O conflito armado efetivo ou potencial tem sido parte integrante da vida cubana e a violência política transferida para a narrativa épica constrói o imaginário nacional cubano até os dias atuais. Esta narrativa estrutura um mundo simbólico que contribui para a resistência política em Cuba, pois a revolução cubana foi, antes de tudo, uma revolução cultural.
A situação geopolítica na história da ilha de Cuba é tão importante na formação da identidade nacional cubana como foi o papel da cana de açúcar na economia colonial. A situação geográfica tornou a ilha palco de uma sucessão sem fim de conflitos entre as principais potências. Mais tarde, o próprio povo cubano seria protagonista importante nos diversos conflitos armados que se sucederam ao longo de sua história.
O interesse espanhol em Cuba e, posteriormente, o norte-americano e o soviético, tinha razões geopolíticas muito claras. Um olhar no mapa, como o dos almirantes de ontem e de hoje, situa as Antilhas, das quais Cuba é a maior ilha, como chave das Américas para os europeus e interconexão entre as Américas do Norte e a do Sul. O controle de Cuba era e é indispensável para o domínio do Golfo do México e do mar das Caraíbas, com projeções que se estendem da Venezuela à Florida, Alabama, Texas e Louisiana, passando pela América Central Continental e pelo México.
Forte Espanhol – Santiago de Cuba
Foto: George Zarur
A posição geográfica fazia da ilha o grande entreposto para o qual convergiam os navios carregados de riquezas de toda a América Espanhola. Lá eram formados os comboios que iriam cruzar o Atlântico, o que naturalmente despertava o maior interesse dos piratas e corsários que infestavam o Caribe. Ao visitante de hoje chama a atenção a imponência das fortificações coloniais como as de Havana e Santiago e o incrível número de canhões antigos espalhados pela ilha. Séculos mais tarde, não por acaso, a instalação dos mísseis soviéticos em Cuba quase levou o mundo à guerra atômica.
Forte Espanhol – Baía de Santiago
Foto: George Zarur
Cuba foi a última colônia espanhola nas Américas, o que demonstra a importância a ela atribuída pela metrópole. Após nada menos de 30 anos de guerras pela independência, em 1898, os americanos entraram em seu território para substituir os espanhóis como força externa dominadora. Na guerra da independência, Theodore Roosevelt, o arauto do “big stick” no tratamento da América Latina, organizou e liderou uma força expedicionária contra os espanhóis, construindo sua fama de herói durão e imperialista, que o levou à Presidência dos Estados Unidos. Em 1901, foi aprovada a primeira constituição do País, que incluía a chamada “Emenda Platt”, que conferia aos Estados Unidos o direito de intervir na ilha com o pretexto de manter a paz. Também é desta época o direito a bases navais, como a de Guantánamo.
A república cubana caracterizava-se pela instabilidade típica das nações caribenhas e latino-americanas, durante o século XX até a revolução. Vários presidentes se sucederam no poder, chamando a atenção o nome de Gerardo Machado que como fariam, mais tarde, congêneres latino-americanos, incluindo um exemplo brasileiro muito recente, alterou a Constituição para se manter no poder por mais um mandato. Foi finalmente derrubado em 1933. Seguiu-se a ditadura do sargento Fulgencio Batista e, por fim, a revolução socialista que o derrubou em 1959.
Quartel de Moncada – Alvo do Primeiro ataque liderado por Fidel
Foto: George Zarur
A história de Cuba republicana remeteria, plenamente, ao estereótipo político de um pequeno e instável país centro-americano, não fosse a existência de uma elite intelectual que daria uma contribuição única para as artes e as letras, para a consciência da situação política do País e para a formação da identidade nacional. A história da Cuba republicana é a sucessão de períodos anárquicos ou semi-anárquicos intermediados por levantes militares e ditadores com brancos uniformes engomados resplandecentes ao sol. Tudo sob a ameaça constante da intervenção armada e supervisão paternal norte-americana (“para trazer paz e estabilidade” à ilha, segundo a emenda Platt), com seus navios e marines apoiados pela base de Guantánamo.
