígena.

Uma tentativa de se conferir alguma ordem à educação indígena decorre da ação do Conselho Nacional de Educação, consubstanciada nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Indígena, no sentido de atribuir aos sistemas estaduais (não aos municipais), a responsabilidade pela educação indígena. Entretanto, vários estados permanecem, como foi visto, sem assumir suas responsabilidades quanto à educação indígena. A responsabilização dos estados pela educação indígena configura-se como uma forma de atenuar a desorganização e o compromisso mais direto do município com os interesses anti-indígenas. Entretanto, não só os municípios, mas os próprios estados federados também estão, via de regra, diretamente envolvido com tais interesses.

Criou-se para a educação indígena uma complicada rede com a participação de um grande número de interlocutores, envolvendo o CNE, diferentes instâncias do MEC, estados, municípios, ONGs, igrejas, o ministério público e, eventualmente, a própria FUNAI, sem que exista um órgão central ao sistema. Tal aparato, tende a diminuir retornos, aumentar o peso da burocracia e contribuir para a acefalia e para a confusão que caracteriza a educação indígena.

Por isto, seria de todo relevante que a FUNAI resgatasse suas funções anteriores, pois educação, saúde, defesa das terras e projetos sociais são diferentes aspectos da mesma questão política. Os demais órgãos públicos e instituições teriam uma importantíssima função colaborando com a FUNAI neste particular Para tanto, esta meta nº 1, deveria ser abandonada, o que repercutiria sobre várias outras metas do PNE referentes ao tema. Outra possibilidade seria a centralização da Educação Indígena no âmbito do MEC.

Caberia iniciativa legislativa objetivando o retorno da educação indígena à esfera federal, mesmo porque não houve a revogação formal da lei que cria a FUNAI e lhe atribui a educação indígena. Considerando a atual situação de indefinição jurídica, o decreto legislativo seria o instrumento adequado.

2. A Educação intercultural bilingue

Já nos anos 60, a FUNAI, em cooperação com universidades brasileiras, instituições nacionais de pesquisa (dentre as quais, o Museu Nacional, a Universidade de Brasília e a UNICAMP), instituições estrangeiras de pesquisa e as próprias populações indígenas procurava desenvolver programas de educação bilingüe e intercultural. De enorme importância foi a contribuição do Summer Institute of Linguistics neste sentido, com a descrição de dezenas de línguas indígenas, embora o objetivo maior do instituto fosse de ordem religiosa, isto é, assimilacionista, pois buscava alfabetizar os índios para que pudessem ler a Bíblia em língua indígena. Portanto, os pareceres do Conselho Nacional de Educação no sentido de se implantar uma educação intercultural/bilingüe representam a reafirmação de um procedimento considerado ideal por todos os que têm trabalhado com educação indígena. É, porém, uma normatização ineficaz, devido à indefinição legal relativa à distribuição de responsabilidades federativas.

Uma educação intercultural têm como fundamentos um aspecto pedagógico e um aspecto identitário.

Do ponto de vista pedagógico já ficou demonstrado, a partir de estudos com hispânicos e negros realizados nos anos 60 nos Estados Unidos, que os estudantes simplesmente não aprendem quando não é considerado o referencial de sua cultura. O aspecto mais extremo (e óbvio) da educação intercultural, naturalmente, é o lingüístico, pois, evidentemente, pessoas que desconhecem o português nada aprenderão em aulas proferidas em português. Além disto, para que o aprendizado seja eficaz é indispensável um currículo que contenha um referencial próximo à vida do aluno, princípio já absorvido pela legislação (ver a LDB) e pelos sistemas educacionais municipais e estaduais.

O segundo aspecto que justifica uma educação intercultural é o da afirmação da identidade do grupo indígena. A valorização de língua, valores e costumes tradicionais representa uma forma de reavivar a identidade e o orgulho na diferença em uma sociedade plural. Sabe-se que a afirmação dessa identidade é algo essencial não só para a sobrevivência do grupo enquanto tal, mas também para a sobrevivência física das pessoas. A escola tem uma função única neste particular.

As normas do CNE concernentes à diversidade cultural na escola, em geral, e na escola indígena, em particular, são pouco mais do que bons argumentos, em vista de sua pouca eficácia e da incapacidade metodológica, técnica e financeira da grande maioria dos estados e dos municípios que as aplicam. Devido à confusão na distribuição de atribuições entre os entes federativos e instituições diversas e os interesses conflitantes, as metas do PNE relativas à educação intercultural são de difícil, senão impossível, implementação na maioria dos estados brasileiros.

Além de tecnicamente difícil, a educação intercultural implica elevados dispêndios financeiros. Acrescente-se, neste mesmo sentido, os interesses regionais integracionistas representados pelos estados e municípios. O integracionismo justifica a tomada das terras e a absorção de índios como mão de obra barata ou, em alguns casos, escrava. A existência de um enorme e confuso aparato administrativo e institucional é compatível com a efetiva dessasistência na educação indígena.

3 – A Formação de Professores Indígenas

A formação de professores indígenas, objeto de duas metas do PNE, representa uma questão central não só para a boa escola intercultural como também para a formação de uma inteligentzia indígena particular.

