A Menina Árabe e os Nossos Poetas : Um ensaio sobre o multiculturalismo e o Brasil

(Trabalho publicado, pela primeira vez, no ano 2000)

I – A Menina Árabe

As implicações políticas do relativismo cultural, lançado nos anos 30, por antropólogos da cepa boasiana ainda estão inexploradas pela história das idéias. Em autores como Ruth Benedict, Margareth Mead e vários outros [1], é clara a idéia de que todas as culturas humanas têm igual valor e que no seu contexto histórico, sociológico, político e geográfico, fazem sempre sentido. O trabalho do antropólogo é o de descobrir este sentido.

O filósofo e cientista político Charles Taylor [2] identifica dois tipos de liberalismo, a partir do exemplo canadense e da relação entre os “quebecois” e os canadenses de língua inglesa.

O primeiro tipo de liberalismo assume que o estado deva ser neutro, que simplesmente forneça os meios para que os indivíduos desenvolvam suas potencialidades. Esta forma de estado não teria projetos culturais de nenhum tipo, a não ser a garantia da segurança física e da ordem social. O sistema jurídico asseguraria os direitos iguais. O estado colocaria sua ênfase no processo de igualdade formal, ao invés de definir-se por um projeto cultural.

No segundo tipo, o estado teria objetivos culturais definidos e estaria comprometido com a sobrevivência ou com a construção de uma nação, cultura, religião, ou ainda, de um conjunto de nações, culturas ou religiões, não apenas apoiadas em critérios étnicos, mas também, no de gênero.

A relação (que Taylor evita) com o liberalismo ou com o neoliberalismo econômico é evidente. O “estado 1” asseguraria a liberdade para os atores sociais (ou “agentes econômicos”). Já o “estado 2” seria um pouco mais, embora não muito, intervencionista. Este estado que abriga a diversidade cultural seria, a nosso ver, de forma especial na cultura norte-americana, uma transformação do liberalismo político tradicional devido, em parte, ao transbordamento de idéias antropológicas da academia para a sociedade.

Outro desenvolvimento relacionado que, possivelmente, nada teve, em sua origem, com o relativismo antropológico, mas que marcou profundamente o pensamento social contemporâneo resultou dos trabalhos de ativistas dos movimentos de descolonização dos anos 50. De singular importância, neste particular, foi o livro de Frantz Fanon, “Les Damnés de la Terre”.

Para Fanon, os colonizados passam a ver-se com os olhos do colonizador, assumindo, no seu auto julgamento, o racismo associado ao exótico e ao bárbaro. São levados, por isto, a considerar-se inferiores e este sentimento torna-se um fator essencial no processo de dominação. Passam a aceitar e justificar sua situação. A destruição de sua auto-estima não é uma conseqüência, mas uma condição e parte intrínseca do processo de dominação colonial. A pior forma de dominação está na percepção que os povos colonizados têm de si mesmos. Por isto, a importância atribuída a projetos culturais de “construção da nação” pelos novos estados surgidos do processo de descolonização.

Fonte importante para a análise do processo de colonização é o estudo da ideologia da dominação, através da elaboração de formas diferentes do “exótico”, como demonstrou Edward Said, em seu belo livro “Orientalism”. A tese de Said torna óbvia a importância de projetos culturais para os dominados.

O discurso democrático norte-americano está, hoje, associado ao multiculturalismo, não apenas étnico, mas também de gênero e de outras categorias sociais menos visíveis. Embora esteja influenciando o mundo inteiro, é marcante o contraste com a retórica nacional de outros países.

Um bom exemplo é o caso da menina árabe.

Na França houve, recentemente,um conflito a respeito da roupa tradicional das meninas árabes na escola. Exigia-se que usassem o uniforme escolar e não a roupa que a tradição islâmica estabelece para as mulheres. A igualdade originária da revolução francesa implica, dentre outros hábitos, o uso do uniforme escolar. A justificativa mais comum para seu uso é a de que todos ficam iguais na escola, desaparecendo as diferenças de riqueza expressas nas vestes.

Não resta dúvida de que o reconhecimento da diferença exprime maior respeito e tolerância. Não há, entretanto, nada mais padronizado, “estandardizado”, do que a vida norte-americana, onde a diferença é severamente punida na prática cotidiana: as crianças árabes, negras ou latinas, exclusivamente em função de sua identificação étnica, com ou sem fardamento escolar, brincarão somente com crianças árabes, negras ou latinas. Já na França, embora o racismo esteja em crescimento, a possibilidade de diálogo entre pessoas de origens diversas é maior, como demonstra a elevada taxa de casamentos interétnicos. A preocupação do diretor da escola, na defesa do uniforme e da “igualdade republicana” é a de fazer com que todas as crianças brinquem com as demais. Que todas partilhem igualmente, no futuro, as oportunidades econômicas e políticas oferecidas pelo País. A defesa do estado laico e da escola pública contra critérios religiosos na formação da personalidade infantil.

Esta comparação é altamente ilustrativa, pois o respeito (teórico) à diferença, nos Estados Unidos, funciona, freqüentemente, como discurso para encobrir a segregação e, mal ou bem, a França é uma sociedade muito mais igual do que os Estados Unidos, quando são considerados aspectos comoa assistência estatal à saúde, por exemplo.

Questão política crucial é, portanto, a da construção de um estado onde o respeito pela diferença esteja associado a uma efetiva política de superação da desigualdade social. Em outros termos, como fazer para que a menina árabe possa se vestir de acordo com os ditames do Corão e, ao mesmo tempo, brincar com as demais? E quando adulta trabalhar, em igualdade de condições com as demais, vestida da forma prevista em sua religião. Que diferenças culturais não ofereçam as razões para a exploração ou marginalização de seres humanos; que, se respeitem os xamans, mas que sejam aplicadas vacinas e remédios modernos; que se venere a tradição oral de um povo, mas que todos saibam ler e escrever.

