Macunaíma: ser ou não ser, eis a questão

(Capítulo do Livro Etnia e Nação na América Latina)

AUTOR: GUSTAVO LINS RIBEIRO

“Eu sou 300”
—Mário de Andrade

Macunaíma é amplamente considerado como o herói brasileiro, como uma descrição altamente ilustrativa da identidade brasileira. É uma história bem conhecida pela classe média educada que acredita ser Macunaíma, em todos os seus aspectos, um produto do imaginário cultural brasileiro, sintetizado pelo consagrado trabalho do escritor modernista Mário de Andrade (1893-1945).

Macunaíma representa uma oportunidade para a interpretação do complexo processo de construção de “símbolos nacionais”, comparável à interpretação que Eric Wolf (1958) fez da Virgem de Guadalupe, no México. A Virgem representa um sistema de significados condensados e multifacetados, uma fusão de elementos pré-hispânicos e cristãos. Sua transformação numa representação poderosa da sociedade mexicana mostra como certos fenômenos simbólicos geram, no interior de sistemas interétnicos, fusões neutralizadoras das diferenças, produzindo coerência, ao invés da persistência óbvia de posições e pontos de vista diversos. Ancorada em dois sistemas religiosos poderosos, com mitologias e cosmologias diferenciadas, a Virgem foi historicamente apropriada de diversas maneiras e por diferentes segmentos da sociedade mexicana.

Macunaíma não constitui um “símbolo nacional” tão importante quanto a Virgem de Guadalupe, no México. Mas, ambos correspondem a representações típicas da cultura do contato e são estruturados por processos vinculados tanto ao colonialismo quanto à formação dos Estados-Nação no Novo Mundo. Processos estes, onde as diferenças radicais entre os vários segmentos étnicos, integrados pela expansão ocidental, sempre foram um problema. Assim, Macunaíma e a Virgem remetem e procuram responder a uma questão central, um problema fundamental dos Estados-Nação: o que é que faz um mexicano, mexicano, ou um brasileiro, brasileiro? Sistemas simbólicos constituem meios importantes para a unificação de segmentos diferentes, vivendo sob o arco abrangente dos Estados-Nação. Benedict Anderson (1983) mostrou, por exemplo, a importância da língua na formação de “comunidades imaginárias” que evoluiriam para tornarem-se Estados-Nação. De fato, signos linguísticos provêem, de modo fundamental, o sentido de pertencimento de indivíduos e grupos a unidades sócio-culturais e políticas de qualquer escala. Compartilhar significados constitui pré-condição da cultura e da sociedade. Em sentido amplo, todas as comunidades são imaginárias. Os indivíduos só podem pensar em si mesmos enquanto membros de uma coletividade via meios simbólicos. Símbolos e signos são entidades sociais que invadem os indivíduos.

Na vida cotidiana os sistemas de significados mais pervasivos e efetivos são os linguísticos. Eles criam o que pode ser chamado de “ilusão linguística”, fonte de ansiedade individual/social. A ilusão linguística constitui o núcleo duro da contradição que se expressa na consciência de que é, ao mesmo tempo, uma individualidade irredutível que só pode existir na vida social. De fato, a língua carrega consigo a qualidade contraditória de ser, simultaneamente, um fenômeno abertamente social e uma experiência íntima radicalmente individual. Esta é a fonte — da sensação de ser um e, ao mesmo tempo, ser muitos — de ser e não ser.

Mas a língua não é, obviamente, a única forma de se alcançar um sentimento de pertencimento. Tótens, rituais, personagens históricos e eventos (Joana D’Arc, a Revolução), a tradição (a Rainha), mercadorias (Coca-Cola), traços culturais (Tango) são metonímias de diferentes coletividades. A vida social é, em certo sentido, uma floresta de símbolos classificatórios e sinais diacríticos que se referem a categorias mais ou menos inclusivas.

Os antropólogos estiveram, sempre, às voltas com tais questões. As muitas definições e interpretações de cultura tentam, em maior ou menor grau, compreender como um indivíduo ou grupo se reconhece (ou é reconhecido) como membro de uma unidade sócio-cultural dada. Padrões culturais, identidade, sistemas interétnicos, segmentação étnica e estudos de parentesco são representativos do esforço para compreender como as pessoas obedecem, simultaneamente, a categorias gerais e particulares que emprestam sentido às suas posições e possibilidades na vida social. Em outras palavras, representações homogêneas não implicam em ausência de heterogeneidade.

O livro Political Systems of Highland Burma, de Edmund Leach, publicado pela primeira vez em 1954, constitui uma crítica poderosa contra a reificação da estabilidade e dos limites culturais. Sua análise sobre os Kachin e os Shan refere-se a uma estrutura de segmentação étnica em que as posições estão submetidas a constantes mudanças. Para Leach o problema era a existência de “ficções etnográficas”, tais como tribo, e os modelos utilizados pelos cientistas sociais.2 Leach também chegou à conclusão de que as sociedades não constituem totalidades coerentes. Ao contrário, estão cheias de inconsistências que provêem alternativas, através das quais os indivíduos podem conseguir avan- ços sociais e coletividades podem provocar mudanças sociais (Leach 1968, 8).

A análise de um símbolo de identidade nacional estabelecido, como Macunaíma, permite discutir a impossibilidade de definir identidades totalmente delineadas, em situações modernas que refletem a expansão do sistema mundial e a complexidade resultante da articulação de segmentos com backgrounds culturais diferenciados (Wolf 1982). A busca por autenticidade e essência é aqui entendida como simplificação inevitável de um processo histórico altamente complexo, muito mais poderoso em cenários modernos e cosmopolitas, mas igualmente presentes em situações de diversidade étnica como a que Leach analisou.