Os professores passam a ser, sobretudo dentre os grupos indígenas de população maior, uma novo segmento social que funciona como intermediário cultural entre o seu povo e a sociedade nacional.

Por isto, os professores indígenas, devem ser não apenas tecnicamente capacitados para a educação intercultural e bilíngue (se for o caso). Devem, também, estar conscientes da importância da identidade de seu povo e do papel da escola no processamento e na produção da mudança cultural e no conhecimento da sociedade nacional brasileira. Tais requisitos são indispensáveis para a própria viabilidade das sociedades indígenas no processo de interação com o mercado econômico e com a conquista de uma forma de cidadania em que sua identidade seja respeitada.

Um programa consistente de formação de professores indígenas envolvendo, especialmente, as universidades deve ser implementado. Há que se observar que a transferência dessa responsabilidade para os estados dificilmente obterá êxito.

4- A Universalização da educação básica entre índios

A universalização do ensino básico indígena está prevista em diferentes metas do PNE. A meta não faz o menor sentido em um contexto intercultural, pois há tribos de contato recente, conforme evidencia mesmo a avaliação do PNE pelo INEP, que não desejam a escola em suas comunidades. A própria “vontade” coletiva de uma comunidade é, em geral, de difícil aferição, sujeita a diferentes formas de manipulação.

Não apenas os grupos indígenas de contato mais recente, mas todos os grupos indígenas mais isolados, alguns de contato relativamente antigo, não necessitam de uma escola intercultural ou de qualquer escola. A escola é uma criação do Ocidente Europeu, do qual esses índios estão muito distantes e pode representar um mecanismo de desestruturação de sua maneira de viver. Por isto devem ser revistas as metas do PNE, que prevêem prazos para a universalização do ensino básico para todas as comunidades indígenas. A universalização é desejável, apenas, no caso das comunidades em avançado processo de contato com a sociedade nacional. A implantação ou ampliação da escola em muitas comunidades indígenas deve ser objeto de criteriosa avaliação envolvendo os próprios índios, frente à necessidade de afirmação de cidadania em uma sociedade multicultural.

Dados recém-divulgados do Censo Escolar 2006 indicam um crescimento médio de 10% nos últimos quatro anos na educação indígena. Sem dúvida, contribuem para este resultado o expressivo aumento populacional de 4% ao ano e o abandono da educação indígena durante a década de noventa: a carência é enorme. A maior parte das escolas indígenas, entretanto, ainda éde responsabilidade dos municípios (53,1%) e a maior parte do crescimento ocorreu neste setor. Assim, há que se colocar a questão do ensino intercultural e da incapacidade da maior parte dos municípios em levá-lo a termo.

5 – Recursos Financeiros, Infra-estrutura física e equipamentos para as escolas indígenas

O PNE prevê em diferentes metas, o direcionamento de recursos didáticos e financeiros para as comunidades indígenas. É prevista, em especial, a extensão de programas do MEC às comunidades indígenas.

É evidentemente desejável o objetivo de equipar e apoiar financeiramente as escolas indígenas, através de programas já existentes no governo federal e nos estados e municípios. É sintomático que essas metas estendam ao índios os direitos constitucionais à educação básica a que fazem jus todos os brasileiros. A reafirmação, embora redundante, é necessária devido ao abandono da educação indígena por muitos estados e municípios.

Mais importante do que estender aos índios direitos que já possuem como brasileiros, por meio do apoio de programas governamentais pré-existentes, é a alocação de recursos específicos para a educação indígena, ou seja, a criação de um programa federal de educação indígena que contemple rubricas específicas para equipamentos, transporte escolar, material didático, treinamento de professores bilingües, publicação de textos em línguas indígenas, e outras mais.

V – Conclusões

A educação indígena deve ser, por sua especificidade, considerada como política e administrativamente a parte da educação básica executada pelos estados e municípios. Deve ser entendida como algo muito diferente.

Parece claro que as atuais metas do PNE devem ser revistas, no sentido de:

Voltar a educação indígena à responsabilidade federal. O ideal seria o retorno da educação e da saúde indígenas ao âmbito da FUNAI. Não havendo, entretanto, condições políticas para tanto, que a educação indígena volte a ser considerada como responsabilidade do MEC, naturalmente, em cooperação com os estados e municípios. Um problema com o PNE, que no que diz respeito à educação indígena assume um aspecto particularmente cruel, é a atribuição, sem consulta prévia aos interessados, de encargos para os estados e municípios. No caso dos índios tal transferência não chegou a acontecer sequer formalmente devido, como foi demonstrado, à implícita desobediência ao preceito legal vigente. A meta do PNE, que prevê a legalização dessa transferência, deve ser a primeira a ser rejeitada; Criar programas federais específicos de apoio financeiro e técnico às escolas indígenas, sem prejuízo de aportes de programas já existentes; Criar programas de pesquisa acadêmicos visando a criação de metodologias para a educação intercultural. Incluir nesses programas a descrição e o desenvolvimento da escrita de línguas indígenas, quando for o caso. Criar, no âmbito do MEC, programas nacionais de formação de professores indígenas. Abandonar as metas que estipulam arbitrariamente prazos para universalização da educação indígena. As metas do PNE relativas à educação indígena devem ser, sem exceção, abandonadas e suas premissas inteiramente revistas.