A Economia Política do Emprego, Produtividade e Bem Estar na Ilha de Cuba

I – Contexto histórico e Conjuntura Econômica

Prevalece no pensamento econômico a idéia de que racionalidade se confunde com a otimização no emprego dos fatores visando a produtividade máxima. A discussão do caso da economia socialista cubana demonstra que a eficiência, definida pela otimização no emprego dos fatores, não é o objetivo mais importante desse tipo de sistema. A economia cubana busca, em primeiro lugar, o emprego de toda a população economicamente ativa e a distribuição por igual dos salários com diferenças mínimas de valor, mesmo que, para tanto, seja sacrificada a produtividade. Por isto, o estudo de Cuba, uma das poucas economias socialistas ainda existentes, reveste-se de grande relevância para o pensamento e para a teoria econômica.

Cuba produz cana, tabaco, açúcar e charutos, níquel, aço, cimento, petróleo, máquinas agrícolas e materiais de construção e possui alguma indústria voltada à produção de bens de consumo, mas é um país pequeno que importa metade do petróleo que consome. O Produto Nacional (pela paridade do poder de compra) estava na casa dos U$ 33,94 bilhões (fonte, CIA World Fact Book) em 2004 e o percapita em U$ 3.000 . A economia cubana volta a crescer: a previsão para 2005 é de um avanço de 9% do Produto Nacional. O índice de Desenvolvimento Humano do PNUD, de 2001, era o quinto da América Latina, apenas atrás da Argentina, Uruguai, Costa Rica e Chile.

Os Estados Unidos, situados a apenas 90 milhas das praias cubanas, têm, desde 1961, utilizado o bloqueio econômico para tentar destruir o sistema político do País. Além disto, durante o governo Clinton foi aprovada a lei Helms-Burton, que proíbe as empresas norte-americanas que realizem qualquer transação com Cuba.

Após o período revolucionário inicial, que trouxe uma grande desorganização e reorganização na economia, o PIB do País passou a crescer, durante 15 anos, a uma taxa anual de cerca de 5% ao ano. Até 1989, o bloqueio norte-americano (iniciado em 1961) não tinha grande impacto devido ao abastecimento da ilha pelo bloco soviético. Em 1989, o fim da União Soviética representou uma verdadeira catástrofe nacional para Cuba. Sua economia era absolutamente dependente da soviética, cujos subsídios ao País variavam de quatro a seis bilhões de dólares anuais (algo como 20 a 40% do PIB), o que fazia da ilha um fornecedor especializado de açúcar para os países da Europa de leste. Havia alguma industrialização com base em insumos importados dos demais países socialistas e a maior parte dos alimentos vinha do bloco soviético. Cessou a produção industrial, quase toda dependente de bens importados. A maior fábrica de têxteis das Américas, por exemplo, hoje desativada em Santiago de Cuba, funcionava no processamento de algodão importado da ex-União Soviética e empregava nada menos do que 14.000 pessoas. O País viu-se sem energia, a indústria sem matérias primas e as pessoas sem comida em casa. A falta de água e os “apagões” tornaram-se parte do cotidiano.

De 1989 a 1994, Cuba atravessou o chamado “período especial”, caracterizado pela crise aguda na economia. As estimativas apontam para uma queda súbita de, pelo menos, 40% do PIB. O bloqueio econômico norte-americano, ao qual se associava a maior parte dos demais países latino-americanos, impedia a importação de bens indispensáveis à vida cotidiana, que de resto, Cuba não tinha como comprar por falta de divisas.

A resposta cubana deu-se em diferentes frentes: a primeira foi a liberação da remessa de dólares pelos cubanos de Miami para os seus parentes e amigos que vivem na ilha. Outra medida foi a reativação do turismo como principal vocação econômica do País. Para tanto foi necessária alguma flexibilização na economia, que permitisse a associação com capitais europeus. Hoje, os hotéis ou são de exclusiva propriedade do estado cubano ou de propriedade e administração compartilhada com grandes redes européias.