Autenticidade e uma essência comum são parte do esforço simbólico de construção de semelhanças e diferenças necessárias para o processamento de conflitos e para o estabelecimento de cooperação através de alianças. Ser membro de uma unidade sócio-cultural é condição humana tão inevitável quanto o etnocentrismo. Neste sentido, a análise de Evans-Pritchard sobre a segmentação Nuer sugere, também, importantes insights para a compreensão dos mecanismos subjacentes tanto à busca de autenticidade e essência, quanto à necessidade de um sentido de pertencimento. Segundo Evans-Pritchard (1969), quando um segmento X1 se confronta com X2, ambos se comportam como grupos corporados. Entretanto, se um antagonista entra em casa, X1 e X2 se fundem, como um único segmento X, para enfrentar o desafio representado pelo estranho comum.

A discussão sobre unidades sócio-culturais e políticas — como elas são representadas, se diferenciam e são incorporadas a entidades maiores ou desaparecem como segmentos distintos — está fortemente relacionada a outro tema clássico da antropologia: difusão cultural. As complexas maneiras através das quais “coisas” (objetos, tecnologias, ideologias, mitos, sistemas políticos, etc.), originárias das práticas de certos povos, tornam-se parte da vida dos outros, têm a ver com incorporação forçada, assimilação pacífica, comércio de longa distância, troca de mulheres e com a admiração pelas realizações de outros povos. De fato, as trajetórias dessas “coisas” ocorrem em processos históricos fortemente estruturados por a) fenômenos políticos e econômicos envolvendo troca ou relação de dominação; b) fenômenos culturais e de comunicação, tais como a circulação de informação e objetos.

Quanto maior for, ao longo do tempo, o número de segmentos envolvidos, mais complexa se torna a difusão. Nas sociedades modernas é grande o número de situações marcadas pela presença geral de segmentos étnicos diversos, articulados pelo processo de expansão do capitalismo e a crescente integração do sistema mundial, resultante do grande desenvolvimento das indústrias de comunicação, transporte e informação. Estas criam inúmeras redes de comunicação entre os segmentos, independentemente de suas localizações físicas, fortemente ampliando a circulação de informações. Em tais situações, os atores sociais estão expostos a uma quantidade enorme de informações, cuja origem é, praticamente, impossível traçar. Em conseqüência, a fragmentação da cultura e da identidade tende a crescer, criando, para muitos, um sentido de perdas de integridade e de organicidade. Fragmentação é, na atualidade, uma realidade que homens e mulheres modernos têm que enfrentar para localizarem-se no mundo transnacional (Ribeiro 1992). Indubitavelmente, nas áreas modernas do capitalismo avançado, o sentimento pré-industrial de pertencimento a uma comunidade orgânica (definida como as relações entre um certo povo, seu território, história e cultura) não pode mais existir.

A informação cultural desterritorializada é promovida mais ainda pela integração planetária. O crescimento extraordinário desse tipo de informação, tem como sub-produto a clara demonstração de que a busca de elos entre território e cultura não se pode basear na suposição de relações sui generis e exclusivas. Traçar vínculos definitivos e irrevogáveis entre essas duas entidades constitui um empreendimento artificial passível de ser realizado apenas, para repetir Leach, por ficções etnográficas.

Mas livros como Macunaíma constituem objetos fechados que, ao menos hipoteticamente, podem ser examinados com o objetivo de reconstruir as diferentes perspectivas culturais que os compõem.3 Macunaíma está certamente entre os melhores exemplos desse tipo de literatura. Mário de Andrade pretendia realizar uma fusão do que considerava serem as principais características dos brasileiros. Ele é amplamente reconhecido por ter pintado o retrato do povo brasileiro em um trabalho que, para Darcy Ribeiro, é “o mais brasileiro dos livros” (Ribeiro 1988, xxi).

Não é meu objetivo reconstruir as muitas influências e fontes que se juntam em Macunaíma. Além disso, não tenho a intenção de me colocar como especialista sobre o Movimento Modernista no Brasil, um dos momentos artísticos mais ricos da história brasileira. Mário de Andrade está entre as principais figuras desse movimento que, desde a célebre “Semana de Arte Moderna de 1922”, na cidade de São Paulo, tornou-se marco de uma mudança radical para escritores e artistas plásticos. Tampouco pretendo ser especialista em Mário de Andrade, escritor notável, intelectual e intérprete da realidade brasileira. Sobre tudo isto, infelizmente, já existem vários trabalhos como os de Proença (1969), Ancona Lopes (1988) e Morse (1990). Na realidade, meu esforço, em sintonia com esta parte introdutória, é no sentido de explorar a transformação de Makunaíma, um mito Taulipâng, em Macunaíma, um símbolo da identidade nacional brasileira. Trato, ainda, de discutir uma noção de identidade que se afasta de visões essencialistas.

Macunaíma: Uma história taulipâng, alemã, venezuelana e brasileira

Uma distinção deve ser introduzida. Macunaíma (com “c”), significará personagem e livro criados por Mário de Andrade (1988). Makunaíma (com “k”) significará um mito indígena. Esta distinção não é um exercício de preciosismo, e sim um índice de uma diferença substancial. Macunaíma de Mário de Andrade constitui uma condensação simbólica muito mais complexa do que o Makunaíma dos Taulipâng. A história Taulipâng forneceu a estrutura mítica sobre a qual Andrade trabalhou, assim como as principais características do herói. Macunaíma de Andrade condensa, além de perspectivas indígenas, visões rurais e urbanas do Brasil no começo do século acrescidas da própria compreensão do autor sobre a missão artística e literária.

