Um Brasil Excêntrico: sobre índios, portugueses, negros, alemães e italianos no Rio Grande do Sul

(Capítulo do Livro Etnia e Nação na América Latina)

AUTOR: RUBEM GEORGE OLIVEM

UM BRASIL EXCÊNTRICO: SOBRE ÍNDIOS, PORTUGUESES, NEGROS, ALEMÃES E ITALIANOS NO RIO GRANDE DO SUL 1

Ruben George Oliven – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

I

O Rio Grande do Sul é geralmente considerado como ocupando uma posição singular em relação ao Brasil. Isso se deve às suas características geográficas, à sua economia e ao modo pelo qual se insere na história nacional. Apesar do estado ter uma grande diferenciação interna (do ponto de vista geográfico, étnico, econômico e de sua colonização), ele é freqüentemente contraposto como um todo ao resto do país, com o qual mantém uma relação especial, a ponto de ser às vezes chamado jocosa­mente por outros brasileiros de “esse país vizinho do Sul”.

Historicamente, um tema recorrente na relação do Rio Grande do Sul com o Brasil é justamente a tensão entre autonomia e integração. A ênfase nas peculiaridades do estado e a simultânea afirmação do seu pertencimento ao Brasil se constituem num dos principais suportes da construção social da identidade gaúcha, constantemente atualizada, re­posta e evocada.

Primeiro há o que é chamado de “o isolamento geográfico do Rio Grande do Sul”, responsável por sermos “um todo separado do mundo pelos areais litorâneos, pelos rios, pelas serras e pelas selvas” 2. A natureza, ao mesmo tempo que nos premiou com um espaço físico dos mais favorecidos e benéficos às atividades humanas, também nos con­templou com uma posição de difícil acesso, ilhando-nos no Continente de São Pedro e fazendo com que este ficasse isolado do Brasil por dois séculos.

A essa peculiaridade geográfica se soma uma história sui generis. Ela começa com uma integração tardia ao resto do país. Assim, embora descoberto no começo do século XVI, o Rio Grande do Sul só começa a desenvolver-se mais de um século depois através da preia do gado xucro, cujo objetivo era a exportação de couro para a Europa através de Buenos Aires ou Sacramento. No final do século XVII é que esses rebanhos ganham importância a nível nacional, pois passam a ter um mercado interno na florescente mineração da zona das gerais, estimulan­do paulistas e lagunistas a virem prear o gado xucro existente no Rio Grande do Sul e a levá-Io para a área de mineração.

O objetivo da coroa portuguesa, entretanto, era povoar as terras que iam do sul de São Vicente até a Colônia de Sacramento (fundada por ela em 1680) e nesse sentido o Rio Grande do Sul desempenhava “uma função estratégica, como ponto de apoio para a conservação do domínio luso no Prata”.3 Isso fez com que no começo do século XVIII, a Coroa começasse a distribuir sesmarias aos tropeiros, que se sedentarizaram, e aos militares, que se afazendaram, criando-se assim as estâncias de gado. Os conflitos militares em torno da Colônia de Sacramento e as disputas relativas à delimitação de fronteiras significaram uma crescente milita­rização da região, elevada em 1760 à condição de capitania, com o nome de Capitania do Rio Grande de São Pedro.

A posição estratégica do Rio Grande do Sul faz com que seja visto como área limítrofe nas margens do Brasil, fazendo parte dele ou de outros países conforme o resultado das forças históricas em jogo.

As peculiaridades do Rio Grande do Sul contribuem para a constru­ção de uma série de representações a seu respeito que acabam adquirindo uma força quase mística capaz de projetá-las até nossos dias, fazê-Ias informar a ação e criar práticas no presente.