A prestação internacional de serviços representa outro fator relevante na economia cubana. O País conquistou importantes avanços na área de pesquisa médica e possui a liderança mundial em setores como o da produção de algumas vacinas, subcampos da dermatologia, tratamento para viciados em drogas e medicina social. Esta última, organizada ao redor do “médico de família”, destaca-se na América Latina. Atualmente, há 15.000 médicos cubanos na Venezuela, cujos serviços são trocados pelo petróleo, tão necessário à vida de Cuba. Deverão ser treinados dez mil médicos de família venezuelanos nas universidades cubanas. Com os atuais preços internacionais do petróleo, a situação do País estaria, ainda, mais difícil, não fosse a relação com a Venezuela.

Cuba e Venezuela fundaram a “ALBA”, Associação Bolivariana de Livre Comércio, como reação à ALCA. Em 2004, o comércio bilateral chegou a um bilhão de dólares. Nos termos do tratado da ALBA, Cuba importará cerca de U$ 400 milhões a mais da Venezuela, por ano, a metade dos quais em bens de consumo e a outra metade em produtos intermediários para suas industrias. A Venezuela oferecerá linhas de crédito para a exportação de seus produtos. Para Cuba é um negócio de proporções elevadas. Para a Venezuela representa a possibilidade de exportar algo mais do que petróleo, criando oportunidades em diferentes setores produtivos.

Há alguns outros desenvolvimentos recentes, como a exploração conjunta com a China das grandes reservas de níquel da ilha, que devem situá-la como o mais importante fornecedor internacional desta matéria prima. Supõe-se que em dois anos, a exploração de níquel deve superar o turismo como principal fonte de divisas para País. O investimento anunciado chinês é de U$ 500 milhões Cuba poderá converter-se em um importante ator econômico setorial no mercado de níquel, como faz, por exemplo, o Chile, no mercado de Cobre. Existem, também, indícios promissores na prospecção de petróleo descoberto por companhias canadenses no litoral cubano.

A paisagem do interior do País em Abril de 2005 era de rios secos, vegetação amarelada, animais magros e lavouras perdidas, lembrando imagens do Nordeste brasileiro. Em mais da metade do território cubano não chove há, aproximadamente, dois anos. A cultura de cana de açúcar, o principal produto histórico de exportação da ilha, está extraordinariamente prejudicada. Aproveitando-se deste desastre climático, o governo optou por acelerar ações, já há algum tempo em curso, para erradicar a cana de açúcar. Fala-se na desativação de 70 usinas de açúcar. Em voltando as chuvas, a cana será, parcialmente, substituída pela produção de alimentos. Esta alteração é justificada pelos depreciados preços do açúcar ao longo de uma séria histórica mais extensa, em que pesem os bons preços recentes do produto no mercado internacional. Contam, ainda, para a decisão, a demanda por alimentos dos cubanos e dos turistas e a necessidade de “segurança alimentar” para o País.

II – Emprego, Produtividade e Bem Estar

Em Cuba não são estatizados, somente, alguns poucos negócios como restaurantes para turistas instalados em residências; pequenos aluguéis; alguns meios de transporte de passageiros, como os caminhões adaptados da cidade de Santiago, operados pelos próprios proprietários. Existem, ainda, as associações do estado com empresas estrangeiras, pequenos produtores agrícolas organizados em cooperativas e a economia informal, esta, por definição, fora do controle estatal. Entretanto, até os cavalos e as carruagens para turistas em Havana e Varadero pertencem a “Centros Eqüinos” estatais.

A economia socialista cubana tem como premissa maior o bem estar e a distribuição da riqueza. Por isto, o emprego é um direito essencial para os cubanos. Como o desemprego não deve existir, há que se inventar no que as pessoas devem trabalhar. Visto que a economia não tem condições de oferecer trabalho para todos a partir de uma lógica voltada à otimização do emprego dos fatores, há um aumento do setor serviços, além do nível requerido para o seu funcionamento ótimo. Algo como o enterrar e desenterrar de garrafas da política anticíclica, porém, sem quaisquer outras conseqüências na demanda do que sua concentração em bens de consumo de massa essenciais e pouco sofisticados, bem como no decorrente direcionamento da oferta neste sentido. Devido à escassez de capital e de insumos, o resultado desta forma especial de busca de emprego não amplia o volume da demanda global, mas incide na distribuição de renda, pois equaliza o emprego pela média. Como os salários têm variações muito pequenas de valor, embora não haja desemprego a não ser residual (a taxa é de 2,5%), o nível salarial é muito baixo e, por vezes, também, o desempenho individual requerido, o que é contrabalançado pelo elevado nível de educação da população e seus previsíveis efeitos na produtividade. Outro problema é que a partir de certo ponto, unidades marginais de mão de obra não apenas se tornam desnecessárias, como ainda podem levar a um quadro clássico de rendimentos decrescentes.