O sistema norte-americano de quotas étnicas, em universidades e empregos, não é o melhor caminho para se atingir este fim, pois enfatiza as diferenças sociais internas a cada grupo étnico e a própria diferenciação entre grupos étnicos aumentando, na prática, a sua distância.

Uma política de “oportunidades iguais”, tendo como fundamento um sistema de quotas, pode aparentar certo sucesso quando a economia está em expansão contínua e acelerada, como nos Estados Unidos, na última década. A intensa demanda de mão de obra, por um longo período, é mais importante para o sucesso temporário de uma política de “oportunidades iguais” do que normas legais que atingem, efetivamente, uma parcela muito reduzida do público alvo. Mesmo assim, a explosão de revoltas étnicas, as estatísticas étnicas das prisões e da aplicação da pena de morte, bem como, as taxas de desemprego entre negros são sintomas de que as coisas não andam, exatamente, bem.

A primeira recessão continuada trará conseqüências, as mais sérias, para os “não brancos”, nos Estados Unidos. Afinal, como dizem os negros norte-americanos, sobre sua situação no mercado de trabalho: “the last to be hired, the first to be fired”.

Hoje, a segregação continua, de muitas formas, nos Estados Unidos, e os negros continuam a viver em seus guetos, embora o País tenha avançado muito. A idéia de “comunidades de sangue” endogâmicas, é muito forte, profunda e tradicional na cultura norte-americana. O multiculturalismo norte-americano está associado à própria idéia de segregação. Afinal, respeitar a diferença, na visão norte-americana, não significa que se tenha que conviver com o diferente, em uma sociedade única. Pode implicar a criação de sociedades diferentes, com identidades diversas, e até a criação de nações diversas. Pode significar a indiferença com o que o possa acontecer a outros, em nome do respeito e da não interferência em culturas diversas.

Pode, ainda, representar o pretexto para se demarcar a distância frente a alguém que use roupas diferentes ou que tenha cor de pele escura, mas que viva sob as mesmas leis, na mesma sociedade, sob o mesmo estado, e cujos filhos estudem na mesma escola que as demais crianças. Aqui, o relativismo, na forma de multiculturalismo, deixa de ser uma maneira de se compreender o “outro” antropológico e passa a ser uma forma de se construir o “outro” a partir do muito próximo. Ao invés de instrumento de comunicação entre culturas torna-se um instrumento de distanciamento de grupos sociais que partilham a mesma cultura.

Os velhos racistas do Sul dos Estados Unidos tinham como motto, a frase “separated but equal” – “separados mas iguais”, um eufemismo para manter os negros segregados e desiguais. Com certa freqüência, “multiculturalismo” tornou-se uma nova maneira, agora, politicamente correta, de defesa da mesma tese. O multiculturalismo, no cotidiano norte-americano, é um discurso de armistício em uma guerra étnica que explode em conflitos localizados, como, recentemente, em Cincinatti, nos quais negros e outros grupos em desvantagem procuram, tão somente, defender-se.

A convivência harmoniosa entre os diferentes grupos étnicos, certamente representa um valor, quando assistimos a repetição de horrores étnicos pelo mundo afora. Hoje, conflitos étnicos no Oriente Médio, na África, na Europa Oriental e na Ásia são as piores tragédias enfrentadas pela humanidade. Assim, a etnicidade é algo que deve ser pensado e politicamente trabalhado com extremo cuidado.

O relativismo cultural encontra seus limites em valores absolutos relativos à vida e à dignidade humanas e à vida, em geral (no respeito pela natureza e por todos os seres vivos); no momento em que a menina árabe não puder brincar com as outras crianças, ou mesmo não puder brincar; em que não puder trabalhar ou, até, tratar-se em hospitais (como acontece devido às imposições da milícia Talibã, no Afeganistão) por ser do sexo feminino; em que não puder se casar com alguém de outra religião ou origem étnica; em que não puder, se assim desejar, vestir-se de maneira diferente ou trocar de religião.

Acima de sua identidade étnica e de gênero, de menina árabe, está sua identidade de ser humano. Os direitos inerentes a todos os seres humanos (poderia se falar em “Direito Natural”) são individuais. A própria identidade étnica transforma-se em valor moral e político apenas quando é assumida pelo indivíduo, tornando-se essencial para o seu auto-respeito e felicidade.

Tais considerações não significam o abandono do multiculturalismo como um elemento central na construção democrática. Significa, sim, o reconhecimento de que não é, isoladamente, a resposta para uma sociedade mais justa. Representa um princípio, a ser associado a vários outros.

O relativismo cultural oferece as bases epistemológicas para o conhecimento de culturas distantes e fundamenta os princípios éticos para a defesa dos chamados “povos primitivos“. Sua aplicação às sociedades modernas, regidas por estado nacionais, pela via do multiculturalismo, não é, entretanto, tão direta e imediata quanto no caso das pequenas sociedades cujo estudo construiu a antropologia clássica.

II – Em Defesa dos Poetas brasileiros

O multiculturalismo é a expressão política do relativismo cultural. O ponto de partida de todos os relativismos é a relação entre o conhecimento e o contexto social e cultural no qual foi produzido. Nas ciências sociais a maneira mais direta de estabelecer este vínculo é considerar o conhecimento como “ideologia”.[3]

Por isto é oportuno investigar como os estudos sobre etnicidade realizados por “brasilianistas” refletem as diferentes situações vividas pela política e pela academia norte-americanas. Este é um ponto relevante para a discussão da etnicidade brasileira atual, na medida em que muito da visão que os brasileiros, hoje, têm de si mesmos decorre das idéias produzidas nos Estados Unidos.

Os brasileiros vivenciam uma situação parecida com a descrita por Fannon para os povos colonizados, vendo-se por olhos norte-americanos. Por outro lado, cabem analogias entre a versão de América Latina que o latino-americanismo dissemina e o orientalismo de Edward Said.

Os primeiros brasilianistas como Donald Pierson e Charles Wagley e, no campo da história, Frank Tannembaum, ficaram muito bem impressionados com o que chamavam de “relações raciais” no Brasil, isto é com as relações entre negros e brancos. Estudaram intensivamente os índios mas, o instrumental teórico que utilizavam para estudar as populações indígenas ignorava a questão da relação entre etnias. Seus estudos entre grupos indígenas reconstituíam comunidades autônomas isoladas. A relação com a “sociedade envolvente” era filtrada pelo conceito de aculturação.

Embora estudos dos anos 30 e 40, sobre o campesinato latino-americano, como exemplos, os de Oscar Lewis e do próprio Wagley enfatizassem um exotismo simpático à América Latina e ao Brasil [4] – uma versão branda do que foi o Orientalismo para os árabes – esses anos antes, durante e imediatamente após a Segunda Guerra Mundial foram de “esquerdização” da academia norte-americana. Era um momento em que eventuais posições políticas “liberal” (no sentido norte-americano do termo) e “radical” não eram, apenas, uma concessão à liberdade acadêmica. Vivia-se a etapa histórica pós-grande depressão: a Segunda Guerra Mundial e as políticas pensadas por Lord Keynes abriram espaço para um tipo de discussão política hoje virtualmente desaparecido do meio acadêmico norte-americano.A visão da América Latina de então, respondia à política de “boa vizinhança” de Roosevelt. Carmem Miranda espalhava sua vivacidade pelos palcos americanos e, nas telas, o papagaio Zé Carioca vivia aventuras solidárias com o seu amigo, o Pato Donald.

O linchamento de negros, seguido de enforcamentos, como válvula de escape para pobreza de parte da população branca, era uma prática corriqueira, nos Estados Unidos, até os anos 30. O uso aberto da violência contra negros, intimidando-os, segregando-os e mantendo-os na pobreza, representava uma permanente agressão aos ideais democráticos e de solidariedade humana.

Nesta fase, autores como Tannembaum e Wagley iriam usar o que chamavam de sistema de “relações raciais” entre negros e brancos no Brasil, para denunciar o sistema norte-americano. De fato, não havia a menor necessidade de se fazer um ataque aberto ao sistema racial norte-americano, bastando para tanto divulgar o brasileiro. O contraste era óbvio até pelo fato corriqueiro de que aqui não se assassinava ninguém pelo fato de ser negro.

Os primeiros brasilianistas aprenderam com autores, como Euclydes da Cunha, Sylvio Romero e Gilberto Freyre que a miscigenação representava o objetivo maior do projeto nacional/ cultural brasileiro [5] . Perceberam a miscigenação como o oposto da segregação. O reconhecimento de várias categorias intermediárias de mulatos e sua incorporação à ordem social eram considerados valores civilizatórios positivos. Nem por isto deixaram de apontar a existência de preconceito e de fortes atitudes contra negros.

Esses brasilianistas incorporaram ao seu discurso o projeto cultural brasileiro daquele período, como uma forma de “pensamento utópico”, no sentido mannheiniano, isto é, como um instrumento para criticar sua própria sociedade.

Esta fase do latino-americanismo e, especialmente do brazilianismo, iria se encerrar com o macartismo e o terror ideológico instaurado no meio intelectual e artístico dos Estados Unidos. [6]

Após o macartismo, com o recrudescimento da guerra fria e superada a perplexidade da guerra do Vietnam, a progressiva consciência norte-americana de seu papel hegemônico afetou, de forma definitiva, o pensamento social e, por decorrência, o latino-americanismo. Da denúncia da situação “racial” norte-americana passou-se ao seu ocultamento ou à sua apologia. Os estudos latino-americanos e o brazilianismo tiveram um papel relevante neste processo, agravado pelo fato de que o continente era povoado por sangrentas ditaduras militares (apoiadas ou criadas pelos Estados Unidos).

Neste momento, os colonizados passaram a desempenhar, dentre suas múltiplas funções, a de servir, no seu papel clássico, de exemplos de barbárie para os colonizadores, de vestir a máscara de Caliban.

O mais ilustrativo e marcante exemplo dessa mudança de foco é o livro de Thomas Skidmore, “O Preto no Branco” ·. Em apenas três páginas reduz a nada, a família, a igreja, os intelectuais, o sistema político e literatura do Brasil no século passado. Uma boa imagem é a de um advogado “no tribunal da história,” atacando o Brasil, para defender os Estados Unidos. No final procura demonstrar que a situação dos negros, na década e 70, nos Estados Unidos “era melhor do que no Brasil”.

Em defesa dos poetas brasileiros, deve ser lembrado que a poesia romântica brasileira do século dezenove não era, apenas, um reflexo de segunda classe da poesia européia, como quer Skidmore. De fato, os poetas brasileiros integravam um amplo movimento cultural. Era poesia de primeira grandeza e é um insulto fazer pouco dos poetas amados por um povo.

Não fosse seu impacto no pensamento brasileiro, o livro de Skidmore não deveria merecer maior atenção, pois despreza a literatura brasileira do tempo em que Machado de Assis publicava suas obras primas. Explica o “sucesso” [7] de “Os Sertões” por dois motivos. O primeiro é a derrota do exército que, na época, seria uma instituição pouco popular entre intelectuais. O outro é o contraste entre o ideal da nacionalidade e suas condições reais, “sem fazer o leitor ficar desconfortável pelo questionamento de todas as suas premissas sociais básicas.” Este jogo de jargão é, no fundo, o mesmo que dizer que Shakespeare “fez sucesso”, por que Hamlet exibia os podres das casas reais para a burguesia, ou por que MacBeth justificava a intervenção inglesa na Escócia, sem trazer sentimentos de culpa aos ingleses. A explicação para o “sucesso” de ambos, de Shakespeare e Euclides da Cunha, é mesma para a da tragédia grega, da Ilíada, da Odisséia ou da escultura africana ou polinésia exposta no Metropolitan Museum em Nova York. Todo tem a ver com os chamados “universais da cultura humana.” [8]

O foco do livro de Skidmore são as relações raciais no Brasil. Cabe indagar porque um livro sobre relações raciais é aberto com um ataque feroz à identidade cultural de um país, inclusive à sua estrutura de família, à sua igreja e a seus poetas? A resposta é que o que se questiona no livro é a própria identidade brasileira expressa em seu projeto de nação. Transparece a idéia de que seria intolerável que um país qualquer, especialmente da América Latina, pudesse se orgulhar de alguma forma de identidade que o tornasse superior aos Estados Unidos.

Na obra foi introduzida a tese do “branqueamento”, hoje muito popular na discussão da etnicidade no Brasil. Nela, a miscigenação resultaria de uma conspiração das elites no sentido de “branquear” o País, isto é, de fazer os negros desaparecem, como se a mestiçagem fosse uma forma sutil de genocídio. Para tanto, Skidmore situa o desconhecido Batista de Lacerda, diretor do Museu Nacional no começo do século, como um importante intelectual, cujas idéias seriam o exemplo acabado do pensamento social brasileiro. Isto, porque em uma reunião internacional, Batista de Lacerda defendeu o ponto de vista de que o Brasil se tornaria um País branco em um determinado número de anos, devido à miscigenação.[9]

Conforme tive a oportunidade de expor em outra ocasião [10], passaram, outros autores, em diferentes livros e artigos, a defender a tese de que o sistema brasileiro seria “pior” do que o norte-americano, pois ao discriminar-se e, ao mesmo tempo, tratar-se o negro com cordialidade, impedia-se sua organização e sua ação política. E que, ao não se reconhecer o negro como estranho ao corpo social, negava-se sua existência como etnia; que a ausência do racismo biológico, para opô-lo absolutamente ao branco, representava um mecanismo destinado a impedir sua vida autônoma; que a anulação das diferenças raciais, pela pobreza comum a negros e brancos, impedia que o negro brasileiro formasse comunidades separadas; e que a ausência de segregação residencial atrapalhava sua organização política.

Sem negar a óbvia existência de fortíssimas atitudes contra negros no Brasil, que oferecem as melhores razões aos movimentos negros, não há dúvida que muitos dos argumentos acima beiram o absurdo da classe do “quanto pior melhor”.

O “branqueamento,” proposto por Skidmore consiste em uma linha lateral do pensamento social brasileiro. O pilar da ideologia nacional é a miscigenação, da qual o branqueamento representa uma conseqüência (dentre muitas outras) e não o contrário. O problema clássico da identidade brasileira é o de um brasileiro novo racialmente (usando a categoria “raça” do início do século) e novo culturalmente. O essencial é a idéia de “civilização brasileira”, a construção da nação pela afirmação da sua diferença frente às demais, pela formação de uma nova raça mestiça, como pretendiam Sylvio Romero e Euclydes da Cunha, ou de uma nova etnia morena, como queria, recentemente, Darcy Ribeiro.

Teses como a da exagerada importância do branqueamento resultam de uma formidável confusão conceitual, que dramatiza as dificuldades semânticas de comunicação entre culturas. A miscigenação continua a ser um objetivo nacional, mas “branquear”, no Brasil, não significa “limpar o sangue”, como significaria nos Estados Unidos, isto é, diluir o sangue negro, a uma quantidade tão pequena que o torne insignificante. “Branqueamento” no Brasil, significa “amarronzamento”, mestiçagem, resultando em uma cor de pele como a do atual Presidente da República; quer dizer “entrar na classe média”, além de deixar de ser classificado com a aparência de “negro”.

De qualquer forma, a análise do multiculturalismo, no Brasil é marcada pela imagem que dele se faz nas universidades americanas. Mais do que isso, reflete a influência cultural mais ampla da cultura americana, as idéias do que deve ser uma boa sociedade.

III – O Jus Sanguini e a etnicidade no Brasil [11]

No passado, a genética justificou diferentes hierarquias sociais . Acreditava-se que a nobreza era hereditária, por que a honra era transferida pelo sangue. A necessidade da pureza aristocrática justificava a endogamia no âmbito da aristocracia. Por outro lado, a mistura dos sangues nobre e plebeu era, por definição, ilegítima. Daí, o retrato literário, por Shakespeare, de Edmund, filho bastardo do Earl de Gloucester figura perversa sempre pronta às piores maldades, em contraste com a nobreza de espírito de Edgard, o filho legítimo[12]. A ilegitimidade estava associada com um caráter deformado.

Posteriormente essas relações seriam projetadas para inteiras comunidades marcadas pela impureza. Associada à idéia de raça, a de “pureza” seria central ao autoconceito formulado pela raça branca e a de “impureza” ao atribuído à raça negra. Este sistema lembra o sistema de castas, como analisado por Louis Dumont, em seu ensaio Homo Hierachicus .

O Jus sanguini iria também ser a base do ordenamento jurídico de inteiras nacionalidades como, até três anos atrás, era caso da Alemanha. Até então a Constituição alemã definia como “alemão” todo aquele que era filho de alemães. Era uma expressão da idéia de “pureza de sangue”, associada a atitudes ambíguas em relação aos “não alemães”. A situação era complicada pela presença de milhões de trabalhadores turcos no País. Muitos desses, hipocritamente chamados de “trabalhadores hóspedes” (gastarbeiter) , tinham nascido na Alemanha e seus pais, também, tinham nascido na Alemanha. A ausência do jus solis característico das sociedades democráticas modernas, impedia a concessão dos direitos de cidadania a pessoas nascidas há cinqüenta anos, ou mais.

Há uma evidente relação da idéia de sangue com o nazismo alemão e suas políticas genocidas. Além disto fica sempre pendente a questão da extraterritorialidade, da cidadania dos descendentes de alemães de fora da Alemanha. A presença de “alemães” fora da Alemanha, foi o principal argumento de Hitler para a invasão dos Sudetos, da Polônia e de várias outras regiões da Europa Oriental. O sistema ideológico que encontra sua expressão jurídica no Jus sanguini fundamenta, hoje, guerras étnicas como é o caso do Oriente Médio e da África.

A retirada do jus sanguini da Constituição alemã encontrou severa resistência interna. Foi conseqüência do papel central da Alemanha na Comunidade Européia, uma concessão que foi obrigada a realizar.

Os Estados Unidos, país de imigrantes, sempre adotaram o jus solis na definição da nacionalidade, em seu sentido mais amplo, mas a discriminação e a segregação de fato, derivada do princípio do sangue, continuam a ordenar a vida cotidiana. A discriminação começa pelo próprio sistema legal quando este se apóia no jus sanguini, não apenas, enquanto fato jurídico, mas sobretudo como princípio cultural. Direitos civis iguais, cidadania plena, no plano jurídico dos estados federados são um conquista historicamente recente. A aplicação desses direitos ainda faz toda a diferença e o jus sanguini, na sua versão consuetudinária, continua hierarquizando a sociedade americana. A idéia de “impureza” implica atitudes de repugnância, evitação, nojo e violência de parte de brancos, em relação a negros e, em menor grau a latinos. Inversamente, negros e latinos assumem o “racismo reativo”, para defender-se.

O princípio do jus sanguini é sentido, nos Estados Unidos, na comum referência aos índios como uma “nação”, aos negros como outra e assim, por diante. O conceito de “nação” está associado a etnias racialmente definidas, não necessariamente se superpondo ao estado.

A diferença cultural, então, vem sendo construída, de forma reativa pelos negros, após sua herança africana ter desaparecido. Assim, o dialeto negro é, freqüentemente, ininteligível pelos brancos. Traduções inglesas do Corão são lidas na comunidade negra e uma recente manifestação de muçulmanos negros em Washington reuniu perto de um milhão de homens (as mulheres não participaram).

O sistema norte-americano é “racial”. A biologia popular[13] transforma-se em lei, de maneira que, por exemplo, no estado de Mississipi, quem tiver 1/8 de “sangue” negro é considerado “negro”. Em outros estados a regra é de ¼. Ser negro, nos Estados Unidos é, portanto, uma questão de “contágio” genealógico, o que leva a que existam pessoas louras, de olhos azuis, com aparência nórdica, legal e socialmente classificadas como negras. Há, desta forma, uma oposição absoluta entre negros e brancos, sendo o mulato, a classe intermediária, uma categoria sociologicamente inoperante. O jus sanguinis, aplicado ao sistema de classificação étnica, segmenta internamente a sociedade.

A classificação étnica brasileira é diversa pois resulta da aparência dos indivíduos.

Uma pessoa clara, com traços afilados, jamais será classificada como “negra”, mesmo tendo algum ancestral negro muito próximo. Não existe, na cultura brasileira tradicional, a oposição absoluta entre negros e brancos, mas um continuum que vai do branco louro, ao chamado “negro puro”, passando por dezenas de categorias intermediárias, como mulato claro, mulato escuro, mulato sarará, e muitas outras. A cor da pele, isoladamente, só classifica alguém como negro se a pessoa for muito escura. Traços como a forma do nariz, dos lábios, e o tipo de cabelo são igualmente importantes.

Outro aspecto na classificação étnica brasileira é o da posição social gerando o que se denominou de “raça social”. Quanto mais elevada o status de alguém, maior a tendência a ser considerado como “branco”. Inversamente, quanto mais pobre, mal vestida e menos educada a pessoa, maior a tendência a ser percebida como mulata ou negra. Quanto mais pobre o setor considerado, maior a miscigenação. Assim, no Brasil o Jus saguini não funciona segmentando internamente a sociedade brasileira.

Tal ambigüidade na definição de categorias “raciais”, em um País onde “raça” não é uma categoria operacional reflete-se no censo da população brasileira, que considera três categorias: brancos, negros e “pardos”. Essa classificação é utilizada pelos médicos nos hospitais públicos brasileiros ao elaborar a “ficha do paciente”. Tem como critério único a tonalidade da pele. São classificados como “negros”, os de pele absolutamente negra, como brancos, os de pele absolutamente branca e como “pardos” todos os que não são cor de marfim ou de ébano. Qualquer tonalidade ligeiramente fora desses extremos, já classifica a pessoa como “parda”. Podem ser “pardos” os descendentes de negros, índios, árabes e vários povos mediterrâneos que têm a pele mais morena. Logo, “pardo” engloba todas as categorias intermediárias, que não são nem brancas nem negras. Por outro lado, o “pardo” seria a própria “etnia morena”, ou a “raça brasileira” de autores do começo do século.

No passado, em alguns dos censos de população, cabia ao entrevistador olhar para o entrevistado e anotar na ficha se era “branco”, “preto” ou “pardo”. Hoje, o critério é o de auto-identificação. O sistema é ambíguo e as classificações variáveis. Com exceção dos absolutamente “negros”, muitos “pardos” se autoclassificam e são classificados pelos que o conhecem como “brancos”. Outros continuam a se classificar como “pardos”.

Segundo os dados de pesquisa da UFMG, mais de 60% da população brasileira tida como “branca” são descendentes de índias e negras e de homens portugueses [14]. Pelo critério norte-americano, esta população seria “índia” ou “negra”, conforme a proximidade maior ou menor de um ou outro ancestral. Dada a dificuldade de se aferir esta proximidade, a categoria “mestiço” volta a se impor, isto é, a mestiçagem é tão grande, que mesmo por um critério genealógico, a oposição absoluta é impossível. Por outro lado, segundo este critério, praticamente toda a população brasileira, seria “não branca”, com exceção de alguns pequenos bolsões.

Para os que pretendem reproduzir o modelo norte-americano tal ambigüidade é um problema grave: o que é um negro e o que é um índio no Brasil?

Darcy Ribeiro escreveu, em 1957, seu artigo “Línguas e Culturas Indígenas do Brasil”, onde, dentre outros fundamentos da antropologia e da política indigenista brasileiras, formula o conceito de “índio”, até hoje usado pela legislação.

Sua preocupação foi a de criar um conceito que funcionasse no plano jurídico, para a garantia de certos direitos a uma parcela restrita população. Para Ribeiro, “Índio” é um indivíduo reconhecido como participante de uma comunidade de origem pré-colombiana e considerado como tal pela sociedade envolvente. A Associação Brasileira de Antropologia sugeriu, há pouco, uma variação deste conceito, na qual é, não obstante, preservada a idéia central de um vínculo com uma comunidade dita “indígena”.

A referência mais importante é, portanto, a relação de um indivíduo com uma dada comunidade. Ficam fora da definição, os milhões de descendentes de índios, com fisionomia indígena. Muitos desses, sobretudo os que vivem na Amazônia, sofrem o peso maior do preconceito, como os negros no restante do Brasil.

Por isto os termos “índio” e “negro” denotam categorias em planos diversos no discurso político atual. O correspondente ao “índio”, àquele que faz jus à assistência estatal mais direta e tem acesso legal à terra, é o quilombola que, também, possui uma comunidade própria. Já o correspondente às pessoas classificadas como “negras” são os descendentes de índio, com feições indígenas, como os negros, espalhadas por todo o Brasil.

IV- O Multiculturalismo e o Projeto Cultural Brasileiro

O fato de muitos intelectuais brasileiros se verem por olhos norte-americanos traz riscos e desafios: a sociedade brasileira fica permanentemente desestabilizada cumprindo seu papel de Caliban. Fica ameaçada na sua capacidade de resistência política, na sua identidade e até na legitimidade de seu estado nacional.

Há, porém, vantagens. A crítica, ou pelo menos certo tipo de crítica não é reprimida por fórmulas hegemônicas de pensamento, como acontece nos Estados Unidos, onde é difícil o desenvolvimento do argumento, que fuja aos cânones estabelecidos.

O multiculturalismo é um princípio fundamental para a construção de uma efetiva democracia. Representa um poderoso instrumento político para categorias étnicas estigmatizadas, na sua luta por dignidade e respeito. Assim, a desestabilização que essas idéias trazem poderá, criativamente, representar um fator para o avanço democrático da sociedade brasileira. Poderá contribuir para reparar injustiças cometidas contra negros, índios e outras categorias historicamente vitimizadas.

É indispensável, entretanto, que seja adequado a duas condições.

A primeira é a questão da menina árabe: que o multiculturalismo seja combinado com outros princípios, para que não se torne uma panacéia ou, até mesmo, uma justificativa para ações moralmente inaceitáveis, empreendidas ou toleradas em nome do relativismo cultural. Os direitos (individuais) da pessoa humana estarão sempre acima dos direitos coletivos, que só farão sentido como um corolário dos primeiros. A defesa da identidade étnica, ou qualquer outra, deve contribuir para a felicidade humana, que é uma expressão dos sentimentos, das alegrias e pesares de cada pessoa.

A segunda questão é a de um projeto cultural nacional. Diferentes projetos étnicos ou regionais devem integrar um amplo projeto cultural nacional brasileiro, até mesmo para que dêem certo. Só a sua implantação trará as condições para que se crie uma convivência mais fraterna.

A questão é a de como fazer para que um único nacional projeto cultural, politicamente democrático, abranja a diversidade. Este é um desafio, não só político, como intelectual. No campo regional tem-se avançado muito. A tese de Ruben Oliven, de que o nacional, no Brasil, passa antes pelo regional, leva-nos a crer que a cultura brasileira tenha encontrado soluções criativas para o encontro da pluralidade com a unidade.

Quanto às populações indígenas, não há dúvida que a sociedade brasileira muito tem avançado. O reconhecimento [15] de que as populações indígenas devem ter acesso à terra e o direito a viver segundo suas tradições, hoje, é parte do pensamento não só dos intelectuais, como, também, dos brasileiros nas ruas.

Para as comunidades indígenas que, mantém o ethos de sua cultura tradicional, fica assegurada a necessidade de um elevado grau de autonomia e, em alguns casos, de isolamento, não só devido à uma ética política relativista, como até, como condição para sua sobrevivência física. De fato, o multiculturalismo é, aqui, muito mais do que uma atitude de respeito a povos com costumes diversos. Não é só uma questão de tolerância frente à diversidade, o que, por si só, justificaria sua defesa.

É um posicionamento em favor da vida humana, pois as violentas pressões que se seguem ao contato entre pequenas populações indígenas isoladas e a sociedade ocidental implicam, com freqüência, seu desaparecimento físico.

Com Rondon, os irmãos Vilas-Boas, Darcy Ribeiro e outros as populações indígenas começaram a ter reconhecidas suas identidades particulares, e, desta forma, foram sendo incorporadas ao projeto cultural nacional. Este processo está tendo continuidade, agora, liderado pelos próprios índios.

Já a situação dos negros é muito mais complicada. Também sofrem o peso de atitudes estigmatizadoras e são discriminados em diferentes situações, mas não formam – ressalvada a exceção dos quilombolas – comunidades próprias, com fronteiras claramente delimitadas como os índios. Não vivem, como os negros norte-americanos, em guetos urbanos e a mestiçagem, no Brasil, continua sendo um valor maior, para a maior parte dos negros, brancos e mulatos. Além disto, a matriz africana, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, está no centro da cultura brasileira.

Neste ponto, merece destaque o papel desempenhado pelas religiões afro-brasileiras que, formando uma verdadeira religião nacional, são praticadas por pessoas das mais diferentes origens. Como demonstrou Roberto Mota[16], o negro empresta sua religião para a formação da identidade brasileira e, ao fazê-lo, deixa de tê-la como uma marca identitária só sua.

O sincretismo e, principalmente, a popularidade das religiões de origem africana são fenômenos muito brasileiros e latino-americanos. O contraste com os Estados Unidos é flagrante uma vez que, naquele País, o que resta da cultura negra são algumas formas musicais. Eric Hobsbawn, ao caracterizar o Jazz, identifica certas notas bemolizadas e formas rítmicas particulares como sendo de origem africana. E é tudo. A especificidade cultural dos guetos norte-americanos é, tipicamente, uma “construção” política recente, fundamentada em um dialeto próprio e no islamismo, além, das formas religiosas tradicionais. As diferenças culturais entre negros e brancos são construídas a partir da segregação e não há, nos Estados Unidos, uma “herança africana” marcante.

Assim, o transplante do modelo dual norte-americano, baseado no jus sanguini, encontra dois obstáculos: a ausência de comunidades concretas que lhe sirvam de base e o partilhamento da cultura afro-brasileira por toda a nação.

Qualquer direito necessita de uma clara identificação de seu sujeito. A cultura brasileira não dispõe de um conceito preciso de “negro”, o que dificulta a implantação de políticas públicas em seu favor. Daí o posicionamento de alguns, no sentido de assumir o critério norte-americano de sangue.

Algumas tentativas neste sentido seriam, apenas, ingênuas, não pudessem levar a conseqüências que seus formuladores sequer cogitam. Há, por exemplo, projetos de lei, em tramitação no Congresso Brasileiro, que obrigam o uso de documentos raciais de identidade. O legislador pode estar, sem perceber, repetindo normas jurídicas comuns na Alemanha dos anos 30 e 40, ou ainda, criando situações como as que levaram ao conflito na região dos Grandes Lagos, no centro da África, entre Tutsis e Hutus, que já custou cerca de dois milhões de vidas e um sofrimento incalculável. [17]

Um fato absolutamente relevante, no cenário norte-americano, é o aparecimento de um inovador movimento étnico. É o chamado “multirracialismo”, a valorização da mestiçagem, o abandono do Jus Sanguini. É, portanto, irônico que muitos intelectuais brasileiros insistam na importação do sistema étnico tradicional daquele País.

A Revista Newsweek, por exemplo, publicou matéria [18] assinada por Elis Coose, com o seguinte título:

“Ano 2000 verá maior erosão da barreira racial: Aumentam casamentos inter-raciais e o número de brancos que assumem suas raízes negras”.

Transcrevemos um trecho:

” ………………………A pureza racial não é tão apreciada como o foi outrora. Pessoas que se chamam de brancas admitem orgulhosamente suas raízes latinas e ameríndias. Um pequeno número chega até a reconhecer raízes ancestrais negras. E os romances inter-raciais, antigamente proibidos e condenados, florescem agora abertamente.

Entre 1960 e 1992, o número de casamentos inter-raciais aumentou mais de sete vezes. As uniões entre brancos e negros ainda não são uma coisa normal, pois correspondem a apenas 20% dos casamentos inter-raciais, mas a linha da cor quase se dissolveu entre asiáticos e brancos. Nos EUA nascem mais crianças de casais mistos brancos-japoneses do que de casais onde ambos os cônjuges são de origem japonesa. Depois, há os hispânicos que, de acordo com projeções, se tornarão o segundo maior grupo étnico-racial da América (depois dos brancos) até 2010. Os latinos podem considerar-se brancos, negros, ameríndios, asiáticos ou ilhéus do Pacífico – ou nada disso.

Na América Latina não é raro ouvir uma pessoa que não se considera negra falar de um avô que é negro. A presença de um número cada vez maior de multirraciais ou mestiços – independentemente do que eles se considerem – está obrigando os americanos a abandonar a noção de que todos podem ser enfiados num mesmo saco racial. Reconhecendo essa realidade, o Census Bureau (órgão de recenseamento dos EUA) vai permitir que as pessoas sejam incluídas em mais de uma categoria racial no recenseamento do próximo ano.