São vários os motivos que fundamentam a crença de que Makunaíma é um personagem brasileiro, o mais imediato deles se refere à recepção obtida por Macunaíma: O herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade — trabalho que se tornou, desde sua primeira edição em 1928, um clássico da literatura. A primeira edição de 800 exemplares, custeada pelo autor, não foi, exatamente, um sucesso editorial (Santiago 1988, 184). Quinze anos após sua publicação, apenas 1.800 exemplares estavam em circulação (Santiago 1988, 184). Mas o fato de Mário de Andrade, em 1928, já ser um intelectual destacado em São Paulo, garante a visibilidade do livro junto à crítica literária e um crescente interesse por Macunaíma. Em um país que possui mercado editorial restrito, Macunaíma foi publicado em várias edições.

O livro tornou-se também uma peça de teatro de sucesso, apresentada por um dos grupos mais criativos do teatro brasileiro, o Grupo Macunaíma. Segundo Almeida Castro (1992, 15) “a peça Macunaíma estreou a versão original, de quatro horas e meia de duração, em São Paulo em 15 de Setembro de 1978, e teve a sua última apresentação em 5 de Julho de 1987, em Atenas. Foram, ao todo, 876 apresentações que entre a versão original e a remontagem mais sintética de três horas, percorreram trinta cidades brasileiras e sessenta e sete estrangeiras, algumas, mais de uma vez, em dezessete países. Foi um sucesso retumbante tanto de crítica quando de público, aqui e no exterior”.

Em 1969, Macunaíma foi transformado em filme, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade e, na década de 70, um dos filmes mais populares do Cinema Novo, o criativo movimento de cineastas brasileiros. Foi recentemente apresentado por um canal de televisão em rede nacional e agora pode ser encontrado nas locadoras de vídeo. Em 1974, uma das Escolas de Samba mais importantes do Rio de Janeiro, a Portela, escolheu Macunaíma como tema. Macunaíma, entrava, assim, no centro de uma das arenas culturais mais populares do Brasil: o desfile das Escolas de Samba do Rio. De fato, “hoje, Macunaíma (o herói e/ou o livro) faz parte do repertório cultural mínimo de qualquer ginasiano ou universitário inquieto nas suas reflexões de cunho nacionalista. Freqüenta artigos de jornal e revista, intromete-se nas conversas culturais do cotidiano boêmio e é citado até mesmo pelos estereotipados personagens das novelas de televisão” (Santiago 1988, 193).

Mas existem razões mais profundas para entender porque Macunaíma se tornou um item tão conhecido no universo cultural do Brasil. Afinal de contas, uma das ideologias brasileiras mais fortes é a que se refere à participação igualitária das “três raças”, é “uma ideologia que permite conciliar uma série de impulsos contraditórios de nossa sociedade, sem que se crie um plano para sua transformação profunda”. Mais ainda, “[é uma ideologia que] se constitui na mais poderosa força cultural do Brasil, permitindo pensar o país, integrar idealmente sua sociedade e individualizar sua cultura” (Santiago 1988, 69).

Macunaíma é um homem que passa por transformações raciais e é radicalmente envolvido em situações de conflito interétnico e disputas ideológicas. Nasceu Índio, mas um Índio Negro da tribo dos Tapanhumas.5 Em meio a suas aventuras, Macunaíma, magicamente, torna-se homem branco. Nasceu no coração da floresta e suas primeiras palavras, já adulto, foram: Ai! Que Preguiça!6 Além disso, “o herói sem nenhum caráter” é um migrante exposto a rápidos processos de modernização, experimentando novas e dramáticas mudanças em um contexto urbano dominado por estranhas máquinas. Ele é tomado por um fluxo de mudanças tão intensas e fantásticas que o tempo não lhe alcança para processar e compreender a seqüência de eventos. Nesse redemoinho, Macunaíma entra em luta constante contra o símbolo óbvio da modernização eternamente orientada: um rico capitalista-migrante estrangeiro. Trata-se de um gigante que capturou o muiraquitã, essência de seu mundo e objeto mágico poderoso, cuja recuperação se torna uma obsessão para Macunaíma.

O muiraquitã foi um presente de Ci, uma Amazona, único e verdadeiro amor de Macunaíma, após a morte do filho de ambos. Em profunda tristeza, Ci, Mãe do Mato, sobe aos céus e torna-se Beta Centauro. Enquanto escapava de um monstro da floresta, o herói perde a pedra muiraquitã. Mais tarde, um pássaro conta que a pedra havia sido engolida por uma tartaruga. O homem que capturou a tartaruga vendeu o muiraquitã à Venceslau Pietro Pietra, um comerciante que enriquecera e se mudara para São Paulo. Macunaíma e seus dois irmãos viajam para São Paulo, onde entram em contato com a vida urbana na maior e mais moderna cidade do país. Havia migrantes de diversos países e Estados do Brasil. Mas, acima de tudo, máquina jornais, máquina telefone, máquina avião, máquina eletricidade, máquina Banco de Londres.

A história se desenrola principalmente em São Paulo, onde o herói se engaja em lutas corporais e mágicas contra Pietro Pietra, também um gigante comedor de gente. Mas, em suas aventuras, Macunaíma viaja por lugares fantásticos — na maior parte do tempo fugindo de inimigos mitológicos. Ele pode ir das cidades amazônicas a outras, no extremo sul do Brasil, ou Argentina, passando pelo Rio de Janeiro, cobrindo distâncias de muitos milhares de quilômetros como se não fossem nada. Espaço e tempo reais não existem para ele. Em muitos dos lugares por onde Macunaíma passa, encontra figuras mitológicas ou personagens de lendas populares. No Rio, vai a um ritual afro-brasileiro para espancar, magicamente, seu oponente que quase morre com as violentas pancadas recebidas em São Paulo.