Assim, na lógica da economia cubana, ao invés de se alocar o emprego a partir das necessidades produtivas, faz-se em termos de necessidades sociais. Não há uma relação entre emprego, produtividade e mercado, como ocorreria em uma economia capitalista. O emprego existe em função do bem estar médio da população, como um direito, e se a base produtiva é baixa, assim serão, também, todos os salários, sem grandes diferenças entre os mais altos e mais baixos.

A política do governo é a de possuir várias empresas no mesmo setor, avaliadas pelo seu desempenho financeiro e social. No caso daquelas voltadas à prestação de serviços para a população cubana, prevalece o critério social, ficando o lucro em segundo plano. Nas empresas voltadas ao turismo e à exportação, a lucratividade é mais importante e há uma aproximação maior aos critérios de mercado. A avaliação do desempenho das empresas é realizada pela comparação entre aquelas do mesmo ramo. Caso uma empresa apresente resultados considerados inadequados, é reorganizada e, se após algum tempo, não reage, pode ser fechada e seus funcionários retreinados e realocados em outros postos de trabalho.

Devido à pressão por emprego, a taxa de mortalidade das empresas e instituições governamentais é baixa e a taxa de natalidade muito alta. Em um quadro, como o atual, de recuperação econômica, é fácil fundar uma instituição na área cultural, o que encontra um mercado em expansão no turismo. Algumas das mansões semidestruídas de Havana ou Santiago podem ser recuperadas para abrigar a nova instituição, e não há custos adicionais de salário, que já seriam, de qualquer maneira, pagos pelo estado às mesmas pessoas em qualquer outro lugar. Por isto, chama a atenção o número de museus especializados, que além de possuírem pequenas equipes de pesquisa, complementam os salários dos guardas com gorjetas. Podem se manter pela cobrança dos ingressos que variam de dois a cinco dólares norte-americanos.

Cuba é uma economia dual, onde circulam pesos, a moeda nacional de uso normal dos cubanos, e pesos convertibles, dinheiro adquirido pelos turistas e cubanos que os trocam por dólares, euros ou outras moedas estrangeiras. O peso convertible substitui o dólar, moeda forte de livre circulação até 2004. Há hotéis, restaurantes e lojas que só operam com pesos convertibles e outros que o fazem, apenas, com pesos normais. Em maio de 2005 o peso convertible estava valorizado em cerca de 10% acima do dólar e o euro cotado a 1,15 pesos convertibles. O dólar ainda era penalizado por uma taxa extra de 10%, o que diminui o impacto na diferenciação de renda decorrente das remessas financeiras provenientes dos Estados Unidos, recebidas apenas pelos que têm família em Miami. Estima-se que a implantação desse sistema tenha rendido cerca de 1,5 bilhão de dólares de reservas adicionais ao País.

Durante os anos oitenta, de crescimento acelerado da economia cubana, eram assegurados salários razoáveis para todos. Em 1994, no “período especial”, o peso caiu a 150 por dólar e desde então vem sendo valorizado, chegando a cerca de 25 por dólar, recentemente. Hoje o salário mínimo é de cerca de U$ 9,00 por mês, ou algo como 225 pesos mensais. A política é de progressiva valorização do peso normal até que, ao longo dos anos, atinja o nível dos pesos convertibles. Os baixos salários devem ser relativizados. Todo cubano tem direito a uma cesta básica mensal que inclui cerca de 3 kg de arroz, 1,5 kg de açúcar branco, 3kg de açúcar mascavo, uma lata de óleo, 0,5 kg de frango, 0,5 kg de peixe, um pacote de macarrão ou biscoitos, uma barra de sabão de banho, além de charutos e um pouco de café. Ao trimestre, recebe um vidro de detergente líquido. Crianças e velhos recebem um litro de leite por dia. O restante dos alimentos necessários para um padrão aceitável de alimentação deve ser adquirido nos chamados “mercados agropecuários”, onde produtores rurais associados em cooperativas vendem seus produtos. Vários itens de vestuário, sapatos, produtos de higiene, etc. podem ser demasiadamente caros e devem ser adquiridos em lojas próprias, que só vendem em pesos convertibles.

O governo aumentou seu gasto social entre 1997 e 2002, superando os 30% do Produto Interno Bruto (PIB), ou cerca de US$ 1600 por habitante. É o maior gasto social de todos os países da América Latina e do Caribe. O Panamá, o segundo maior gasto social aplica US$ 1300 por habitante, ou 25% do PIB. No Brasil, o gasto social em 2002 ficou próximo a US$ 950 por habitante, o que representam menos de 20% do PIB (Fonte: pesquisa conjunta de 2004, da CEPAL, PNUD e do Instituto Nacional de Pesquisas Econômicas de Cuba).

Tais gastos refletem-se, por exemplo, na educação. Impressionam o preparo e a informação do cubano médio nas ruas das principais cidades do País. A educação é gratuita e de excelente qualidade, devido à decisão política do governo facilitada pela elevada disponibilidade de pessoal a ser alocado ao setor serviços. Hoje, não há salas de aula, no ensino elementar, com mais de 20 alunos. Os primeiros quatro anos de estudos são de oito horas, período durante o qual as crianças recebem uma boa alimentação. A pré-escola é eficaz e amplamente disseminada. Pelas mesmas razões, quase 70% da população chega à universidade, o que representa mais uma forma de “emprego”. Para esse grande número de profissionais de nível superior, a economia não tem, entretanto, condições de oferecer atividade compatível com o treinamento profissional recebido.

Também, a assistência de saúde é boa e gratuita, merecendo destaque o sistema de médicos de família. Cada um desses profissionais atende cerca de 90 famílias. O estado procura cobrir todas as necessidades médicas da população. Os indicadores de saúde são dos mais elevados: a taxa de mortalidade infantil de Washington é quase o dobro da de Havana. Já a esperança de vida, em 2005, chegava a 74.94 anos para os homens e 79.65 para as mulheres, com uma média de 77,4 anos. Já no Brasil, a média é de 71,41 anos. A esperança de vida em Cuba é, portanto, praticamente a mesma da norte-americana, situada, para os homens, na casa de 74,89 anos e, para mulheres, na de 80,67 anos (fonte: indexmundi, Internet).

A moradia é um problema grave no País. A revolução deixou as pessoas nas casas em que moravam, mas a maior parte dos membros da elite pré-revolucionária abandonou as suas e mudou-se para Miami. Surgiu, então, uma ampla disponibilidade de mansões e residências confortáveis, que passaram a ser de propriedade estatal. Foram alugadas para diplomatas ou transformadas em prédios de uso público, como residências estudantis, museus, centros comunitários. Até 1989, início do “período especial”, houve investimentos significativos em habitação, descontinuados, desde então. O resultado da interrupção foi a atual falta de espaço para o abrigo de famílias em crescimento e para o surgimento de novas famílias, o que resulta em um excesso de pessoas convivendo sob o mesmo teto. Como os imóveis são privados, sua conservação é responsabilidade de seus proprietários. Dada a renda média baixa, é normal que imóveis residenciais não recebam a mais elementar conservação. Em Havana, há bairros inteiros em perigo de desabamento, incluindo muitas casas habitadas. A maioria das pessoas vive em imóveis de suas famílias ou alugados por um preço muito baixo, o que representa outra forma de salário indireto.

É precário o transporte urbano, sobretudo nas duas maiores cidades, Havana e Santiago. Não houve investimentos na renovação da frota e a incerteza no abastecimento de gasolina levou ao surgimento de meios de transporte alternativos, como, por exemplo, o “bicitaxi”, uma bicicleta táxi. Carros americanos dos anos quarenta e cinqüenta decoram as ruas de Havana. Em cidades planas, como Cinfuegos, circulam carruagens-ônibus de oito lugares puxados por cavalo. Em Santiago, o maior volume de transporte público é realizado por pequenos caminhões particulares superlotados. Em Havana, trafegam carretas, transformadas em ônibus, em geral, também, superlotados. O transporte público nas cidades cubanas tem, via de regra, preços baixíssimos ou simbólicos, compatíveis com a renda de seus usuários e com o serviço oferecido.

Em Cuba, a segurança pública é excelente. São raros os crimes de maior gravidade.

Embora, a educação e a saúde sejam, em larga medida, gratuitos, e os preços de aluguéis e transportes públicos sejam quase simbólicos, calcula-se que o mínimo para uma família de duas pessoas viver com simplicidade, seja algo em torno de 1200 pesos cubanos por mês, o equivalente a cerca de U$ 50,00. A enorme maioria da população está em uma situação que, no Brasil, denominaríamos de “pobreza digna”, ou seja, não chega a passar fome, mas vive com pouco mais do que o suficiente para o essencial.

É estatisticamente desprezível o número de indigentes, mas a população considerada pobre é de 14%, contrastando com os 32% do Brasil. Há, uma faixa que não consegue garantir a subsistência, só com o salário. Existe, por esta razão, alguma migração para Havana, a partir das províncias orientais, onde há poucas alternativas de complemento da renda do salário. Esses migrantes largam seus empregos, em sua localidade de origem, em busca de melhores oportunidades na capital do País. O abandono do emprego lança-os em uma espécie de “limbo” da cidadania, pois representa a desistência da participação formal na economia e na sociedade política. Hoje, existe na cidade de Havana, pelo menos um bairro inteiro habitado por pessoas vivendo esta situação, após o abandono de seus empregos na região de origem e, às vezes, na própria capital do País. Por isto, não têm salário ou cestas básicas. A escola das crianças, porém, é garantida e têm acesso ao médico de família do bairro vizinho. Ingressam na economia informal do turismo vendendo rum e charutos falsificados, realizando pequenos furtos, oferecendo seus serviços como guias turísticos não oficiais, pedindo esmolas ou atuando na prostituição.

No outro extremo há a exceção de um grupo mínimo de grandes artistas e atletas de renome internacional (talvez algo como 0,1% da população) que recebem seus estipêndios em dólares, sendo-lhes garantido um nível muito elevado de vida.

A política de distribuir o sacrifício por igual reduz a carência absoluta (“indigência”) a quase zero e generaliza a carência média. Por isto, a maior parte dos cubanos pensa em complementar seus rendimentos de salário. Há três formas principais de se obter acréscimos de renda:

1º – atividades relacionadas ao turismo: oferecem a possibilidade de ganhos absolutamente extraordinários, devido às gorjetas, consideradas um direito e solicitadas sem maiores inibições. Os ganhos com gorjetas podem ir de U$ 50,00 a U$ 1000,00 mensais, perfazendo uma diferença de, eventualmente, mais de cem vezes no orçamento doméstico. Por isto, empregos formais no setor turístico, de forma especial, os de interação direta com o turista, como os de carregador de mala de hotel, porteiro, garçom, camareira e motorista de táxi são extremamente disputados.

2º – remessas do exterior: hoje as remessas do exterior, principalmente dos Estados Unidos, representam uma importante fonte de renda para maior parte dos países latino-americanos e Cuba não foge à regra. Calcula-se em cerca de novecentos milhões de dólares, as remessas para a ilha em 2004. Valores considerados pequenos nos Estados Unidos, de U$100,00 ou U$ 200,00 podem significar uma multiplicação de dez ou vinte vezes na renda familiar. Por isto muitos dos migrantes para os Estados Unidos são, efetivamente, migrantes econômicos que partem em busca do sustento de suas famílias residentes em Cuba.

3º – corrupção: mesmo Fidel Castro na televisão pública tem reconhecido a gravidade do problema da corrupção no País. Esta é rara nos escalões superiores, mas comum nos pequenos negócios. Os milhares de gerentes de lojas, restaurantes, e prestadores de serviços, freqüentemente, encontram uma maneira de desviar parte dos recursos que administram para sua conta particular e se “associar” ao proprietário do estabelecimento, o estado. Recente levantamento da Procuradoria do Estado atingiu a cifra de 16.000 casos de corrupção.