Assim, desde as revoltas pela independência, iniciadas em meados do século XIX, até a própria revolução socialista, Cuba viveu intensos e prolongados períodos de conflito armado. Seu maior intelectual, Jose Marti, morreu em combate, na luta pela independência. Marti tornou-se um símbolo extremamente forte, um paradigma do intelectual cubano: poeta e escritor entregou sua vida em combate pela liberdade de sua pátria. Herói romântico, de muito maior alcance do Lord Byron, devido ao seu papel na história e no imaginário de seu País. De sua autoria são so versos de Guantanamera, cantada por jovens universitários da Europa, Estados Unidos e das Américas nos anos sessenta.
José Martí
Fonte: www.HistoriadeCuba.info
Após outra guerra heróico-romântica, a luta revolucionária liderada por Fidel Castro, surgiram tentativas de remanescentes do exército de Batista de invadir a ilha (Baia dos Porcos), a crise dos mísseis e as dezenas de invasões de “bandidos”, mercenários pagos, as centenas tentativas de assassinato de Fidel Castro e atos terroristas de radicais anti-castristas. Durante os anos 70 e 80, Cuba, em nome do internacionalismo socialista, apoiou movimentos guerrilheiros na América Latina e guerras revolucionárias na África. O envolvimento cubano em Angola foi extremamente pesado do ponto de vista militar, ocasião que 30.000 cubanos sob o comando de Raul Castro derrotaram o bem armado e treinado exército sul-africano. Che Guevara morreu na Bolívia tentando exportar a revolução.
Retrato do Che- Em Cienfuegos e no Mundo
Foto: George Zarur
Assim, por um período de cerca de 150 anos, que corre de meados do século XIX até o presente, o normal na vida cubana é o conflito efetivo ou sua iminência. Atualmente, a memória da violência histórica associa-se à possibilidade sempre presente da uma invasão norte-americana.
A violência de origem política transmitiu-se para as artes e as letras, para um ideário nacional que valoriza o heroísmo e a entrega da pessoa à nação sempre ameaçada para a preservação de sua independência. Quando estive em Cuba, em 2005, o heroísmo guerreiro era cantado em prosa e verso. Fidel Castro continuava a ir à televisão com o seu uniforme de guerrilheiro e era e é tratado como “Comandante en Jefe“, raramente como “Presidente“. A retórica guerreira se sobrepunha à retórica política
Construiu-se uma estética particular de resistência política e militar que remete a raízes medievais espanholas. A história romântico-heróica de Che Guevara e de seu martírio é repetidamente cantada em prosa e verso, como na bela canção Hasta Siempre Comandante, de autoria de Carlos Puebla:
“Aqui se quedaba clara
La intrañable transparencia
De tu querida presencia
Comandante Che Guevara.”
Carlos Puebla
A famosa fotografia de Guevara com boina, por Korda, está reproduzida em parede inteira do prédio do Ministério do Interior, na Plaza de la Revolución e em todo lugar de Cuba e do mundo. Sua vida e história são cantadas como se cantava os cavaleiros medievais, os heróis que desapareciam, mas que nunca morriam como um El Cid do presente. Assim, a mesma canção música Hasta Siempre Comandanterepete o tema de dezenas de outras:
“dice el pueblo que es mentira que hayas muerto”.
Quando se reconhece a morte do herói, faz-se como na canção de Pablo Milanez:
“… y que há tumbado estrellas em mil noches de lluvias coloridas eres tu”.
O padrão épico ibérico é reiterado no cotidiano, quando, por exemplo, em evento cívico que assisti, repentistas cantavam à maneira flamenca, os feitos dos guerreiros revolucionários. Era um dueto, um homem e uma mulher, que não estariam fora de lugar na Espanha do século XVI cantando a vitória sobre os mouros, embora com métrica e entonação de raiz moura. De maneira caracteristicamente dramática exaltavam os feitos de cinco cubanos presos em Miami e das agressões recentes contra Cuba, incluindo a proteção americana ao terrorista Posada Carriles, que explodiu um avião lotado de passageiros da Companhia Cubana de Aviacion.
