A Corrente da Felicidade: juros, preços dos alimentos e inflação

(Publicado na Revista Cadernos Aslegis, nº 33, Jan-Abril, 2008 – portanto, antes da atual crise econômica, embora a questão continue atual)

O horror econômico acerca-se outra vez das casas brasileiras. Os preços internacionais dos grãos sobem vertiginosamente, na medida em que vastas parcelas da população da China e da Índia passam a se alimentar melhor. Para piorar, a conversão de grãos em combustível pode agravar, em muito, a situação alimentar e o aquecimento global cobra o seu preço.

Os biocombustíveis representam solução interessantíssima para a substituição do petróleo. Porém sua subordinação a uma lógica pura de mercado faz subir o preço dos alimentos e tira comida da mesa dos pobres. O Brasil tem terras aráveis a perder de vista e uma incidência mais do que generosa de sol, como bem mostrou o mestre Bautista Vidal. O biocombustível é diferente do petróleo, que só serve para ser petróleo ou para algumas destinações industriais, como plásticos, por exemplo. Mas a política de biocombustíveis deve ser muito cuidadosa e voltada para os interesses do povo brasileiro. Por isto, a idéia de exportá-los, desesperadamente perseguida pelos empresários e pelo governo brasileiro, deve ser pensada com cuidado.

A elevação dos preços das commodities torna mais ricos os fazendeiros e as empresas de mineração e petróleo, mas já cria crises alimentares em países como o Egito e outras nações da África. No Haiti, havia uma revolta em curso devido ao preço dos alimentos, no instante em que este artigo era escrito. Os preços internacionais dos alimentos estão produzindo uma nova contradição entre centro e periferia do capitalismo.

A Europa não tem, hoje, grandes problemas imediatos de importação de alimentos. Produz o que mais consome. Os Estados Unidos exportam alimentos. Como os países mais pobres que não produzem alimentos não têm qualquer alternativa a não ser importar, são previsíveis grandes fomes, um aumento da emigração desesperada para os países mais ricos, além de um intenso processo de radicalização política, com a piora do terrorismo e dos regimes repressivos e fundamentalistas. A transformação de alimentos em combustível levará ao fim dos excedentes agrícolas norte-americanos, o que, inevitavelmente, contribuirá para o aumento da fome em países mais pobres.

Porém, mesmo internamente aos países produtores de alimentos, vai se criando uma nova contradição. A conversão subsidiada do milho norte-americano em biocombustível leva a uma elevação dos preços dos alimentos. Subsidia os donos de automóveis e a indústria automobilística, em detrimento dos mais pobres que são duplamente penalizados, pois pagam o subsídio pela via do imposto e arcam com o preço mais elevado dos alimentos. Além do mais, a produção de energia com o uso do milho é muito ineficiente. Por enquanto, o modelo ainda atende à maior parte da população norte-americana, a classe média motorizada e absorve o excesso de produção de grãos que caracteriza a agricultura dos Estados Unidos.

Na Europa, a situação varia de país a país, mas é a custa de pesados subsídios que o Continente mantém a tão sonhada “segurança alimentar”, na verdade precária, uma vez que a produção de proteína animal depende, em larga medida, de grãos ou concentrados de proteína vegetal importados de fora da Europa. Há, evidentemente, um limite físico ao subsídio conferido pela disponibilidade de terras e pela produtividade. A agricultura européia é, em sua maior parte, gravosa. É a própria negação do chamado “livre mercado”, que os europeus em associação com os norte-americanos tentam impor ao restante do mundo.

A “segurança alimentar” européia apoiada na idéia de que os países devem produzir seus próprios alimentos é uma falácia, pois o mesmo princípio se aplica aos demais setores econômicos, à indústria de transformação ou à mineração. Assim como não se vive sem a agricultura, não se vive sem a indústria. Mesmo porque sem tratores, combustível e muita tecnologia não haveria a agricultura européia. A separação entre os setores da economia não é rígida e devem, honestamente, ser considerados como um todo. O subsídio ao setor não competitivo da economia européia, a agricultura, se amplia à indústria e aos serviços que viabilizam a agricultura.