Sem dúvida, o estado pode e deve, também no capitalismo, participar de empresas em setores estratégicos e, especialmente, naqueles que os economistas clássicos denominaram “monopólios naturais”. Exemplos de empresas estatais bem sucedidas no Brasil são os do Banco do Brasil, a Petrobrás, a Vale do Rio do Doce, as empresas geradoras e distribuidoras de energia, as de telefonia e muitas outras. Em situações como a da telefonia brasileira, a recente melhoria no sistema seria facilmente obtida por meio de uma simples quebra de monopólio, sem a necessidade de privatização gravosa do patrimônio público. Essas empresas estatais têm ou tinham como razão de sua eficiência, uma clara estrutura de carreira dotada de expressivas diferenças salariais associadas ao comprometimento de seus empregados com o sucesso da firma. Na campanha difamatória de imprensa a serviço de sua privatização, durante a década de 90, esta valorização do corpo de empregados, essencial para o sucesso de qualquer empresa, foi chamada de “corporativismo”, expressão impregnada de conotações depreciativas.

Em Cuba, a ineficiência devido aos baixos estímulos salariais pode se tornar um problema grave. Por exemplo, nos restaurantes para turistas administrados pelo estado, os garçons são prestativos e eficientes, na expectativa de gorjetas que podem multiplicar os salários. Já, o produto da cozinha desses mesmos restaurantes é, freqüentemente, lamentável, pois cozinheiros não recebem gorjetas. Uma vez que o volume de gorjetas depende da quantidade de fregueses, o melhor para todos (incluindo os turistas) seria um acordo entre garçons e cozinheiros para a partilha das gorjetas recebidas pelos primeiros.

Uma estrutura bem definida de carreira em empresas privadas ou estatais resulta de um sistema de recompensas e punições para todas as pessoas, tais como a possibilidade de ganhar um bom rendimento ou o risco de perder o emprego. É verdade que em países como o Brasil atual, a punição do trabalhador sem qualquer motivo relacionado ao seu desempenho, por meio do desemprego ou de salários baixos, é muito mais freqüente do que a recompensa, devido à estagnação da economia, as altas taxas de desemprego e a oferta abundante de trabalho. Mesmo assim, a recompensa está no horizonte do possível como condição intrínseca e premissa lógica do sistema econômico.

A demissão de empregados pouco empenhados ou ineficientes tende a ocorrer apenas em casos extremos, pois poderá representar um problema ainda maior para os gerentes e para o sistema cubano como um todo. Assim, é quase inexistente um sistema eficaz de sanções, positivas ou negativas, em toda a hierarquia do sistema produtivo.

Quando a lógica não é a produtividade, mas o emprego, não importa muito um sistema de sanções, pois o próprio conceito de “eficiência”, central à economia capitalista, muda de sentido. Assim, o sistema econômico cubano é muito eficiente para atingir seu maior objetivo, o emprego. Obviamente há um limite à troca da produtividade por emprego. Após certo ponto, vigora o prosaico paradoxo de que, só com o emprego da força de trabalho não há produção e sem produção não há emprego nem força de trabalho. Pode-se pensar em sistemas produtivos pesadamente intensivos em mão de obra, como aconteceu na China socialista dos anos sessenta, onde, na construção de barragens, substituíam-se máquinas de terraplanagem por milhares de trabalhadores carregando terra em cestas de vime. Havia a substituição de capital por trabalho. No entanto, mesmo as cestas de vime são os equipamentos utilizados por esses trabalhadores, isto é, o “fator capital” utilizado no empreendimento, e a própria barragem construída desse modo passa a agregar capital à economia.

Posto de outro forma, é logicamente absurda a relação entre emprego maior do que zero com produtividade zero, pois produtividade zero significa produção e renda iguais a zero, o que implica emprego zero. O inverso, emprego zero associado a qualquer nível de produção superior a zero, seria possível, tão somente, nas utopias tecnológicas que prevêem uma economia inteiramente gerida por máquinas, sem qualquer interferência humana.

A necessidade de recompensas na atividade econômica na busca de alguma produtividade é, portanto, reconhecida pelo próprio governo cubano, que procura substituir incentivos salariais por prêmios, como fins de semana para as famílias dos trabalhadores em hotéis estatais ou a aquisição de determinados eletrodomésticos, como aparelhos de som, por preços mais baixos. Nos tempos da União Soviética abria-se a possibilidade de se conseguir automóveis russos Moskovitch.

A falta de incentivos individuais mais efetivos relaciona-se à falta de espaço para iniciativa e inovação nas economias ultraplanejadas. O planejamento centralizado impõe restrições à iniciativa em decisões frente a situações novas ou imprevistas. Como o imprevisto é muito mais comum do que o contrário, a descentralização decisória é um importante elemento para o bom funcionamento da economia. Por exemplo, se o caminhão quebrar não se atrasará todo o processo produtivo até que o chefe do chefe do chefe do chefe seja consultado, pois, simplesmente, se contrata outro caminhão na esquina mais próxima. No planejamento centralizado a inovação torna-se mais difícil, uma vez que pressupõe métodos produtivos rotinizados. Tais arranjos podem funcionar para determinados itens de produção em massa, visto que a ênfase na rotinização é compatível com o fordismo e com as fases iniciais da implantação de uma indústria voltada para a produção em escala. Porém, o sistema econômico perde dinamismo em fases históricas subseqüentes, que superam o fordismo e passam a valorizar a inovação permanente.

Na raiz do problema situa-se a premissa do planejamento, na sua vertente ultra-racionalista centralizada, de que a realidade econômica e social pode ser tratada da mesma forma pela qual a engenharia projeta uma ponte. Como o número de variáveis é inacreditavelmente maior entre seres humanos dotados de vontade e emoção do que entre blocos de concreto, este modelo só pode funcionar mal .

Essas razões parecem ter contribuído para o insucesso da antiga União Soviética.

As limitações à produtividade representam o preço para se distribuir por igual o bem estar. A economia cubana consegue pagá-lo devido ao excelente nível de educação popular e seus reflexos favoráveis na produtividade.

III – Expectativas e a Percepção do Sistema Econômico

Os baixos salários tornam-se fontes de insatisfação quando o trabalhador não consegue o suficiente para garantir um padrão de conforto adequado para sua família; ou quando vê o turista estrangeiro gastar vinte ou quarenta vezes, em um único dia, o que, ele cubano, ganha em um dois meses de trabalho; ou ainda, quando sabe que o visitante estrangeiro possui, em casa, possui objetos de comodidade, prestígio e prazer inaccessíveis para a maior parte da população da ilha. Muito além do consumismo estilo norte-americano, caracterizado pela visita compulsiva ao shopping e pela aquisição frenética de novidades induzidas pela propaganda, há a questão de uma alimentação diversificada, do conforto obtido por meio da tecnologia e da legítima e universal vontade humana de se adornar, com roupas, sapatos, cocares, uniformes, cosméticos, pinturas corporais e de possuir bens dotados de valor simbólico ou estético.

Esse contraste entre o padrão de consumo dos cubanos e dos turistas é tolerado, principalmente, pelos mais velhos, que se lembram do período pré-revolucionário, onde campeavam a fome e a indigência. Recordam que a educação era para poucos, pois em 1959, o número de analfabetos era de 65% e hoje é de 1%; que a saúde era para poucos, pois o número total de médicos que era de 3000, hoje é de 60.000; que o sistema de aposentadorias e pensões, hoje, abrange cerca de 1.500.000 pessoas, com salários, por vezes, maiores do que o do pessoal da ativa; sabem que seu país tem um dos melhores índices de segurança pública e nele se pode, sem maior risco, a qualquer hora, andar em qualquer lugar.

Entre os jovens não há a aceitação fácil do contraste entre seu padrão de vida e o nível de renda e consumo exibido pelos turistas. Não existe a memória do período anterior à revolução e os benefícios como educação, saúde, garantia de emprego e segurança social são considerados como uma espécie de bem natural.

Devido à situação de Havana como destino turístico é nesta cidade que se encontra a maior quantidade de jovens com esta visão do mundo. Em outros locais turísticos, como Varadero e nas demais praias, os cubanos lá estão, principalmente, para trabalhar, vivendo acima da média do país, em função das gorjetas que recebem dos turistas. Cria-se aí, outro problema, pois as melhores praias e hotéis do País não são freqüentados por cubanos.

Paradoxalmente, a excelente educação que todos recebem é fonte de insatisfação. A boa educação desperta aspirações, levando as pessoas a almejarem algum tipo de conquista, nas artes, nas ciências ou nos negócios. É extremamente frustrador, após décadas de estudos e um diploma universitário, que a melhor colocação a ser conquistada seja a de motorista de táxi ou carregador de malas.