Apesar da diversidade interna do estado (a ponto de um autor falar em “doze Rio Grandes”),4 a tradição e a historiografia regional tendem a representar seu habitante através de um único tipo social: o gaúcho, o cavaleiro e peão de estância da região sudoeste do Rio Grande do Sul. Embora brasileiro, ele seria muito distinto de outros tipos sociais do país, guardando às vezes mais proximidades com seu homônimo da Argentina e do Uruguai. Na construção social da identidade do gaúcho brasileiro há uma referência constante a elementos que evocam um passado glorioso onde se forjou sua figura, cuja existência seria marcada pela vida em vastos campos, a presença do cavalo, a fronteira cisplatina, a virilidade e a bravura do homem ao enfrentar o inimigo ou as forças da natureza, a lealdade, a honra, etc.

Mas a figura do gaúcho, tal como a conhecemos, sofreu um longo processo de elaboração cultural até obter o atual significado gentílico de habitante do estado. Traçando a história da palavra gaúcho, Augusto Meyer mostrou que ela não teve sempre o signifcado heróico que adquiriu na literatura e na historiografia regional. No período colonial, o habitante do Rio Grande era chamado de guasca e depois de gaudério, possuindo este último termo um sentido pejorativo referido aos aventu­reiros paulistas desertores das tropas regulares que adotaram a vida rude dos coureadores e ladrões de gado. Na verdade eram vagabundos errantes e contrabandistas de gado numa região de fronteira bastante móvel em função dos conflitos entre Portugal e Espanha. No final do século XVIII eles são chamados de gaúchos, vocábulo que mantém a mesma conotação pejorativa até meados do século XIX quando, após a organização da estância, passa a significar o peão e o guerreiro com um sentido encomiástico. 5

O que ocorreu foi a “ressemantização” do termo, através do qual um tipo social considerado desviante e marginal foi apropriado, reelaborado e adquiriu um novo significado positivo, transformando-se em símbolo de identidade regional 6. Chaves argumenta que

a medida que foi desfigurado e distanciado das origens, o gaúcho também foi nobilitado. Nobilitou-se esta perspectiva senhorial dos grandes proprietários rurais a quem interessava diretamente estabelecer a identidade entre o peão e o soldado, atribuindo-lhe uma aura heróica. Nobilitou-o, logo adiante, a palavra de histo­riadores, fazendo-o protagonista duma epopéia brasílica, que vai das Guerras Platinas à Campanha do Paraguai, passando pela Revolução Farroupilha de 1835. Trata-se essencialmente de um fenômeno ideológico o processo de construção do gaúcho como campeador e guerreiro, inserindo-o num espaço histórico onde os atributos de coragem, virilidade, argúcia e mobilidade são exigidos a todo momento, transportando-o ao plano do mito. E não há caso em que transpareça tão claramente a vitória da ideologia?

As representações sobre o gaúcho, já integrados no senso comum, podem ser notadas desde os relatos de viajantes estrangeiros como Saint-Hilaire e Arsene Isabelle. Estão também presentes numa vasta tradição literária que tem como matriz o livro O Gaúcho, que publicado em 1870, no apogeu do romantismo, por José de Alencar, sem jamais ter posto os pés no Rio Grande do Sul, idealiza e mitifica esse tipo social chamando-o “centauro dos pampas”.

Numa perspectiva sociológica, o pensador fluminense Oliveira Vianna em seu clássico Populações Meridionais do Brasil, ao analisar o campeador rio-grandense, atribui-lhe características especiais e men­talidade específica, que o distinguiriam do tipo social dos sertões nor­destinos e. o das matas do centro-sul do país. Suas diferenças em relação a outros tipos sociais seriam causadas pelo meio ambiente e pela supe­rioridade política provinda da experiência de guerra: “O gaúcho é socialmente um produto do pampa, como politicamente é um produto da guerra”. Assim, a experiência de guerra teria dado à elite gaúcha “a capacidade de mando e a prática da organização de grandes massas humanas”, ao mesmo tempo que “desenvolveu na consciência daquela gente, além da interdependência entre a vida da sociedade e a vida privada familiar (…), também o sentimento e o valor do governo como órgão supremo dos interesses coletivos”.