Certos setores da agricultura européia são tão anti-econômicos, que o mais inteligente para a Europa, não fosse a identidade nacional francesa construída sobre o bucolismo de seus paysans, seria buscar laços econômicos estratégicos duradouros com países produtores de alimentos como o Brasil. Esta seria a verdadeira segurança alimentar daquela região. Mas formas de proteção à economia, que em muito lembram o velho mercantilismo encontram as mais criativas justificativas.

Em países subdesenvolvidos (desculpem a expressão antiquada, mas não existe melhor) produtores de grãos, como Brasil e Argentina, a forte demanda e os preços externos estão criando uma nova contradição entre o campo e a cidade, que deverá, cedo ou tarde, desembocar em algum resultado político relevante. As massas urbanas querem comida barata, o governo quer lhes dar pão e circo e, ao mesmo tempo, atender aos grandes interesses econômicos.

Na Argentina, novas taxas impostas pelo governo para manter alimentos no País e socializar alguns dos ganhos obtidos com a subida internacional dos preços dos grãos encontraram tal resistência que o governo Cristina Kirshner está desestabilizado. O boicote bem sucedido ao transporte de produtos agrícolas é realizado pelos próprios fazendeiros que, com isto, perdem dinheiro agora para ganhar muito mais amanhã. O desabastecimento está levando o governo a uma brutal queda de popularidade e o País à inflação de preços de alimentos que esse mesmo governo tentou evitar ao aumentar a taxação dos produtos agrícolas exportados.

No Brasil das últimas fronteiras agrícolas do mundo, há terra para muita expansão agrícola no cerrado e na Amazônia, com previsíveis prejuízos ao meio ambiente. Se os preços externos sobem, sobem os preços internos dos grãos e de seus derivados como carne e leite. As melhores terras de São Paulo continuarão um mar de cana a ser convertida em álcool combustível, cultura que se mantém rentável em função do barril de petróleo na casa dos cem dólares.

Não faltam alimentos produzidos no País para consumo dos brasileiros, mas sobem os preços internos regulados pelo mercado internacional. Os preços mais altos dos alimentos ocasionarão uma queda geral no consumo de produtos menos essenciais, com a conseqüente desaceleração do setor industrial. As pessoas passarão a se vestir pior e a não comprar eletrodomésticos e automóveis para continuar a se alimentar.

Por isto, não há nada mais absurdo do que subir a taxa de juros, como o COPOM sempre faz para “controlar a inflação”. Agora, para controlar uma inflação concentrada no preço dos alimentos. Há, ao contrário, que se adotar medidas para se baratear o preço dos alimentos. Tais medidas passam por subsídios como os generosamente concedidos por países como os Estados Unidos e, principalmente, a Europa e, a partir de certo ponto, pelo controle das exportações. Tudo muito bem dosado para não desestimular a produção.

Elevar a taxa de juros para desestimular a demanda global e, desta forma, supostamente controlar a inflação, terá o efeito de fazer as pessoas comprarem menor número de carros, geladeiras e alimentos industrializados para continuar a comer o arroz com feijão de todo o dia que aumentou de preço. Os preços dos alimentos, evidentemente, não cairão com a elevação da taxa de juros. Enquanto duram os estoques, o preço dos bens industrializados poderá cair, mantendo “a inflação sob controle”. Mais para frente, a tendência dos preços desses bens industriais é subir, devido ao menor volume de produção associada aos oligopólios que infestam a economia brasileira. Assim aconteceu no governo Fernando Henrique com uma inflação de preços administrados, como energia elétrica e petróleo, que foi diagnosticada, apenas, como “inflação” e combatida com as mais altas taxas de juros. É necessário qualificar a inflação para que se possa enfrentá-la.

A economia brasileira caracterizou-se, nas últimas décadas, por taxas de juros das mais altas do mundo associadas a taxas de inflação das mais altas do mundo. A associação entre a taxa de juros das mais altas do mundo e a inflação sob controle é restrita aos últimos poucos anos e ao atual governo. Assim, uma conclusão razoável é a de que o controle de inflação no Brasil não tem tanto a ver com a taxa de juros. A recente “boa saúde” da economia brasileira – bom crescimento do PIB e inflação sob controle – responde, sobretudo, à elevação dos preços internacionais das commodities.

Há sinais de que o ciclo de bons resultados da economia brasileira devido aos altos preços das commodities está se esgotando e de que a “corrente da felicidade” que associa altas taxas de juros, real valorizado e saldo comercial elevado está chegando ao fim. Para evitar uma ruptura traumática, como aconteceu quando Fernando Henrique atrasou a desvalorização do real para se reeleger, haveria que se abaixar, agora, a taxa de juros, o que se refletiria no câmbio com repercussões no reequilíbrio das contas externas. Aliás, o “cambio flutuante” é uma falácia, pois a taxa de câmbio depende diretamente da taxa de juros no contexto atual. A queda da taxa de juros iria repercutir, é claro, na própria taxa de juros futura, em função da queda automática da dívida pública.

Mas é certo que vão esperar o sistema estourar como aconteceu no governo FHC, por razões eleitorais e para gerar o máximo de transferência de renda para o setor financeiro. As taxas de juro e câmbio serão mantidas artificialmente elevadas enquanto for possível. A aposta do governo é para que o sistema estoure após as eleições presidenciais. Em outras palavras, a fórmula de todos os partidos no Poder é fazer durar ao máximo a corrente da felicidade, deixando sua explosão para o próximo governo. Dando certo o jogo, o sistema explode na mão do mesmo Presidente em novo mandato ou, na pior hipótese (para eles), na mão de sucessor de seu partido.

Há, porém, um fato novo: os programas de suplementação alimentar como o “bolsa família” e congêneres. O governo construiu uma aliança entre os extremamente ricos e a massa dos extremamente pobres por intermédio dos “programas sociais”. O apoio dos pobres garante o sucesso eleitoral, em repetição da velha fórmula da troca do voto por prato de comida. O apoio da banca garante o “respeito internacional”, o suporte dos maiores partidos políticos do País e uma imprensa simpática, senão ao governo, pelo menos à sua política econômica. A transferência de vinte ou trinta bilhões de dólares para os mais pobres levá-os a votar por uma política monetária que transfere qualquer coisa próxima a 150 bi de dólares para o setor financeiro. São enganados, pois recursos muito mais volumosos do que os alocados à “política social” seriam transferidos aos mais pobres na forma de salários, se as taxas de juros fossem menos altas. Com a elevação dos preços dos alimentos, que o aumento da taxa de juros faz piorar, os ganhos eleitorais da bolsa família e similares serão anulados. De fato, os pobres serão os primeiros a consumir menos e após algum tempo,a consumir menos comida.

A escassez mundial de alimentos é um fenômeno físico que deve ser combatido enquanto tal. A elevação dos preços dos alimentos é sua conseqüência. Combate-se, entretanto, uma abstração que é a taxa de inflação, ou seja, enfrenta-se a variação média de todos os preços da economia. Não se combate a causa da alta dos preços dos alimentos, que é a sua escassez no mercado nacional devido ao seu atrelamento aos preços externos. Ataca-se, ao invés, uma construção lógica, a taxa de inflação, como se todos os preços subissem uniformemente e como se, pela redução do preço das geladeiras ou das televisões, o problema da alta do preço dos alimentos fosse corrigido. Assim, os alimentos continuarão a subir, mas cairão, em um primeiro momento, os preços de produtos menos essenciais ao dia a dia. Com o avanço da recessão irrigada pelas altas taxas de juros, a tendência nos setores oligopolizados da economia brasileira, ou seja, em quase todos, é a que os preços voltem a crescer.

Por isto, a onipresente proposta de subir a taxa de juros todas as vezes em que acontecem piques de inflação setorial, seria ridícula não fossem lamentáveis seus efeitos para o povo brasileiro e para o futuro do Brasil.

2017-12-04T08:45:00-02:00By |Economia Política, Opinião|