Logo, a insatisfação em Cuba está mais concentrada nas proximidades de Havana e entre os jovens, embora se dissemine por outros locais e setores. Porém, a maior parte dos “balseiros”, que arriscam sua vida em embarcações precárias em busca da costa da Flórida, é composta por pessoas de todas as idades que não conseguem sobreviver adequadamente, apenas com o seu salário.

A maioria da população da ilha, entretanto, tem confiança em que o País deverá superar os problemas econômicos e sente, na própria idéia de equidade subjacente ao sistema socialista, um motivo de afirmação da identidade nacional. Esta percepção decorre, em larga medida, da escola, onde se associa história e socialismo e é reforçada pela forte influência das freqüentes exposições e análises de Fidel Castro, transmitidas pela imprensa. Fidel entra na casa das pessoas pela TV, é ouvido e forma a opinião pública.

O apoio ao socialismo em Cuba decorre da radical distribuição de renda após a revolução e do reconhecimento de que antes da revolução, o País era um terreiro da máfia, onde os norte-americanos se liberavam de sua formação puritana. O povo cubano era uma folclórica expressão da América Latina, usada para o exercício do racismo. O estado era dominado por ditadores com uniformes brilhantes apoiados pelos Estados Unidos, de onde era controlada a maior parte da atividade econômica. Nas primeiras décadas do século XX, a Constituição Cubana incluía a chamada “emenda Platt”, que concedia aos Estados Unidos, o direito de intervenção na ilha, fim para o qual foi construída a base de Guantánamo. A emenda foi formalmente revogada na década de 30, mas continuou operando de fato. É muito forte a memória de um passado recente de humilhação nacional.

As relações com os Estados Unidos no período pós-revolucionário são lembradas, em contraponto, pelo bloqueio econômico, invasão de mercenários, ameaça militar permanente, tentativas de assassinato de Fidel Castro, atos terroristas contra o País e uma campanha de difamação sem tréguas. A pressão norte-americana é, por isto, percebida como uma tentativa de retorno à situação pré-revolucionária. Afinal, a recente lei Helms-Burton (sancionada no período Clinton), que proíbe o comércio de firmas norte-americanas com Cuba, é justificada pelo que é considerado o “roubo” de propriedades norte-americanas pelo governo cubano, donde se supõe que os Estados Unidos pretendem recuperar o que “perderam”. O socialismo, ameaçado pelo inimigo externo, está no cerne do orgulho e da afirmação nacional do povo cubano. O nacionalismo ajuda a explicar a resistência do sistema político e econômico.

A resistência política impede possíveis mudanças no sistema econômico, pois o ideal seria combinar bem estar com maior produtividade. Paradoxalmente, o desequilíbrio a favor do bem estar, por meio do sacrifício da produtividade, pode prejudicar o próprio nível de bem estar. Uma fórmula equilibrada entre os dois objetivos, implementada à medida que a economia fosse crescendo, acarretaria um maior nível de renda que, bem distribuída, representaria um melhor nível de bem estar. Esta fórmula passaria pelos seguintes fatores pelo lado da produtividade: maiores estímulos expressos em diferenças salariais; maior liberdade de iniciativa na criação de pequenas e médias empresas privadas; substituição do planejamento centralizado por um modelo mais flexível. E do lado do bem estar: substituição do emprego universal pela renda mínima para toda a população, empregada ou não; manutenção dos gastos sociais, pelo menos, nos níveis atuais; e por fim, continuidade do rígido controle da moeda para evitar situações como a brasileira, onde a política monetária é o primeiro fator conjuntural levando à fragilidade macroeconômica, à má distribuição de renda e à pobreza da população.

A liberdade é um valor fundamental para o bom desempenho da economia e para a felicidade das pessoas. Mas a liberdade pessoal só faz sentido como corolário da liberdade coletiva do povo e da soberania nação, para que a democracia não se avilte em discurso legitimador da pobreza de muitos e dos privilégios de elites internacionalizadas. Por isto, qualquer ensaio de liberalização do sistema político e da economia cubana só terá viabilidade e legitimidade se os Estados Unidos abandonarem o bloqueio econômico, a ameaça armada e a pretensão de restabelecer relações imperiais.

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2018-05-15T09:09:55-03:00By |Artigos|