O referido autor é também o mais elaborado teórico da chamada “democracia sulina”, quando argumenta que no Rio Grande do Sul havia uma

tradição de igualdade e familiaridade entre patrões e servidores,essa interpenetração das duas classes rurais – a alta e a baixa, a senhorial e a servil; fenômeno este que constitui, na sua substan­cialidade, o espírito da democracia rio-grandense.

Um elemento decisivo para a criação da “democracia social” é o meio ambiente, responsável pela leveza do trabalho: “O pampa – com sua amplitude, o seu desafogo, a sua horizontalidade, a sua vegetação graminosa – faz do trabalho pastoril um verdadeiro esporte”.8

A idéia de democracia social, soma-se à idéia da democracia racial baseada numa citação clássica de Saint-Hilaire:

não há creio, em todo o Brasil, um lugar onde os escravos sejam mais felizes que nesta capitania. Os senhores trabalham tanto quanto os escravos, mantêm-se próximos deles e tratam-nos com menos desprezo. O escravo come à vontade, não é mal vestido, não anda a pé e sua principal ocupação consiste em galopar pelos campos, cousa mais sadia que fatigante. Enfim, eles fazem sentir aos animais que os cercam uma superioridade consolada de sua condição baixa, elevando-se aos seus próprios olhos.9

Em outro trecho de seu livro, entretanto, Saint-Hilaire relativiza essa assertiva:

Afirmei que nesta Capitania os negros são tratados com bondade e que os brancos com eles se familiarizam, mais que em outros pontos do País. Referia-me aos escravos das estâncias, que são em pequeno número; nas charqueadas a coisa muda de figura, porque sendo os negros em grande número e cheios de vícios, trazidos da Capital, toma-se necessário tratá-los com mais energia.10

O argumento de que no Rio Grande do Sul a vida dos escravos era amena quando comparada com a existente em outros lugares repousa numa confusão entre o escravo das estâncias (presente no estado desde sua colonização, mas sem fazer parte do processo produtivo) e o escravo das charqueadas. Essa confusão propiciou uma visão “idealizada” das condições de vida do negro na região. Examinando a ideologia da “democracia racial” e da “democracia rural gaúcha”, Cardoso argu­mentou que

como ideologia, além de não corresponder às condições reais de existência social, é formalmente contraditória em si mesma: supõe uma relação entre senhores, escravos, agregados, peões, que é ao mesmo tempo autocrática e democrática, senhorial e igualitária. 11

Embora houvesse escravos negros no Rio Grande do Sul desde a primeira metade do século dezoito, sua importância se acentua a partir do final daquele século, em atividades como a produção de trigo, a criação de gado nas fazendas e principalmente nas charqueadas. Nestas últimas, o trabalho era todo baseado na figura do escravo. Se as condições de vida dos escravos nas estâncias foram consideradas boas por uma série de viajantes estrangeiros, nas charqueadas eram caracterizadas pela desumanidade extrema, conforme atestado por vários relatos.

Em 1814, 29% da população do Rio Grande do Sul era formada por escravos e em 1862 a percentagem era de 27,3. Nas palavras de Cardoso:

Se é verdade que, em conjunto, a proporção de negros e escravos não foi predominante no Rio Grande, senão em uma ou outra freguesia da área de povoamento antigo, o números de cativos negros sempre foi considerável, e a atividade econômica depen­deu, em larga margem, do trabalho escravo regular. 12

Os negros também tiveram uma participação importante na Revolu­ção Farroupilha e, de acordo com os cálculos do exército imperial, teriam composto de um terço à metade do exército rebelde13. Bakos assinala que “é lugar comum na historiografia do Rio Grande do Sul atribuir aos farroupilhas o ideal da abolição da escravatura negra”. A idéia normal­mente é comprovada com a citação do parágrafo IV, da paz de Ponche Verde, que reza: “São e livres como tal reconhecidos todos os cativos que lutaram ao lado da República”. Entretanto,