Após vários episódios, Macunaíma finalmente vence o gigante rico. Em uma luta violenta, mata Pietro Pietra empurrando-o para dentro de uma enorme panela de espaguete fervente que sua mulher, a Caapora (um espírito maligno da floresta), cozinhava. Macunaíma recupera seu amado muiraquitã e volta, com seus irmãos Jiguê e Manaape, para a floresta onde viviam. Disputas, intrigas e desentendimentos levam Macunaíma a matar Jiguê. Manaape morre em seguida, atacado pela sombra devoradora em que Jiguê havia se transformado. Deprimido, com um papagaio como sua única companhia, Macunaíma perde a vontade de viver. O herói sem nenhum caráter, o último homem da tribo Tapanhumas, vai para o céu e transforma-se em Ursa Maior.7

No epílogo, o autor visita o território habitado pelos Tapanhumas e encontra um papagaio. Era o companheiro de Macunaíma. O papagaio conta a Mário de Andrade as aventuras do herói sem caráter. É por isto que os brasileiros conhecem a história de Macunaíma.

Mas o que a maioria dos brasileiros não sabe, a menos que sejam críticos literários ou antropólogos conhecedores do exuberante Movimento Modernista brasileiro, é que o personagem Macunaíma, o “herói brasileiro”, baseia-se, radical e conscientemente, em Makunaíma, um mito Taulipâng. Reconhecidos intérpretes de Mário de Andrade e, particularmente de Makunaíma (ver, por exemplo, Proença, 1969, em trabalho que ganhou prêmio em 1950 e continua sendo um dos mais completos sobre o assunto), e o próprio Mário, chamaram a atenção, reiteradas vezes, para a origem de Macunaíma.

Makunaíma, o mito Taulipâng, foi lido, inicialmente, por Mário de Andrade, no livro de Theodor Koch-Grünberg Von Roroima zum Orinoco (Do Roraima ao Orenoco). Koch-Grünberg (1872-1924) foi um geógrafo e etnólogo alemão que viajou, entre 1911-1913, pela região norte do Brasil, sul da Venezuela e Guiana, em áreas, praticamente, inexploradas. Fortemente influenciado pela tradição intelectual alemã e seguindo o caminho de etnólogos como Karl Von Den Steinen, de quem foi aluno, Koch-Grünberg tinha interesse especial pela descrição da cultura material e pela coleta de mitos. Para ele, os mitos indígenas representavam uma janela para “o patrimônio primitivo da humanidade”. Koch-Grünberg escreveu “mitos e lendas em horas de ócio, ao lado da fogueira do acampamento, durante viagens em canoas bamboleantes, quando passávamos por tranqüilos trechos fluviais usando as barracas como velas ou sentados nas pedras banhadas por ondas barulhentas das cachoeiras, ou ainda sob as copas exuberantes das árvores da selva virgem” (1981, 13).

Do Roraima ao Orenoco é composto por cinco volumes. O primeiro foi publicado em Berlim, em 1917.8 Seu autor é representativo de um tipo de etnógrafo dificilmente encontrado hoje em dia: mistura de aventureiro solitário e cientista altamente treinado, capaz de viajar anos pela floresta, ouvindo e registrando mitos, descrevendo plantas e mapeando rios. Koch-Grünberg morreu em 1924, na cidade de Rio Branco (hoje, capital do Estado brasileiro do Acre), vitimado por febre tropical.

Viajou por uma região etnicamente diversificada, caracterizada pela presença de antigas e extensas redes de trocas intertribais e interétnicas (Melatti 1992). Desde pelo menos o século XVIII, com a fundação de Ciudad Bolívar, sobre o rio Orenoco, em 1764, a população indígena da área tem vivenciado a presença de europeus. Colonizadores espanhóis, holandeses, ingleses e portugueses competiam por hegemonia na área. Havia militares, criadores de gado, garimpeiros, missionários católicos e protestantes. O contato interétnico levou à formação de “novas religiões” entre os índios, amalgamando seus conhecimentos mágicos, míticos e rituais com as doutrinas missionárias. Dessa forma, há mais de um século, surgiu um culto chamado Hallelluiah, formulado, inicialmente, pelo contato de um profeta Makuxí com Deus. Dos Makuxí, o culto se espalhou por todas as etnias indígenas da área, através de outros profetas, perdurando até os dias de hoje (Melatti 1992, 8). Outros cultos surgiram como reflexo do contato com anglicanos e católicos (1992, 8).

Makuxí, Mayongong, Wapitxâna foram alguns dos diferentes grupos étnicos visitados por Koch-Grünberg. O contato interétnico constitui, certamente, a razão pela qual, nessa área, Makunaíma é um herói cujas histórias são conhecidas por grupos distintos. Os Taulipâng (um grupo da família linguística Karíb), junto com os Arekuná e os Kamarakôto formam os Pemôn.

Segundo Koch-Grünberg (1981, 14), os Taulipâng e os Arekuná são tão intimamente relacionados que “as lendas de ambas as tribos não podem ser separadas umas das outras”. Seus dois principais informantes eram um Arekuná chamado Möseuaípu e um Taulipâng chamado Mayuluaípu. Este último era, não só, filho do “mais famoso narrador de lendas de sua terra”, mas também, tradutor do etnólogo alemão. Os mitos eram traduzidos pelo homem Taulipâng para o português, língua falada por Koch-Grünberg e depois para o alemão (1981, 3).

Muito embora Koch-Grünberg privilegie as versões Taulipâng de Makunaíma, uma vez que ele também registrou versões Arekuná, em realidade não se pode dizer que a estória seja exclusivamente Taulipâng. Em seu próprio relato sobre o herói mítico, nosso autor utiliza, constantemente, versões Taulipâng e Arekuná. Assim, classificar Makunaíma como uma estória Taulipâng é, em si mesmo, uma simplificação. O mesmo é verdade se afirmarmos que a estória é “venezuelana”, no sentido de possivelmente ter sido registrada na Venezuela e/ou por ter sido parte da cosmologia de povos habitantes em território daquele país. No período em que o pesquisador lá esteve, os Taulipâng e os Arekuná também viviam em uma área que incluía a Guiana Inglesa. Makunaíma pode ter sido registrado como mito, em território então pertencente ao Império Britânico.

Em Taulipâng, Makunaíma significa “o grande mau”.9 Ele é traiçoeiro, perigoso, arrogante, criador de caso, traidor e o mais charmoso dos homens, sempre às voltas com sexo e poder. É o criador dos animais e dos peixes. Também criou o homem. Mas acima de tudo é o “Grande Transformador” (Koch-Grünberg 1981, 19).

Não reproduzirei aqui as diferentes versões ou conteúdos da história de Makunaíma. Mas quero chamar a atenção para as características que se tornaram centrais no Macunaíma de Mário de Andrade. Mais importante do que os traços do herói e suas várias aventuras mitológicas, é o fato da estrutura de um mito constituir substrato perfeito para uma peça literária abundante em transformações, e ser igualmente importante para lidar com situações ambíguas e voláteis em contextos multiculturais. Um herói sem nenhum caráter constitui poderosa metáfora para a mistura de culturas e um certo sentido de perda de identidade. É também uma metáfora patética. A procura da essência e da autenticidade não pode ser satisfatoriamente realizada por um herói sem nenhum caráter. Quem somos nós? Não existe resposta apaziguante para esta questão, quando o fluxo de transformações é a única resposta.

Macunaíma: Modernidade e fragmentação de identidades

O modernismo como um movimento artístico internacional fundia elementos de distintos backgrounds. No Brasil, surgiu plenamente com a Semana de Arte Moderna de 22, em São Paulo. Na década de 20, o modernismo brasileiro foi muito influenciado pelo pensamento de Marx, Freud e antropólogos como Tylor, Frazer e Lévy-Bruhl.10 Havia também uma preocupação direcionada para o entendimento das raízes culturais do Brasil.

Mário de Andrade foi, entre intelectuais como Rodrigo de Mello Franco e Lúcio Costa, um dos mais importantes articuladores da “nova série de discursos” sobre cultura brasileira, produzida nas décadas de 20, 30 e 40 (Santos 1992, 239). Andrade se engajou na política cultural, ajudando a criar instituições, em níveis estadual e federal, para preservação do patrimônio histórico e de arquivos. Ele

estudou com profundidade os conceitos de cultura, símbolo, arte, estética, ética e folclore…e produziu uma definição de cultura brasileira, entendendo-a como um processo de criação permanente, cuja dinâmica seria capaz de universalização, de comunhão com a totalidade da civilização, isto é, com o conjunto dos processos de comunicação do homem ocidental. (Santos 1992, 245)

Em Andrade, a relação particular/universal é mediada pela tradição, sendo cada manifestação cultural uma via de acesso ao universal (Santos 1992, 292). Esta é a razão pela qual Mário de Andrade estava longe de construir uma teoria chauvinista do Brasil. A sua já era uma visão crítica do desejo nacionalista, presente de forma mais ou menos elaborada tanto em políticos quanto em intelectuais de esquerda ou direita. Andrade propunha um nacionalismo cosmopolita. O fato de tratar a diversidade cultural como uma problemática não-resolvida foi uma garantia contra a tentação de elaborar formulações utópicas vinculadas à fundação de uma nova civilização tropical.11

Andrade não respondia mecanicamente a uma orientação programática de uma onda artística. Estava imerso numa situação moderna, em São Paulo, metrópole que atravessava mudanças dramáticas em sua forma, arquitetura e estilos de vida. Essas mudanças, provocadas por intensa industrialização e modernização, colocaram lado a lado migrantes vindos de diferentes partes do mundo. Richard Morse, descreve o cenário em que os paulistas trabalhavam:

Os paulistas estavam bem situados para lançar manifestos explosivos. Viviam na tumultuada capital industrial e financeira de uma nação com dimensões continentais. Ouviam a voz do Brasil como uma cacofonia com fontes indígenas, africanas, portuguesas, francesas, italianas, sírias, japonesas e muitas outras. Como os Antilhanos, viviam num caldeirão, só que contido de uma única nação, relativamente livre da ameaça do jogo de xadrez dos impérios. (1990, 85-86)

Modernidade, em São Paulo, na década de 20, significava o impacto de tecnologias estrangeiras e as mudanças que causavam na sociedade local (Sevcenko 1992). Carros, fonógrafos, cinemas, novas drogas. Isadora Duncan, o Ballet Russo, Lasar Segal. Novos artistas, músicos e artistas plásticos representando novas formas de expressão. Uma elite dividida entre aqueles que eram fortemente influenciados por uma estética estrangeira e outros defensores do ingresso da cultura brasileira no reino das grandes artes.

As transformações por que passa Macunaíma — sua exposição a um impressionante bombardeio de novas informações, sua perplexidade, a fragmentação de seu universo cultural e dos seus meios de interpretação — consistem aquilo que o tornam um herói modernista construído por um escritor modernista. Macunaíma se encaixa perfeitamente nas idéias de Marshall Berman:

Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas ao redor — mas ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia. (1987, 15)

Mário de Andrade, ele mesmo um viajante, leu Do Roraima ao Orenoco, em alemão, em 1926 (Ancona Lopes 1988, 312), fato que, por si só, demonstra o interesse de Andrade em etnologia e folclore. A edição do primeiro volume da obra de Koch-Grünberg, uma descrição de sua viagem, foi publicada em Berlim, no ano de 1917, mas o segundo volume (Mitos e Lendas) só apareceu em 1924, na cidade de Stuttgard.12

Em carta ao amigo Alceu Amoroso Lima, Mário de Andrade escreveu:

resolvi escrever porque fiquei desesperado de comoção lírica quando lendo o Koch-Grünberg, percebi que Macunaíma era um herói sem nenhum caráter nem moral nem psicológico, achei isso enormemente comovente nem sei porquê, de certo pelo ineditismo do fato, ou por ele concordar um bocado bastante com a época nossa. (Ancona Lopes 1988, 401)

Andrade fundiu a obra do etnólogo alemão com fontes históricas clássicas que descrevem o interior do Brasil, especialmente, a região amazônica, como os trabalhos de Capistrano de Abreu e Couto de Magalhães. Mário de Andrade escreveu Macunaíma em uma semana, de 16 a 23 de Dezembro, no ano de 1926 (Proença 1969, 7). No prefácio da primeira edição escreveu:

o que me interessou em Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o maior que possa a identidade nacional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que me parece que é certa: o brasileiro não tem caráter… O brasileiro não tem caráter porquê não possue nem civilização própria nem consciência tradicional. (Santos 1992, 241)

Esta citação é ilustrativa de uma tensão central em Andrade. Ele tinha consciência da fragmentação que tanto os brasileiros modernos, quanto os tradicionais vinham experimentando cada vez mais, além de interessar-se também por traçar um perfil de um caráter e de uma cultura nacionais. A solução dos modernistas brasileiros foi enfatizar a re-criação, a antropologia cultural, enquanto marcador da distinção. Um marcador fundado na dialética entre o particular e o universal; uma digestão de particularidades no reino das universalidades.

Há em Macunaíma um incrível acúmulo de “lendas, superstições, frases feitas, provérbios e modismos de linguagem” (Proença 1969, 7). É uma “colcha de retalhos”, verdadeira fusão de vários traços que sintetizam o “brasileiro comum”. A fusão de muitos fragmentos culturais para expressar um caráter nacional brasileiro é amplamente indicada por Proença e merece duas longas citações:

Macunaíma apresenta como as paródias musicais uma variedade de motivos populares, a que Mário de Andrade seriou, de acordo com as afinidades existentes entre eles, ligando-os, para efeito de unidade, com pequenos trechos de sua autoria, para tornar insensível a transição de um motivo para outro. (Proença 1969, 10-11)

Na seleção dos próprios mitos a escolha não foi feita ao acaso, nem pela beleza poética, nem para se ajustar ao enredo. A grande maioria consta de motivos existentes em lendas e mitos de mais de uma tribo. Mário de Andrade escolheu um deles, ou muitas vezes, fundiu-os. O material é de origem européia, ameríndia e negra, pois que Macunaíma que nasce índio-negro, fica depois de olhos azuis… enquanto os irmãos do mesmo sangue um fica índio e outro negro. E continuam irmãos. Macunaíma entretanto não adquire alma européia. É branco só na pele e nos hábitos. A alma é mistura de tudo. (Proença 1969, 27)

Macunaíma também é boliviano, chileno, venezuelano, sul-americano, alguém que fala expressões regionais do sul do Brasil ou da Amazônia, um viajante, um migrante exposto a muitas variáveis culturais. A fusão de muitos traços culturais particulares é o que permite a Macunaíma ser universal.13 Contudo, afirma Alfredo Bosi,

não há em Macunaíma a contemplação serena da síntese. Ao contrário, o autor insiste no modo de ser incoerente e desencontrado desse ‘caráter’ que, de tão plural, resulta em ser ‘nenhum’. E aquele possível ‘otimismo’, que era amor às falas e aos feitos populares, ao seu teor livre e instintivo, esbarra na constatação melancólica de uma amorfia sem medula nem projeto. (Bosi 1988, 178)

De certa forma, Andrade é um realista que espelha as situações que descreve, um “realista mágico” avant-la-lettre. Aborda a diversidade cultural como uma problemática, cuja solução permanece em aberto. Por não estar preocupado em resolver paradoxos, não constrói um discurso utópico. Aqui é como se suas leituras psicanalíticas e antropológicas lhe tivessem dado tranqüilidade para explorar e viver com as perplexidades. Seu herói de uma terra de um povo desenraizado só poder ter como destino não “assumir nenhuma identidade constante” (Bosi 1988, 181).

Mário de Andrade chamou Macunaíma de “herói desgeograficado” (Proença 1969, 82). Isto certamente significa que tinha consciência da fragmentação do herói. Com efeito, seu livro pode ser lido como uma tentativa de expressar as fortes mudanças que a sociedade e cultura brasileiras atravessavam, mudanças muito mais claras numa metrópole como São Paulo. A luta de Macunaíma contra o gigante Piaimã, um estrangeiro, representa a oposição do conhecimento local contra a razão pragmática instrumental, diferente, portada por outsiders. É a luta das culturas locais contra novas ondas de fragmentação sob a hegemonia de novos atores e fases de expansão da economia política do Ocidente.

Mário de Andrade é um escritor-bricoleur e um myth-maker. Constrói um personagem heteróclito que não pretende nenhuma congruência dócil e fácil, algo tão freqüentemente procurado por intérpretes de realidade sociais e culturais. Andrade, ele mesmo, é ambíguo. Acredita que seu herói ilógico reflete a ausência de uma logicidade nacional “porque como sucede com todos os outros povos sul-americanos, a nossa formação nacional não é espontânea, não é, por assim dizer, lógica” (Proença 1969, 36). Mas há, subjacente, um problema nacional ao qual ele sempre se reporta. A busca por autenticidade está, claramente, lá: “um traço bem definido de Macunaíma é a preocupação de autenticidade” (Proença 1969, 32). E esta pode, muito bem, ser a razão por que a estória de Macunaíma possui um tom patético. Ao mesmo tempo que o livro de Andrade pode ser tido como um elogio à diversidade cultural brasileira fundida em um caráter, ele percebeu o poder da fragmentação e da ambigüidade induzidas pela modernização.14 Por outro lado, sentia que os caracteres perdiam autenticidade. De fato, Macunaíma recupera seu muiraquitã, sua essência perdida, símbolo do seu amor cosmológicamente integrado. Mas na trajetória se tinha transformado irremediavelmente. O muiraquitã já não era suficiente para ordenar seu cosmos. Por isto o herói teve que morrer no final.

Conclusão

Quando o que se discute são identidades nacionais, formas de representação que buscam o plano da homogeneidade, dificilmente se aceita a fragmentação de identidade como uma possibilidade de explorar, a partir de um ponto de vista específico, a experiência da diversidade cultural. Num momento em que no sistema mundial ocorre uma exposição crescente a significados culturais desterritorializados, encarar a fragmentação como temática fundamental para se compreender a formação de novas identidades culturais e políticas, torna-se tarefa central na antropologia.

Nesse sentido, Macunaíma fornece um rico exemplo para se discutir, não apenas as minúcias da formação de identidades nacionais, mas a identidade geral nas sociedades modernas, especialmente, naquelas áreas submetidas a intensos processos de compreensão do espaço-tempo (Harvey 1989). Em trabalho anterior, analisando um grupo de trabalhadores qualificados e de técnicos que viviam nos circuitos migratórios do sistema mundial, procurei afastar-me de uma abordagem essencialista. Cheguei à conclusão de que

a fragmentação de identidade deve…ser entendida em um universo onde há um fluxo em aceleração crescente de mudanças de contextos, de encontros sociais e comunicativos, e uma múltipla exposição a agências socializadoras e normatizadoras, elas mesmas também viajando em um fluxo acelerado de mudanças. Nessa situação, as identidades só podem ser definidas como a síntese de múltiplas alteridades construídas a partir de um número enorme de contextos interativos regulados, na maioria das vezes, por instituições. Isto é, ao invés de uma essência irredutível, a identidade nas sociedades complexas modernas/pós-modernas pode ser concebida como um fluxo multifacetado, sujeito a negociações e à rigidez, em maior ou menor grau, de acordo com os contextos interativos que, na maioria das vezes, são institucionalmente regulados por alguma agência socializadora e/ou normatizadora (para posição semelhante ver Marcus 1990, 29). A fragmentação é vivida, por um lado, como um dado, como uma realidade estruturadora do sujeito; por outro, como conjunto característico do próprio sujeito, mas em constante mudança, nesse caso uma das múltiplas facetas — ou agregado delas — pode ser hegemônica com relação às demais, de acordo com as características de cada contexto. Em condições de mudança extrema, o arranjo definidor de identidades individuais ou coletivas pode passar por transformações radicais, levando mesmo a uma redefinição, a uma reconstrução das características gerais e das relações de hegemonia entre as partes (facetas) constitutivas. (Ribeiro 1992, 33)

Macunaíma é um exemplo de fragmentação em um contexto moderno e segmentado, típico de muitos dramas culturais no Novo Mundo. Diversidade e contato cultural, somados à segmentação étnica geram, em maior ou menor grau, Macunaímas em todo o mundo, independentemente da ideologia de um sistema interétnico particular. Isto é especialmente claro nas Américas, onde confrontar-se com o estranhamento radical se tornou um tipo de pecado original, historicamente comandado por centros coloniais externos ou domésticos. Nesse sentido, o trabalho de Mário de Andrade pode também ser entendido como parte de um esforço de intelectuais do Novo Mundo que, expressando ambigüidades historicamente construídas, terminam por encontrar-se na busca de uma linguagem nacional que possa diferenciar seus idiomas dos da metrópole. Assim, Andrade é membro de uma tendência que inclui Noahj Webster, H. L. Mencken, Juan B. Alberti, Domingo F. Sarmiento, Jorge Luís Borges, Octávio Paz, e muitos outros (Morse 1990).

Uma das muitas fontes da riqueza de Macunaíma é que ele pode ser lido tanto como uma procura de um caráter nacional quanto como o reconhecimento de que não existe coisa semelhante. Ele certamente representa o âmago de um drama de realidades culturais que fundem sistemas dominantes pré-existentes (europeu neste caso) e outros novos. A ambigüidade se instala. A fragmentação tende a ascender.

“Cada um de nós tem um pouco de Macunaíma”, disse Proença (1969, 15). De fato, os trabalhos da compreensão do espaço-tempo (Harvey 1989), especialmente os da comunicação de massa, implicarão em uma dinâmica cultural, geradora de inúmeros Macunaímas no mundo. Pessoas cada vez mais deslocadas de suas condições culturais originais, percebendo o mundo através de uma rede de componentes cujas origens são virtualmente impossíveis de serem traçadas. Rede que sempre será experimentada através de uma variedade de ângulos particulares. Isso me convence de que o dilema do presente não é “ser ou não ser”, uma boa síntese da necessidade de identidades delimitadas para estabelecer alianças de cooperação e conflito.

As condições contemporâneas de integração do sistema mundial levam a explorar a idéia de que o dilema é “ser e não ser”, um dilema que talvez só possa ser resolvido se nós, como Macunaíma, subirmos ao céu e nos tornarmos a Ursa Maior, com suas muitas luzes prismáticas.

NOTAS

1. Agradeço a meu colega Dr. Júlio Cesar Melatti por suas informações sobre os Índios Taulipâng e Arekuná. Embora elas não apareçam tanto ao longo do texto, foram cruciais para minha compreensão sobre a área de Makunaíma. Gostaria de agradecer também ao Dr. Ítalo Moriconi Jr., na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), por compartilhar comigo seus conhecimentos sobre Mário de Andrade e sobre o Movimento Modernista Brasileiro. A Dra. Ana Gira de Oliveira traduziu para o português esta versão originalmente escrita em inglês para a reunião de 1992 da Associação Americana de Antropologia. Obrigado, Ana querida. Dedico este trabalho, terminado em 1993, em uma cidade modernista que Mário de Andrade jamais poderia imaginar existisse um dia, ao centenário de seu nascimento.

2. “Minha conclusão é de que enquanto os modelos conceituais de sociedade são, necessariamente, modelos de sistemas em equilíbrio, as sociedades reais nunca podem estar em equilíbrio. A discrepância está relacionada ao fato de que quando estruturas sociais são expressas de forma cultural, a representação é imprecisa comparada às categorias exatas que o sociólogo, quase cientista, gostaria de empregar. Sustento que estas inconsistências na lógica da expressão ritual são sempre necessárias para o funcionamento adequado de qualquer sistema social”. [Edmund R. Leach, Political Systems of Highland Burma (Boston: Beacon, 1968) 4].

3. Livros são também objetos abertos, na medida em que permitem uma quantidade indefinida de leituras. Este é, precisamente, o caso de Macunaíma.

4. Segundo Silviano Santiago (1988) em 1978 eram 20 as edições de Macunaíma. Foi também traduzido para o Inglês, Espanhol, Francês, Italiano, Alemão e Húngaro. Existem três versões em inglês mas apenas uma foi publicada. E. A. Goodland, trad., Macunaíma (New York: Random House, 1984).

5. Tapuy’una pode designar uma “tribo lendária pré-colombiana”, “negros africanos que se refugiaram na selva”. Telê Porto Ancona Lopes, “O texto e o livro”, Macunaíma: O heroí sem nenhum caráter (Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 1988) 460; “Negros filhos da África que moravam no Brasil”, “Os pretos civilizados” ou “Bárbaro preto”, [Darcy Proença, “Liminar: Macunaíma”, Macunaíma: O herói sem nenhum caráter (Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 1969) 379].

6. Ai, que preguiça! é uma expressão que o herói repete várias vezes no livro e denota estereótipos sobre indolência indígena. Existem fortes evidências de que as duas primeiras palavras “ai que” são um jogo feito por Andrade com a palavra Tupi aiq que designa a “preguiça”, o mamífero de movimentos lentos (Ancona Lopes, “O texto e o livro”, 6). O trocadilho funde, assim, estereótipos com a utilização de expressões das línguas Tupi e Portuguesa, significando um artifício literário de alcance único.

7. Todos os personagens que morrem são reintegrados em uma cosmologia orgânica. A única exceção é o rico capitalista Pietro Pietra, de maneira a marcar, mais uma vez, a natureza estrangeira do gigante. Ver comentários de Ancona Lopes (1988, 135).

8. Na edição espanhola deste livro, Theodor Koch-Grünberg, Del Roraima al Orinoco (Caracas: Ediciones del Banco Central de Venezuela, Vol I 1979, Vol II 1981, Vol III 1982), apenas três, dos cinco volumes, foram traduzidos.

9. Koch-Grünberg (1979, 18) comenta ser estranho o fato dos missionários ingleses terem traduzido Makunaíma como o Deus cristão. Em Taulipâng, Makú é o radical da palavra “mau”. Interessante notar que, atualmente, os Makú, índios do Alto Rio Negro, ainda são classificados no sistema interétnico local como não-humanos. Ana Gita de Oliveira, O mundo transformado: Um estudo da “Cultura de fronteira” no Alto Rio Negro (Universidade de Brasília: Dissertação de Doutorado em Antropologia, 1992).

10. Mário de Andrade leu As formas elementares da vida religiosa de Durkheim e Totem e tabu de Freud, antes de publicar Macunaíma. Nas décadas de 20 e 30, leu também Marx e Bukharin. Richard M. Morse, A volta de McLuhanaíma (São Paulo: Companhia das Letras, 1990) 110. Mário de Andrade tornou-se, mais tarde, em 1934, aluno de Lévi-Strauss, na então recém-fundada Universidade de São Paulo.

11. Entretanto, influenciado por Keyserling e Lévy-Bruhl, fez um elogio à indolência e “elaborou uma justificação da vida primitiva e do mundo tropical como uma forma de terapia para uma sociedade dominada pela técnica e pelo consumo. A civilização era o antídoto do ‘progresso’ e não sua acompanhante. A noção de preguiça em parte exprimia a idéia de que o brasileiro ainda não tinha caráter firme, uma ‘consciência nacional’, e resistia à disciplina exigida pela vida moderna. Porém conotava também o ócio que permite o cultivo da sensibilidade artística, sem nenhuma conotação teológica e preguiça enquanto aridez espiritual” (Morse 1990, 111-112).

12. O terceiro e o quinto volumes foram publicados em 1923.

13. Mário de Andrade [citado por Alfredo Bosi, “Situação de Macunaíma”, Macunaíma: O herói sem nenhum caráter (Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina) 176] escreveu: “um poema herói-cômico, caçoando do ser psicológico brasileiro, fiado numa página de lenda, à maneira mística dos poemas tradicionais. O real e o fantástico fundidos num plano. O símbolo, a sátira e a fantasia livre fundidos. Ausência de regionalismo pela fusão das características regionais. Um Brasil só e um herói só”.

14. “… ambigüidade era, para Mário, típica dos brasileiros modernos — mais ainda, dos homens modernos, que inventam a moral segundo as circunstâncias” (Morse 1990, 112).

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2018-04-20T18:18:07-03:00By |Sem categoria|