Outra manifestação que chama a atenção no cotidiano cubano que usa a arte como forma de expressão política é o desafio apresentado em um “outdoor” de grandes dimensões colocado em frente à legação diplomática suíça, que representa os interesses norte-americanos no País. Situado em pleno Malecon, a orla da cidade de Havana, o enorme cartaz está voltado para o mar, para o lado de onde poderão desembarcar os “marines”. Sua mensagem que resume desafio militar e orgulho nacional ridicularizam o inimigo, como bem demonstra a fotografia abaixo
Foto: George Zarur
A sobrevivência de formas estéticas medievais, como tantas encontradas no Brasil e pela América Latina, remetem à tese de Richard Morse (em seu livro “O Espelho de Próspero”) de que a América Latina seria bem caracterizada como o “Extremo Ocidente”, isto é, a Europa pré-reforma transplantada para o Novo Mundo, guardando valores de solidariedade e comunitários. Vista como um conflito cultural, a revolução cubana seria uma manifestação da tradição latino-americana em confronto com a civilização americana, tributária radical da Europa da reforma. De outra forma, o socialismo cubano é uma configuração radical de um modelo republicano, cujo ingrediente nacionalista é fortíssimo.
Muitos jovens cubanos vivem o imaginário nacional de sagas heróico-históricas cotidianas, como a de Che Guevara. Darth Vader, Lucky Skywalker ou Harry Potter não são importantes. O imaginário popular – construído pelos meios de comunicação de massa – compreende poucas alternativas que escapem à temática heróico-nacionalista. Importantes exceções na televisão são as novelas brasileiras ou mexicanas que resgatam tramas da vida privada. O restante do tempo da televisão é preenchido por noticiários que enfatizam eventos cívicos, desenhos animados, entrevistas e longas horas de televisão educacional, onde se complementa o que se aprende na escola, com assuntos que vão do marxismo à matemática. Um gigantesco “telecurso”.
Os longos discursos e palestras de Fidel, transmitidos por quase cinqüenta anos, eram presença constante nos meios de comunicação. Fidel fazia parte do cotidiano mediático dos cubanos, como alguém da família, que, pela televisão, entrava na sala e conversava com o povo, expondo sua análise e as soluções que visualiza para os problemas nacionais. Enganam-se os que supõem que o tempo tomado pelos discursos de Fidel (por vezes de várias horas) representasse um definitivo obstáculo à comunicação, pois os cubanos aprenderam a ouvi-lo com interesse. Na cidade de Trinidad de Cuba, em dia de intenso calor, o antropólogo autor deste artigo caminhava pelas ruas quando registrou, ouvindo pelas janelas abertas que, em 18 casas, nove tinham suas televisões sintonizadas em um Canal que transmitia análises políticas del comandante sobre a situação política de outros países da América Central. As pessoas das outras nove casas assistiam a uma novela mexicana. Por isto, o afastamento de Fidel da tela de TV representa uma grave ruptura na normalidade do mundo para o cubano médio. O simples fato de não vê-lo na televisão, por horas seguidas, consiste em uma séria mudança de rotina.
Almeias do Forte da Bahia de Santiago
Assim é que a revolução e Fidel estão no centro da atual identidade nacional cubana, mas respondendo ao padrão da velha tradição épica espanhola. Tal enraizamento explica, em larga medida, a resistência do sistema político às pressões externas. Criou-se um mundo emotivo próprio a partir de valores nacionais identificados com as lutas pela independência e com a revolução socialista, associadas a uma real e assustadora ameaça externa. No centro desse mundo está o ethos épico de uma cultura política, com raízes que remontam a El Cid e à reconquista ibérica e passam por atores históricos como Martí, Guevara e Fidel. Há uma transposição e superposição de diferentes tempos históricos, culminando no atual. O denominador comum entre esses tempos é a bravura de indivíduos e de todo um povo na defesa de sua liberdade. Tais valores são reiterados no cotidiano dos meios de comunicação de massa, na cultura popular e na escola.
É comum que países tenham sua identidade associada a vultos heróicos e a seu papel histórico, mas, em Cuba, a população vive de forma permanente, um enredo dramático do qual é ator fundamental. O conflito para a defesa da nação frente a inimigos superlativamente poderosos está e, por certo, sempre esteve, no âmago da identidade nacional cubana.