Bento Gonçalves, ao mesmo tempo em que solicita como condição de paz ao governo imperial a liberdade dos escravos que estão a serviço da República, deixa, como herança ao morrer em 1845, 53 escravos em sua fazenda de Camaquã. Outros integran­tes do movimento revolucionário também possuíam escravos vários anos após o término da luta armada (…).14

A presença do índio também aparece bastante ,esmaecida na cons­trução social da identidade do Rio Grande do Sul. E comum a historiografia tradicional se referir ao território rio-grandense, nos primórdios da colonização ibérica, como “terra de ninguém”. Nessa operação, os indígenas eram desconsiderados como “sem fé, sem rei e sem lei”. As pesquisas arqueológicas assinalam, entretanto, qhe o Rio Grande do Sul já era habitado há mais de 12.000 anos.

No século XVII, os bandeirantes vieram no encalço dos índios, parte dos quais estavam aldeados em reduções jesuíticas. A fundação dos Sete Povos das Missões pelos jesuítas a partir de 1682, significou o surgimen­to de centros econômicos de grande importância, onde os indígenas criavam gado e plantavam erva-mate. Mas na medida em que foram percebidos como um “Império Teocrático na América”, os Sete Povos passaram a preocupar Portugal e Espanha, sendo objeto do Tratado de Madrid em 1750, onde ficou acertado que o primeiro entregaria Sacra­mento ao segundo, permanecendo assim com as missões. Este acordo desencadeou a chamada “Guerrilha Guaranítica” (1754-1756), travada pelos índios sob a liderança de Sepé Tiaraju, com o objetivo de permitir permuta de suas terras.

Calcula-se que atualmente existam em tomo de 9.000 índios no Rio Grande do Sul, o que corresponde a 0,1% da população total do estado, aproximadamente a mesma proporção de todos os índios do Brasil em relação à população brasileira. Isso coloca a questão de que também no Rio Grande do Sul houve uma progressiva eliminação física dos índios até que fossem reduzidos ao pequeno número hoje existente, através do contato predatório com o homem branco – morte por guerras e epide­mias e apropriação de suas terras – num processo semelhante ao ocorrido no resto do país, ação destrutiva dos bandeirantes paulistas, escravizando os, indígenas e destruindo as missões guaraníticas apontam nessa direção. E claro que houve um certo grau de miscigenação entre brancos e índios e negros e índios, assinalado por diferentes autores, 15, mas sobre a qual não se tem dados mais precisos.

Do mesmo modo como a historiografia tradicional do estado subes­tima a presença do negro, parte dela também afasta o índio da formação da identidade gaúcha, ao contrário do que ocorreu no resto do Brasil a partir da década de trinta. Desse modo, um consagrado historiador, escrevendo na década de cinqüenta sobre a formação do Rio Grande do Sul, faz uma distinção entre o gaúcho platino e o rio-grandense. Enquan­to o primeiro seria marcado pela miscigenação dos espanhóis com as índias, que gerou o mestiço-tipo revoltado, origem do caudilho – com o segundo, no Brasil, nada disso teria ocorrido. a si1’I!’ observa que “na formação antropológica do nosso campeiro, o índio não só entrou como um contingente bem mais pobre, como trazia a alma sem a carga de ódio com que ele reagiu ao desprezo e às truculências do espanhol nas campanhas platinas”. Dessa forma, “não há como fugir à conclusão de que, como fator de integração histórica, o índio foi, entre nós, de significação bastante medíocre”. Falando das Missões, o mesmo autor afirma que

(…) o material humano ali experimentado, do mais baixo teor,

era quase inaproveitável, senão inaproveitável de todo como

fator de civilização. Disso os próprios jesuítas se convenceriam,

embora tantas vezes fossem levados a dizer o contrário emdocumentos que se destinavam à publicidade. Dificilmente sepoderia, com efeito, construir qualquer coisa de estável e dura­douro sobre o casco indígena, pobre gente que talvez nem se pudesse considerar como padrão de raça primitiva mas já em estado de franca regressão. Sabe-se que sua inteligência, soba educação dos padres, evoluia satisfatoriamente até aos doze anos. Aí parava ou entrava em processo de involução. 16

É também significativo que um autor contemporâneo, disposto a fazer uma revisão da história, tenha escrito na década de oitenta um artigo com o sugestivo título de “A Miscigenação que não houve” onde, após criticar autores como Vellinho e sem acrescentar novos dados de pesquisa, chega à seguinte conclusão:

o que houve foi a total extinção física do índio no Rio Grande do Sul como resultado de um processo de mais de três séculos nos quais ocorreram: a) a guerra de morte do homem branco contrao indígena, b) a ocupação de todas as suas terras pelo coloniza­ dor, c) a utilização do índio e de seus descendentes como carne de canhão nas guerras do Prata e nos conflitos das facções rivais da classe dominante sul-rio-grandense durante o séc. XIX, d) a expulsão dos últimos descendentes já ‘acablocados’, para as cidades,onde morreram de desnutrição desde meados do século passado, quando já estavam poucos. (…) Em conseqüência, a partir de uma perspectiva obviamente diferente, pode-se concluir, como Moysés Vellinho, que a participação do elemento indígena na constituição genética e sócio-cultural do Rio Grande do Sul foi ‘desprezível. 17

Em seu afã de desmistificar parte da historiografia, Dacanal acaba também negando a contribuição do índio na formação do homem sul-riograndense. O argumento é problemático pois, conforme assinala Chiappini,

se o processo de extinção do índio se deu, como ele afirma ao

longo de três séculos, é sinal de que durante esse tempo pode ter havido, e certamente houve miscigenação. Aliás, ele mesmo admite que isso teria havido entre as classes mais baixas, cen­trando o final do seu ensaio na negação do fenômeno entre os proprietários que seriam, sobretudo, brancos e europeus.18

Como nem Vellinho, nem Dacanal trabalharam com dados de pes­quisa capazes de sustentar suas afirmações, podemos chegar à conclusão de que, embora com sinais trocados, na visão de ambos não existe lugar para o índio do povoamento do Rio Grande do Sul.

II

O modelo construído, quando se fala nas coisas gaúchas, está basea­do num passado que teria existido na região pastoril da Campanha (localizada no sudoeste do Rio Grande do Sul, fazendo fronteira com a Argentina e o Uruguai) e na figura real ou idealizada do gaúcho.

Do século XVIII, quando o Rio Grande do Sul começou a ser colonizado, até a Revolução Farroupilha (1835-1845), o sudoeste do estado era

uma região cujos contornos confundiam-se perfeitamente com os próprios

limites da província, já que a Campanha constituía o único espaço

gaúcho efetivamente apropriado e incorporado à economia nacional.

No dizer de Jean Roche, ‘o Rio Grande do Sul era o Pampa.’ 19

Entretanto, o surgimento na metade setentrional do estado de um expressivo contingente de pequenos produtores agrícolas e comerciantes descendentes dos colonos alemães e italianos (chegados ao Rio Grande do Sul, respectivamente, a partir de 1824 e 1875) e a crise experimentada pela pecuária após 1870 fizeram com que a hegemonia econômica e política da Campanha começasse a ficar seriamente abalada.

Franco assinala que

boa parte dos patrícios do Brasil identificam o Rio Grande do Sul com as características sócio-culturais da Campanha desatentos à circunstância de que hoje essa região ocupa uma posição de retaguarda nos quadros econômicos do Estado, perdeu sua hege­monia demográfica e, por via de conseqüência, o predomínio político e se constitui numa área marcada pelas mais negras mazelas do subdesenvolvimento.20

Apesar da decadência da Campanha e do crescimento de outras regiões do estado – como a região serrana de colonização alemã e italiana – a representação da figura do gaúcho com suas expressões campeiras envolvendo o cavalo, o chimarrão e a construção de um tipo social livre e bravo, também serviu de modelo para grupos étnicos diferentes, parecendo indicar que essa representação une os habitantes do estado em contraposição ao país.

O culto à figura do gaúcho e suas tradições fora da área pastoril de colonização lusa, e mais especificamente nas áreas de colonização alemã e italiana, coloca uma questão importante. Ela refere-se ao fato da cultura gaúcha no sentido pampiano ser hegemônica num estado que tem as mais variadas influências culturais, recobrindo não só a área de pecuária de latifúndio, onde se originou esse modelo, mas também as áreas de minifúndio, onde nunca houve o complexo pastoril.

Analisando o sentido do termo “colono”, Teixeira observa que ele possui origem histórica bem definida e está associado ao processo de colonização por imigrantes europeus com base na agricultura familiar em suas pequenas propriedades. Como a pecuária correspondia à ativi­dade dominante desde o início da colonização lusa no estado, era extremamente valorizada, ao passo que a agricultura chegava a ser degradante. Assim, desde o começo da colonização alemã e italiana, o termo colono, além de designar os imigrantes e seus descendentes,

no nível das representações significava, sobretudo, carência de certos atributos positivamente considerados. Colono remetia à noção de pessoa com carência de ambição, de traquejo social, de elegância, de postura corporal e comportamental, de senso de oportunidade e de progresso, de arrojo, de perspicácia, de saga­cidade. 21

Os estudiosos da colonização assinalam que os imigrantes estrangei­ros idealizavam o gaúcho como tipo sociavelmente superior. Para isso contribui não somente o fato dos fazendeiros formarem a camada social mais poderosa do estado, mas também do principal símbolo do gaúcho ser o cavalo – na Europa apanágio e marca de distinção entre os aristocratas rurais. Uma das primeiras providências dos colonos ao chegarem ao Brasil era adquirir uma dessas montarias tão logo tivessem condições para fazê-Io 22. A identificação do “colono” com o “gaúcho” significava, portanto, uma forma simbólica de ascensão social. É inte­ressante observar que, embora o Rio Grande do Sul tenha uma expressiva presença de alemães e italianos como empresários e como políticos,23 o tipo social “representativo” continua sendo o gaúcho. . Atualmente, a construção da identidade gaúcha se encontra em novo patamar: tanto o Rio Grande do Sul está urbanizado e modernizado quanto o Brasil apresenta maior integração política, econômica, de transportes, de meios de comunicação, etc., articulando suas regiões de forma efetiva.

Trata-se de uma construção de identidade mais excludente do que includente, deixando de fora metade do território sul-riograndense e grande parte de seus grupos sociais. Apesar do enfraquecimento da região sul do estado, da notável projeção econômica e política dos descendentes dos colonos de origem alemã e italiana que desenvolveram a região norte, da urbanização e da industrialização, o tipo representativo do Rio Grande do Sul continua a ser figura do gaúcho da Campanha como teria existido no passado.

Se a construção dessa identidade tende a exaltar a figura do gaúcho, em detrimento dos descendentes dos colonos alemães e italianos, ela o faz de modo mais excludente ainda em relação ao negro e ao índio, que comparecem no nível das representações de forma extremamente pálida.

Analisados os dados sobre cor do censo demográfico brasileiro de 1980, constatamos que o Rio Grande do Sul é o segundo estado “mais claro” do Brasil, com 87,16% da população se declarando branca, 8,14% parda e 4,21 % preta, dados que contrastam com o Brasil, onde apenas 54,23% da população se declara branca, ao passo que 38,85% se declara parda e 5,92 preta. 24

A questão, entretanto, está menos centrada na auto-classificação da cor do que na invisibilidade social e simbólica do negro no Rio Grande do Sul. Ao analisar as ideologias raciais e sua influência na construção da identidade nacional no Brasil, Ortiz mostrou que no final do século passado começa a se formar a ideologia do Brasil-cadinho. Nesse mo­mento surge na literatura O Guarani de José de Alencar, construindo um índio idealizado. Na virada do século, o mito das três raças formadoras da nacionalidade brasileira vem afirmar o que hoje em dia é senso comum, mas naquela época era novidade: que o Brasil é resultado da mestiçagem entre índios, negros e brancos. Nos anos trinta, