(Publicado em 1999, Revista Humanidades, UNB)
1. Conceito, interesse, autonomia universitária
Conceitos, como armas, podem ser usados de maneiras diversas e, tanto uns como outros, voltam-se, freqüentemente, contra aqueles que os empunham.
O uso adequado de determinados conceitos representa uma pré-condição essencial para o exercício do poder. O vínculo do conceito com o poder torna-se crucial quando aquele sugere um entendimento que imponha uma intervenção- transformado em lei, possui um caráter impositivo.
O recente debate sobre a autonomia universitária, no âmbito do Congresso Nacional tem, dentre outros méritos, o de demonstrar como variam os conceitos e o discurso construído ao seu redor, bem como a maneira como são interpretados e aplicados, de acordo com os interesses daqueles que os usam.
A forma usada por cada uma das partes envolvidas na discussão para transformar sua visão, sua “interpretação”, em norma jurídica de acordo com seus interesses, consiste em identificá-los, no que for possível, com o interesse da sociedade como um todo.
Este artigo descreve as motivações e os argumentos que fundamentam a atual discussão sobre a autonomia universitária, as razões, os interesses e os movimentos táticos utilizados pelos atores sociais, indivíduos e representantes de instituições, envolvidos na discussão do assunto.
Busca, também, o que parece ao autor deste artigo, o efetivo interesse social.
2.Os Primeiros Movimentos do MEC: suas Razões para a Emenda da Autonomia
O Art. 207 da Constituição estabelece que:
“As universidades gozarão de autonomia didático científico, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.”
Em inícios de 1996 foram acrescentados dois parágrafos, por meio de emenda. O primeiro faculta às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros e, o segundo estende a autonomia universitária a instituições de pesquisa científica e tecnológica.
A discussão da autonomia universitária passou a representar um dos mais interessantes debates políticos recentes, com o envio ao Congresso Nacional da Proposta de Emenda à Constituição (“PEC”) de No 233-A, de 1995, pelo Poder Executivo, patrocinada pelo Ministério da Educação e do Desporto.
Essa PEC tratava de uma série de assuntos relativos à educação fundamental e média. No que se refere à educação superior, alterava o Art. 207, apenas, adicionando-lhe ao caput a expressão “na forma da lei” e um parágrafo . Ficava, o artigo com a redação seguinte:
“Art. 207 As universidades gozam, na forma da lei, de autonomia…………………………..”
“Parágrafo único A lei poderá estender às demais instituições de ensino superior e aos institutos de pesquisa diferentes graus de autonomia. ”
Para análise da PEC 233-A/95, como manda o regimento da Câmara dos Deputados, foi criada uma Comissão especial, dirigida pelo falecido Deputado Elias Abrahão e tendo como relator o Deputado José Jorge. Enquanto os aspectos relativos aos ensino fundamental e médio tiveram uma tramitação legislativa sem maiores problemas, a alteração do artigo 207 foi caracterizada por intenso debate, oposição e, por fim, pela negociação entre os setores interessados.
Das primeiras análises críticas da PEC 233-A foi a realizada pelo autor deste artigo na Assessoria Legislativa da Câmara dos Deputados, em Janeiro de 1996. Nesta ocasião (Zarur, 1996) ficou evidenciado que:
A adição ao Art. 207 da expressão “na forma da lei” seria redundante e, portanto, desnecessária, uma vez que a autonomia, não se confundindo com “soberania”, estaria sempre circunscrita por uma séria de leis, decretos e portarias. Todas as normas em vigor, ou propostas (caso da LDB) referentes às instituições de ensino superior já desempenhariam este papel, sem a necessidade de alteração constitucional. Assim, a regra da autonomia seria auto-aplicável.
A alteração constitucional, remetendo a matéria à lei ordinária poderia ter o efeito de “desconstitucionalizá-la” pois a autonomia poderia ser alterada por procedimentos legislativos relativamente simples.. Daí ser indicada para o caso uma lei complementar.
Não obstante os aspectos desfavoráveis acima, a inovação traria a vantagem da clareza que deve caracterizar toda norma jurídica. Embora pelo Art. 209 da Constituição caiba ao Poder Público a autorização e a avaliação da qualidade do ensino privado, há casos na Justiça em que as universidades particulares procuram escapar desses controles através do recurso ao Art.207.
Os principais motivos alegados pelo MEC para regulamentação, por lei, da autonomia universitária, podem ser encontrados em dois documentos que contradizem alguns dos argumentos acima. Um desses é um artigo de autoria da Professora Eunice Durhan -“A Autonomia em Questão” – e o outro, um ofício do Ministro da Educação ao Presidente da Comissão Especial encarregada da PEC 233-A .
Os principais argumentos do MEC, no início de 1996, eram os seguintes:
O Art. 207 não é auto-aplicável. As universidades públicas não têm autonomia. Não podem contratar livremente, não estabelecem o padrão de remuneração, não controlam seu quadro de pessoal e sua verba. Isto impede uma administração eficiente. As universidades particulares ao invés de autonomia têm soberania, pois o Poder Público não dispõe de instrumentos para controlá-las, visando a garantia de um padrão mínimo de qualidade.. Uma vez que não há lei associando a autonomia ao corpo docente, acaba a autonomia (soberania) ficando em mãos das mantenedoras das universidades privadas, que decidem quem contratar e os cursos a serem criados, dentre outras prerrogativas.
O MEC, portanto, justificava a iniciativa de alterar o Art. 207 da Constituição, pela necessidade de aprimorar a gestão administrativa e financeira das universidades públicas e de controlar o padrão de qualidade das universidades privadas.
Outro argumento, usado pelo governo, foi o suposto sucesso da experiência paulista com a autonomia financeira e de gestão de pessoal, obtida por um decreto estadual de 1988.
Um documento, de autoria da Professora Maria Helena de Magalhães Castro, atual Secretária de Ensino Superior do MEC, avalia a experiência paulista de autonomia administrativa e financeira. Situa o “enxugamento de quadros” na USP e na UNICAMP, como uma das grandes conquistas então obtidas. Na UNICAMP, a vantagem teria sido a diminuição em 15% dos docentes, ganho discutível pois, agora, está se pensando em aumentar de novo o quadro. Além disto, o documento sustenta que essa diminuição no número de professores foi, também, ocasionada pela Reforma da Previdência levando à aposentadoria em massa tanto no sistema paulista (dotado de autonomia), como nas instituições públicas federais (sem autonomia).
É destacado, neste documento, o papel do então Reitor da UNICAMP, Professor Paulo Renato de Sousa, na implementação da autonomia nas universidades paulistas. No seu entender, a autonomia só faria sentido se associada à prestação de contas à sociedade, por meio de um sistema de avaliação externo às instituições, o que não ocorre até o presente em São Paulo.
O MEC, ainda em Agosto de 1996, distribuiu um anteprojeto de lei regulamentando o Art. 207 da Constituição em que fica evidente a insatisfação com os custos e com os resultados obtidos pelas universidades do país.
3. A Reação das Universidades
Esse primeiro movimento da parte do MEC encontrou uma unânime oposição das instituições públicas e privadas de ensino superior, que acabaram por se unir e inviabilizar a proposta de autonomia nos termos da PEC 233- A/95.
O Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB) aprovou, em reunião plenária, a “Carta de Goiás” expressando irrestrita defesa à atual forma do Art. 207 da Constituição e, requerendo a participação da entidade na elaboração da Política Nacional de Educação Para o Ensino Superior. Criou uma comissão com representantes da ANDIFES ( Associação dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), da ANUP (Associação Nacional da Universidades Particulares), da ABRUC (Associação Brasileira das Universidades Católicas) e da ABRUEM (Associação Brasileira das Universidades Estaduais e Municipais) que elaborou um documento reafirmando a defesa da “Autonomia Plena” e posicionando-se contra qualquer alteração do Art. 207 do Texto Constitucional.
A posição do CRUB fez-se sentir de forma mais precisa na audiência pública , na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, em que foi ouvido seu atual Presidente, o Reitor da UNICAMP, Professor José Martins Filho. Sustenta que a autonomia didático-científica já existe nas universidades brasileiras e que as de gestão financeira e de pessoal existem apenas nas universidades paulistas, onde, de resto, sua implementação foi bem sucedida. No que concerne à PEC, argumenta que:
A autonomia seria limitada se remetida à lei ordinária e traçados novos limites infra-constitucionais. A lei poderia ser alterada com facilidade, sujeitando as universidades a interferências realizadas através de processos legislativos simples. A regulamentação da autonomia deve ocorrer mediante a LDB e a regulamentação dos arts. 206 e 209 da Constituição.
Outra associação que teve um papel relevante na discussão da matéria foi a ANDIFES, que congrega os dirigentes das instituições federais de ensino superior. Sua posição é resumida na audiência pública em foi ouvido seu então Presidente, Reitor Antônio Diomário Dias que, também, enfatizou a preocupação com a limitação da autonomia por perder o resguardo constitucional e ter, assim, seus limites definidos por leis ordinárias, decretos e portarias. Além disto, o Presidente da ANDIFES defendeu uma concepção de “autonomia plena” que:
Defina claramente as fontes de financiamento em valores reais, com liberação regular de recursos. Mantenha as IFES submetidas a um estatuto jurídico no âmbito do Direito Público. Respeite o caráter público e gratuito das IFES. Cumpra os preceitos constitucionais de educação para todos e de gestão democrática. Assegure a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Preserve o sistema federal de educação superior. Garanta o financiamento público à educação de qualidade. Valorize os profissionais da educação.
A avaliação (interna e externa) é situada, pela ANDIFES, como um princípio indissociável ao da autonomia universitária.
A ANDIFES, ao aprovar esses princípios, vincula a defesa da universidade pública e gratuita, associando ensino, pesquisa e extensão, com o conceito de autonomia universitária. A iniciativa do MEC é entendida, assim, como uma ameaça ao modelo de universidade pública adotado no País.
A ANDIFES reafirmou os princípios acima em um anteprojeto de “Lei Orgânica das Universidades”, aprovado na reunião de seu conselho pleno em Outubro de 1996. Apresentou, desta forma, uma proposta de reforma da universidade, sem que com isso fosse alterado o dispositivo constitucional da autonomia. O anteprojeto cria um regime jurídico especial no âmbito do Direito Público para os professores universitários, garante o financiamento das instituições públicas de ensino superior e o controle das instituições privadas.
A Associação dos Docentes do Ensino Superior (ANDES) posicionou-se frontalmente contrária à proposta governamental, partindo de uma crítica ao modelo “neo-liberal”, em implantação na atualidade.
Frente à unânime resistência das instituições de ensino superior à PEC 233-A/96, chegou-se a um acordo, no âmbito da Comissão Especial da Câmara dos Deputados encarregada do assunto, pelo qual seriam aprovadas medidas relativas aos demais níveis de ensino, ficando a questão da autonomia universitária remetida a uma nova proposição a ser, oportunamente, encaminhada pelo Poder Executivo. Em Outubro de 1996, o Presidente da República encaminhou ao Congresso Nacional a PEC 370-96, com o mesmo conteúdo da anterior, porém, restrita ao ensino superior.
Foi criada uma nova comissão especial para a discussão da proposta, tendo como Presidente a Deputada Marisa Serrano e como Relator o Deputado Paulo Bornhausen.
Na discussão da nova PEC (370-96) apareceram duas novidades importantes.
A primeira foi a maior visibilidade da proposta liberal, orientada pela defesa do livre mercado como o mecanismo central de organização do ensino superior, apoiada por parlamentares e alguns intelectuais atuantes na área da Educação, especialmente, os Professores João Batista de Oliveira ( Ex-secretário Executivo do MEC), Cláudio Moura Castro ( Chefe da Divisão de Políticas Sociais do Banco Interamericano de Desenvolvimento) e Simon Schwartzman (Presidente do IBGE).
A segunda foi o surgimento de um possível compromisso entre o MEC, as instituições públicas e as privadas, que pode viabilizar a alteração constitucional, mas, de uma forma completamente diversa da proposta original. O compromisso não parece se esgotar na PEC, mas em toda uma nova política para o ensino superior no País.
4. O Contra-Ataque Liberal
O momento seguinte foi o da abertura de fogo contra o atual modelo de universidade brasileira.
O governo, inicialmente, justificava a alteração na regra da autonomia em função da necessidade de fiscalizar as instituições particulares de ensino e de flexibilizar a administração das instituições federais. Procurava, desta forma, aumentar a autonomia das instituições públicas e restringir a das instituições privadas. Havia, portanto uma valorização do ensino público e um ataque ao ensino particular.
O argumento liberal inverte essa lógica, situando a universidade pública como o problema maior. Propõe uma alteração radical do modelo de universidade no País, privilegiando o ensino superior privado, a partir de uma dura crítica ao ensino superior público.
A crítica e a proposta liberais estão delineadas em estudos e emendas apresentados por parlamentares, em depoimentos nas audiências públicas da Comissão Especial da Câmara Federal e em artigos de jornais. Dentre seus objetivos estão os seguintes:
Implantação de novas formas de financiamento das universidades federais, inclusive pelo pagamento de mensalidades pelos alunos que tiverem condições para tanto. Ampliação do crédito educativo de forma a atingir todos os alunos carentes. Não há, no seu ponto de vista, razão para que 1.150.000 alunos das instituições particulares paguem mensalidades e que 450.000 das instituições públicas não o façam.
O financiamento da educação superior seria centrado no aluno, pelo crédito educativo. Haveria, assim, uma transferência de recursos das universidades públicas para as privadas, devido ao maior número de alunos dessas instituições e à sua suposta maior carência econômica ().
A propostas de inspiração liberal, em tramitação na Câmara, têm três pontos principais:
Desvincular o conceito de autonomia do conceito de universidade. A autonomia seria prerrogativa de todo o ensino superior, incluídas as instituições que não recebem o rótulo de “universidades”. Abolir o pressuposto da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, na definição de universidade. Limitar a ação do executivo ao controle da qualidade das instituições e não à concessão da autorização para funcionamento, ampliação do número de vagas e criação de novos cursos.
Algumas dessas proposições revogam o art. 209 da Constituição que assegura ao Poder Público a “autorização e avaliação da qualidade” do ensino privado.
Nesta ótica, a autonomia deveria consistir em prerrogativa de todo o ensino superior pois a liberdade de ensinar e fazer pesquisa seria inerente a todas as instituições, incluindo faculdades isoladas, não classificadas como “universidades”.
A associação entre ensino, pesquisa e extensão, caracterizando as universidades, seria uma concepção ultrapassada. É assumida a existência de modelos diferentes de universidade, coexistindo nos países mais diversos. Assim, nos Estados Unidos 70% da pesquisa estaria concentrada em poucas instituições. No Brasil, aplicada a regra da indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão, poucas instituições, inclusive dentre as federais, poderiam ser qualificadas como “universidades”.
A proposta liberal se escuda na crítica, em moda, do estado Keynesiano intervencionista como uma entidade imoral. Usando o exemplo do antigo Conselho Federal de Educação, relaciona a regra da autonomia exclusiva das universidades credenciadas pelo governo ao surgimento de mecanismos de corrupção.
Um texto do Professor Cláudio Moura Castro, distribuído durante seu depoimento na Câmara dos Deputados, explicita outros aspectos da crítica liberal ao modelo de universidade do Brasil. Aplaude as inovações recentes nos sistemas universitários do Chile, Argentina e México, onde a democratização do ensino superior é relacionada à dissociação do ensino, da pesquisa e da extensão e à universidade paga capaz de incorporar uma grande massa de estudantes.
Posteriormente, os três autores, Moura Castro, Schwartzman e Oliveira escreveram um curto artigo para o Jornal Gazeta Mercantil (06/01/97) em que resumem seu ponto de vista:
Hoje a regra nos países desenvolvidos é o ensino de massas. Em alguns países da América Latina, 20 a 30% da população chegam ao ensino superior, o que não ocorre no Brasil.. O sistema universitário brasileiro não tem se expandido nos últimos quinze anos. O problema se deve ao pequeno número de alunos que consegue terminar o segundo grau e a questões culturais: a regulamentação corporativa de profissões e contenção do fluxo de formandos para controlar o mercado. Os custos das universidades públicas chegam a U$ 17.000,00 por aluno, para o sistema federal, U$ 20.000,00, no sistema estadual, enquanto fica em U$ 2.500,00, no sistema particular. Para solucionar esses problemas, os autores defendem uma maior autonomia de gestão patrimonial e de pessoal para as instituições públicas, associadas a um sistema de avaliação e maior liberdade para o setor privado.
5.O Compromisso que quase aconteceu
O Ministério da Educação e do Desporto, conforme foi visto, submeteu ao Congresso Nacional uma nova Proposta de Emenda à Constituição (No. 370/96). O MEC, através da base de apoio parlamentar ao governo, tentou alterar esta mesma proposição. As emendas apresentadas pelo governo à sua própria proposição responderam às preocupações e críticas das universidades públicas e privadas. Representavam, portanto, uma fórmula de compromisso.
O principal ponto, comum a essas emendas, foi o abandono da remissão da autonomia à lei ordinária. Não mais se adicionava a expressão “na forma da lei” ao caput do art. 207 que, conforme foi visto, teria o efeito de “desconstitucionalizar” o instituto da autonomia. A definição da autonomia passava a integrar o texto da própria Carta Constitucional.
A nova proposta do governo definia as universidades públicas federais como “entidades administrativas autônomas de regime especial”. São os seguintes os principais aspectos que passaram a caracterizar essas novas “entidades” do Direito brasileiro:
Liberdade para contratar e demitir pessoal, bem como para estabelecer o nível de remuneração de seus servidores. Regime jurídico especial para seus servidores, de responsabilidade da própria universidade. Orçamento definido de forma global, permitida a transferência de recursos entre as rubricas. Criação de um Fundo Para Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Superior, assegurando 75% dos recursos vinculados ao ensino na forma do art. 212 da Constituição, pelo prazo de dez anos. Extensão da autonomia a outras instituições de ensino, não classificadas como universidades.
Caso o compromisso fosse efetivamente implementado ficariam assegurados ao governo, maior eficiência gerencial das universidades federais e um limite máximo dos recursos obrigatoriamente repassados ao ensino superior nos próximos dez anos. Às instituições federais de ensino superior ficariam garantidos os recursos historicamente alocados pelo governo federal, pelo prazo de dez anos (75% dos previstos no Art. 212 da Constituição). O ensino superior privado ganharia maior flexibilidade nas regras para criação de novos cursos e expansão do número de vagas, pela extensão da autonomia a diferentes tipos de instituições.
As universidades públicas federais seriam transformadas em “organizações sociais”, na fórmula da Reforma Administrativa do Ministro Bresser Pereira mas, com uma diferença: o financiamento seria concedido em bloco para todas as universidades e, entre elas, redistribuído em função de um sistema de avaliação. O aumento de verba de uma instituição, avaliada positivamente, representaria a diminuição dos recursos de outra instituição, avaliada negativamente.
A questão dos servidores inativos restou como um aspecto ainda obscuro. Atualmente o pagamento dos inativos consome cerca de 25% do total do orçamento das instituições federais de ensino superior, Esses recursos integram a parcela obrigatória a ser repassada à educação pelo art. 212 da Constituição. O montante destinado ao pagamento desses servidores tende a crescer, em conseqüência das aposentadorias em massa ocasionadas pela ameaça de perda de direitos ocasionada pela reforma adminstrativa e ao envelhecimento dos quadros acadêmicos. Como fica estabelecido um “teto” para todas as universidades e o pagamento dos inativos é crescente, é previsível uma diminuição real dos recursos disponíveis para as universidades públicas federais.
Se o compromisso tivesse acontecido, resolvida a questão dos inativos, a universidade pública federal garantiria perdas relativamente pequenas frente ao ataque que enfrenta, em um contexto maior de reforma do estado.
O ensino privado tomou a inciativa do ataque. Algumas de suas teses foram, até mesmo, incorporadas pelo discurso do MEC (). Poderia contar, ainda, com a possibilidade de novos ganhos durante a tramitação da emenda 370/96.
Em finais de 1997 quando parecia tudo acertado, mediante um grande acordo envolvendo o MEC, as universidades públicas e as instituições privadas, o produto de quatro anos de lutas e negociação foi por água abaixo, pois a equipe econômica do governo tem como um de seus princípios evitar a vinculação de recursos orçamentários. O veto da equipe econômica, que temia o agravamento do deficit público, determinou o fim da tramitação da emenda constitucional relativa à autonomia universitária.
No primeiro semestre de 1999, o MEC divulgou as diretrizes de uma nova proposta de regulamentação da autonomia, por lei ordinária, no bojo das medidas tomadas no âmbito da Reforma Administrativa.
Não há grandes novidades na nova proposta do MEC, a não ser a perda pelas universidades daquela que seria sua principal conquista na negociação anterior: a garantia de recursos estáveis em um quadro de desmonte do estado. As instituições, agora, deixam de contar com a garantia dos 75% dos recursos dos recursos previstos no artigo 212 do Texto Constitucional.
De certa forma, o MEC acena com uma contrapartida a esta perda, que seria a garantia de que o pagamento dos inativos e pensionistas seria excluído do orçamento das instituições, o que representaria, de fato, um aumento de receita. Há, entretanto, que se observar que a tendência, embora não muito clara, nos momentos finais de negociação da emenda 370/96, era no sentido de que tais gastos passassem a desonerar as instituições de ensino superior. Há que se lembrar, também, que tal gravame é nitidamente inconstitucional, pois o art. 212 da Constituição Federal vincula recursos para “a manutenção e desenvolvimento do ensino”. É evidente que o pagamento de inativos (como os dos precatórios, na maior parte resultantes de decisões judiciais relativas a causas trabalhistas) não constituem despesas para a “manutenção e desenvolvimento do ensino”. Cai-se assim em uma situação esdrúxula em que não se negocia a lei, mas a aplicação da Lei Maior em um caso onde inexiste qualquer possibilidade de interpretações divergentes.
Hoje, a principal divergência entre o MEC e as universidades representadas pela ANDIFES é a questão desses 75% dos recursos previstos no art. 207. Há, entretanto, outras importantes diferenças que, agora, retornaram com mais ênfase, visto que a proposta do MEC, preparada para embasar uma lei ordinária é, por este mesmo motivo, muito mais detalhada que a da PEC 370/96.
O MEC, na forma prevista para as organizações sociais na Reforma Administrativa, pretende assinar um contrato de gestão com as universidades para, assim, conceder-lhes a autonomia. A ANDIFES reage, principalmente, para defender as instituições que seriam prejudicadas em avaliações por critérios ditos “de qualidade”, tais como, desempenho dos alunos no provão e número de mestres e doutores, além de outros indicadores como número de alunos.
Outro aspecto importante no novo conflito, entre o MEC e as universidades federais, é a questão da carreira docente e dos funcionários. Enquanto a ANDIFES defende um piso salarial a partir do qual cada universidade estabeleceria seu plano de carreira, o MEC é contrário à existência deste piso.
6. As Diferentes Razões e o Interesse Social
O debate sobre a autonomia aponta os caminhos da universidade brasileira em um novo momento da história do País. Poderá levar a uma radical melhoria do sistema universitário nacional ou ao seu desmonte. Todos os lados envolvidos têm suas razões e propostas, importando saber quais, transformadas em lei, melhor conviriam à sociedade brasileira.
As razões do MEC são sólidas ao solicitar ao Presidente da República o envio ao Parlamento da PEC 233-A/95. Falta uma maior eficiência administrativa à universidade pública e um maior controle da universidade privada. O estado está, legitimamente, desempenhado seu papel ao tentar alterar este quadro. Porém, a proposta inicial, de “desconstitucionalização” do instituto da autonomia, representava um risco para o ensino superior brasileiro e era desnecessária para atingir os objetivos propostos. Houve um verdadeiro consenso a este respeito, congregando todas as demais partes envolvidas no debate.
A resposta das universidades públicas teve sua melhor expressão na proposta da ANDIFES de uma “Lei Orgânica das Universidades”. Representou uma aceitação tácita da tese da necessidade de se mudar a administração dessas instituições. Foram aceitas as razões do MEC, mas não as medidas que propôs.
As universidades públicas defendem o sistema universitário estatal brasileiro com suas características atuais: fontes regulares de financiamento, pessoal e instituições no âmbito do Direito Público, ensino gratuito e indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Não foi encontrada durante a discussão, em nenhum documento ou depoimento, quaisquer justificativas para um modelo de universidade montado a partir desses princípios. A tática dos representantes das universidades públicas foi a de não discutir o mérito das questões acima mas, de “sacralizar” esses princípios como direitos das instituições e de seus servidores. Assumiu-se o interesse social como “dado”.
A única oportunidade em que se procurou justificar a existência da universidade pública no País foi em um documento recente do próprio MEC (“Uma Nova Política do Ensino Superior no Brasil”), aliás, altamente crítico do atual modelo de ensino superior brasileiro. Os seguintes fatores justificariam a manutenção do sistema universitário público: estabelecimento de um padrão de qualidade, formação de quadros docentes (inclusive para o setor privado), abrigar a pesquisa (especialmente a de alto custo), compensar as desigualdades regionais.
Foram esquecidos outros aspectos, como a inexistência de determinados cursos de baixo retorno econômico nas instituições privadas, caso de Agronomia, por exemplo (ver Zarur, 1995). Este é, por sinal, um motivo geralmente ignorado no cálculo do custo por aluno das instituições públicas de ensino.
Dentre os princípios defendidos pelas universidades públicas, a garantia de recursos, nos próximos dez anos, estava assegurada pelo texto final da PEC 370/96, (que dependeria, ainda, de um esclarecimento da questão dos inativos). Porém com a nova proposta do MEC, de regular a autonomia por lei ordinária, este ponto desaparece.
O segundo princípio, o ensino público gratuito, não é um problema tão importante para o financiamento das universidades públicas. O ensino pago será, para aqueles que puderem fazê-lo, uma forma adicional de taxação. Provavelmente, não terá um efeito maior sobre o orçamento da maior parte das instituições pois, a informação – hoje, fazendo parte do discurso do MEC e de setores da esquerda- de que o ensino universitário gratuito privilegia as “classes mais abastadas”, não está de acordo com os dados da única pesquisa divulgada sobre o perfil sócio-econômico dos estudantes das universidades federais (ver, CRUB, pesquisa já citada de 1995). Sua implantação teria, principalmente, um efeito simbólico. Teria conseqüências mais políticas que orçamentárias.
O princípio mais frágil, no atual modelo brasileiro de universidade, é o da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão associado à autonomia. Já foi quebrado, na medida em que os institutos de pesquisa científica passaram a ter direito à autonomia, em função de emenda constitucional ao Art. 207, aprovada em 1995. A autonomia didático – cientifico, a liberdade de pensar e ensinar, não pode ficar restrita àqueles que fazem pesquisa. Além disto, aqueles que fazem apenas pesquisa, não podem ser obrigados a ensinar para conquistar a autonomia. Neste aspecto, em particular, a crítica liberal é adequada, por demonstrar que a grande maioria das atuais universidades federais brasileiras, por não associar, efetivamente, ensino, pesquisa e extensão, não poderia ser classificada como “universidade”. Não há, também, nenhum bom motivo para que apenas as instituições classificadas como universidades tenham o direito de abrir novos cursos.
O argumento liberal de que nos países desenvolvidos “a regra é o ensino universitário de massas”, razão pela qual deve ser permitida a livre expansão do ensino privado no Brasil, precisa ser devidamente relativizado. Mesmo sendo esta a norma nos Estados Unidos, deve ser lembrado o caso do Japão que, embora, com uma população próxima à brasileira, tem uma economia várias vezes maior do que a nossa e apenas o dobro do número de estudantes universitários (cerca de três milhões). Além disto, o ensino universitário de massas, nos Estados Unidos, preenche uma função compensatória, devido à falência do ensino médio, uma das grande preocupações do governo Clinton. A educação universitária de massas pode ser substituída adequadamente, no Brasil, por uma expansão diversificada da ensino de segundo grau.
É a própria crítica liberal que (ver Moura Castro, Schwartzman e Oliveira, op.cit) aponta a reserva de mercado por meio da regulamentação legal das profissões como uma barreira de ordem cultural à expansão livre do ensino superior no Brasil. Não se pode permitir a abertura indiscriminada de novos cursos enquanto o diploma representar a forma de credenciamento para o exercício das diversas profissões. Um exame de credenciamento profissional – mais exigente que o atual “exame de ordem” dos advogados- deveria substituí-lo. Assim, as universidades públicas e privadas seriam obrigadas a produzir (e “vender”) conhecimento, não diplomas.
O fato de alguns países Latino-americanos chegarem a ter 30% ou 40% de sua população matriculadas em universidades, a um baixo custo por aluno, não quer dizer muita coisa, quando é levada em consideração a maneira como ocorreu este processo. Houve uma acentuada queda da qualidade do ensino associada a uma total desmoralização do corpo docente, em função dos baixos salários e da virtual inexistência do tempo integral e da dedicação exclusiva. O melhor indicador, no caso, é a boa reputação que o ensino superior brasileiro possui, na visão de professores universitários argentinos, chilenos ou mexicanos.
Apesar disto, a universidade pública brasileira tem problemas gravíssimos, cuja solução não será encontrada no ensino particular voltado às massas(). Evidentes absurdos do sistema público universitário brasileiro como a estabilidade precoce de professores recém-formados, liberados de carga docente por serem considerados, sem avaliação e automaticamente, como pesquisadores (a “carteirinha” de pesquisador); a contratação de alunos como professores, muitas vezes, cursando a pós-graduação na mesma universidade; a acentuada queda da qualidade docente devido às recentes aposentadorias em larga escala e ao “filhotismo” generalizado decorrente de concursos ditos públicos mas, de fato, direcionados, isto é “particulares”; o empreguismo levando ao excessivo número de funcionários. Não existe, também, qualquer motivo razoável para que o Poder Público seja obrigado a manter cursos de qualidade duvidosa, quando houver nas proximidades outras instituições, públicas ou privadas, de melhor nível.()
Assim, algumas poucas e simples normas, definindo os limites da autonomia, poderiam ser mais efetivas na melhoria do ensino superior estatal do que muitas das penosas e desagregadoras iniciativas que têm sido tomadas ultimamente. Seria o caso, por exemplo, de se limitar a contratação de ex-alunos; de se garantir a estabilidade no emprego apenas após o doutorado e uma efetiva avaliação das publicações e desempenho; de se moralizar a admissão de docentes por meio da realização de concursos realmente públicos, de alcance nacional, para o preenchimento das vagas existentes em todas as instituições.
A solução do MEC para os problemas das universidades públicas é, porém, a de conceder-lhes a autonomia administrativa e, em função de um processo de avaliação, redistribuir os recursos. É óbvio que a descentralização administrativa é pré-condição para uma gestão mais eficiente, mas seu alcance deve ser definido com clareza.
Este autor tem sérias dúvidas a respeito da eficácia do modelo autonomia-avaliação-financiamento, ao considerar as resistências que as instituições oferecerão ao processo avaliativo externo. Além disto, a avaliação é um processo tecnicamente complicado. Avaliações são bem feitas ao nível de departamento ou curso, não de instituições como um todo, e é a estas que os recursos serão distribuídos. São, também, um processo político. Será que o MEC terá condições de enfrentar os interesses contrariados pelo corte de recursos das universidades avaliadas negativamente? Poderá ser repetido o que aconteceu em São Paulo, em que autonomia foi concedida sem a contrapartida da avaliação. Além disto, a diversidade brasileira exige que outros critérios, de “interesse social”, sejam levados em conta, no momento da avaliação de instituições tão diferentes. Conforme demonstramos em trabalhos anteriores (ver por exemplo, Zarur, 1995), o mais importante pode, em certos casos, não ser, apenas, a “excelência” de uma instituição, mas a sua inserção transformadora no meio social, cultural e político em que se situa.
Há necessidade de um efetivo controle de novas instituições (públicas e privadas) e cursos, mediante autorização para o funcionamento. A idéia de que a fiscalização pode levar à corrupção não deve servir de motivo para abandoná-la. Esta lógica implica, por exemplo, o fim da justiça, pois os juizes poderão ser corrompidos, o fim do controle de medicamentos, uma vez que os médicos do Ministério da Saúde poderão ser corrompidos o fim da inspeção de alimentos, pois os agrônomos do Ministério da Agricultura poderão ser subornados. Seu limite lógico é o fim do estado.
Não se pode deixar de eliminar, de antemão, os cursos de má qualidade, públicos e privados, por meio de uma avaliação prévia de suas condições de funcionamento. Fechar um curso, por pior que seja, é um processo doloroso. O mais sensato é impedi-los de funcionar.
O pior de todos os cenários é o de um estado omisso, procurando se livrar de suas responsabilidades com o ensino superior. Por isto, as novas regras da autonomia universitária não podem servir de pretexto para que o estado deixe de exercer, no melhor interesse social, sua função reguladora e fiscalizadora.
Só assim, o conceito de autonomia universitária não se voltará contra as instituições que deve proteger.
Documentos Usados Para a Elaboração deste Trabalho
-Câmara dos Deputados
-Emendas Apresentadas à PEC 233-A/95 e 370/96.
-Notas Taquigráficas da Comissão Especial Encarregada da PEC 233-A/95.
-Conselho Universitário da Universidade de São Paulo e Associação Brasileira de Reitores das Universidades Estaduais e Municipais- ABRUEM
Documento a respeito da alteração do Art. 207 da Constituição.
Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras – CRUB
“Carta de Goiás”. Julho de 1996.
-Bornhausen, Paulo
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