Em 1997, quando Tiger Woods revelou que, quando era adolescente, considerava-se um “cablinásio” – uma mistura de caucasiano, negro, índio e asiático – sua afirmação provocou confusão e até hostilidade. Na realidade, bem poucos negros americanos são apenas negros. ……………………………………………………………………………………………………………….

A ascensão da raça mista – ou da sociedade “café com leite” – levou algumas pessoas a prever o fim das distinções baseadas no caráter étnico, na aparência racial ou na ancestralidade. Isso parece improvável. Mesmo no Brasil, onde a miscigenação racial é aceita, e até celebrada, a distinção pela cor não desapareceu. A condição social, o status, os privilégios ainda estão ligados à pele mais clara. “

A jornalista reconhece que a situação de atendimento à saúde da população negra é calamitosa e que a segregação contra negros e latinos está aumentando em escolas públicas. Há, entretanto, uma sensível tendência recente, a se abandonar o sistema dual de classificação racial e assumir a mestiçagem como objetivo nacional. O ideal a ser alcançado é o sistema étnico brasileiro.

A intensidade do movimento é tal que obriga o governo americano a modificar as categorias raciais do censo de população, para incluir contigentes mestiços. Isto no mesmo momento em que muitos brasileiros, propõem categorias duais – para o censo de população brasileiro- associando os “pardos” aos “negros”, ao copiar o racismo clássico norte-americano.

Uma evidência da força desta nova proposta é o enredo dos filmes norte-americanos. Até há pouco, exibiam pares formados por homens negros e mulheres negras, e por homens brancos e mulheres brancas. Está crescendo, nas telas, o número de duplas “birraciais”.

É, por tudo isto, desejável que a política de diminuição de desigualdades sociais no Brasil considere os aspectos étnicos, mas que o faça no bojo de um projeto cultural nacional abrangente que busque a justiça para todos.

A etnicidade, no Brasil, não pode ser dissociada da luta contra a injustiça e a miséria que atingem, indistintamente, “negros”, “índios” e “brancos” e que só poderá ser vitoriosa pela sua união.

E não vamos esquecer a defesa dos nossos poetas!

 

[1] Meu professor orientador, em meu doutorado concluído em 1975, Charles Wagley, era um desses antropólogos americanos da «segunda geração de Franz Boas», como se auto definia.

[2] Em seu Ensaio «Multiculturalism and the Politics of Recognition», de1992.

[3] Sem que isto implique qualquer aspecto negativo, como faz o positivismo quando pretende com o uso deste conceito desqualificar formas de verdade diversas daquela que busca impor. Uma discussão aprofundada deste assunto o autor encontrará em meu livro «A Arena Científica». Autores Associados, 1984.

[4] Especialmente em seu livro «Amazon Town».

[5] Esta posição de construção de uma futura etnia mestiça brasileira é, ainda, dominante no pensamento popular brasileiro. Darcy Ribeiro, por exemplo, a retoma em seu livro O Povo Brasileiro.

[6] Foi o tempo em Charles Chaplin teve que migrar. Posso me lembrar dos relatos do próprio Charles Wagley e de Eduardo Galvão, sobre os anos 50 na Universidade de Columbia, quando estudando teoria social tinham que se referir a Karl Marx como o “velho”, de forma que os informantes policiais, espalhados pelas diversas salas de aula, não soubessem de quem falavam.

[7]-Expressão do autor.

[8] Por razões como essas, é muito sério que as versões mais recentes da história do Brasil tenham sido produzidas no exterior e é muito mais sério ainda que pesquisadores brasileiros percebam os brasilianistas, nåo como colegas estrangeiros, mas como uma espécie de “heróis culturais”.

[9] Esta rusticidade intelectual constrasta, por exemplo, com a sofisticação do trabalho de Richard Morse, outro historiador americano especializado em Brasil.

[10] Em conferência apresentada à XXXII Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em Porto Seguro, publicada pela Editora Loyola.

[11] O primeiro autor a utilizar os conceitos de «Jus Sanguini» e «Jus Solis» na discussão da segmentação antropológica da segmentação étnica foi a Prossora Giralda Seyferth, não por coincidência, em seu excelente artigo sobre a identidade alemã no Sul do Brasil. Ver Seyferth i n Zarur, 2000.

[12] Personagens de «O Rei Lear».

[13] «Biologia popular», pois cientificamente, raça é algo que não existe. O que parece ter acontecido é a sobrevivência de valores da ciência do começo século, quando «raça» era um conceito que se supunha cientificamente validado para a maioria dos estudiosos.

[14] Esta falta de ascendentes masculinos indígenas ou negros demonstra a brutalidade da relação colonial, uma vez que os homens índios e negros eram eliminados e as mulheres tomadas como botim.

[15] Ver a respeito a pesquisa de Opinião Pública, em publicação de autoria de Marcos Santilli, « Os Brasileiros e Os Índios». Senac, 2001.

[16] Ver, por exemplo seu artigo no livro “Etnia e Nação na América Latina”, por nós editado.

[17] Neste último caso, a distinção entre as duas etnias era irrelevante, no começo do presente século. A distinção foi construída a partir do momento que o colonizador alemão e depois, o Belga, impôs a separação formal entre os dois grupos, com o uso de documentos.

[18] Divulgada no Brasil, em 2 de Janeiro de 2000, em O Estado de São Paulo

2019-02-17T00:07:38-03:00By |Artigos|