Cuba vive pronta para uma invasão americana a qualquer instante. Em cada bairro existe, pelo menos, um comitê de defesa da revolução (CDR) para mobilizar a população civil treinada e motivada, a partir dos dez anos de idade. O experiente e ideológico exército cubano prepara-se para infligir perdas aos invasores que, segundo o cálculo de Fidel Castro, apresentado em uma de suas repetidas aparições televisivas, seriam “cem vezes maiores do que no Iraque”. Embora seja este um tema que, evidentemente, causa mal estar e medo, muitos cubanos afirmam que lutarão casa a casa, em havendo uma invasão estrangeira. O exército e a população cubana treinada para a guerra situam-se, assim, como uma “força de dissuasão” (force de frappe, na expressão de De Gaulle, ao justificar a bomba atômica francesa). A ameaça externa representa fator primeiro na coesão do povo e de sobrevivência do sistema político cubano.
Comitê Revolucionário – sede dos milicianos de bairro – Santiago
Foto George Zarur
Paradoxalmente, Cuba vê-se protegida contra devastadores ataques aéreos, como os que os Estados Unidos usaram no Iraque, devido aos maiores inimigos do seu regime político, os cubanos de Miami. Enquanto estes, certamente, gostariam de invasões por terra contra o território cubano, e já patrocinaram diversos desembarques militares na ilha, não querem que seu próprio povo seja massacrado, incluindo parentes e amigos que habitam o País. Seu peso político nos Estados Unidos, não apenas influencia a política exterior americana opondo-a ao regime político cubano, como ainda, seleciona o tipo de intervenção militar que se deve ou não utilizar para derrubá-lo.
Em Cuba, ficaria bem mais difícil classificar como “insurgente” a população civil assassinada durante o emprego de bombardeios de áreas urbanas, como ocorreu no Iraque. Os latino-americanos, a maior “minoria étnica” dos Estados Unidos, (uma população maior do que a negra e menor, apenas, do que a “branca”) têm sido representados, ultimamente, em filmes e seriados de TV, como empregados domésticos em potencial. Já se pode identificar o papel socialmente reconhecido de uma empregada mexicana chamada “Maria” nas casas afluentes da Califórnia. As “marias” latino-americanas trabalham e vivem em casas americanas e outras moram em suas próprias casas como norte-americanas. Embora muitos latinos sejam migrantes clandestinos, por vezes caçados por patrulhas de cowboys, quando tentam cruzar a fronteira do México, vão se tornando uma minoria eleitoralmente relevante, ainda que desorganizada. Autores como Samuel Huntington os consideram um grave perigo para identidade norte-americana. Porém, os cubanos de Miami principalmente a primeira leva de migrantes, empresários e profissionais, que chegaram trazendo capacidade empresarial, preparo técnico e, muitas vezes, capitais, são um setor muito bem sucedido nos Estados Unidos e, regionalmente, na Florida, o que protege a população ilhéu de um holocausto.
Hoje, à diferença do que ocorria há algumas décadas, quando o “big stick” de Theodore Roosevelt alimentava o orgulho de domínio sobre “raças inferiores” ao Sul do Rio Grande, a forte presença latina na sociedade norte-americana matiza a agressividade potencial dos Estados Unidos contra Cuba e outros países da região.
A ameaça militar norte-americana é do que necessitava o enredo da narrativa épica do nacionalismo cubano para a preservação do regime socialista na ilha. Mas, se os Estados Unidos vêem-se de mãos atadas no uso de maciços meios militares contra Cuba, têm utilizado o bloqueio econômico para tentar destruir o sistema político do País. Para piorar a ameaça, os Estados Unidos deixam claro que tais medidas econômicas são tomadas como atos de guerra. A recente lei Helms-Burton aprovada durante o governo Clinton proíbe empresas norte-americanas de fazer negócios com Cuba, com a justificativa de que “Cuba tomou propriedades americanas”, o que pressupõe que as medidas preconizadas na lei e outras a serem tomadas têm como objetivo maior a retomada das propriedades desapropriadas e sua devolução aos seus antigos donos. A aprovação da lei com tal justificativa foi considerada por muitos cubanos como mais uma ameaça física ao povo da ilha.
Por isto, enquanto os Estados Unidos continuarem a representar uma ameaça terrível e real, o povo de Cuba continuará a se preparar para repetir o scriptdramático elaborado ao longo de uma história de muitos séculos, que remonta às lutas ibéricas da Idade Média.
Outros artigos de George Zarur sobre Cuba:
A Economia Política do Emprego, do Bem Estar e da Produtividade na Ilha de Cuba
Nação e Multiculturalismo em Cuba: Uma comparação com o Brasil e com os Estados Unidos.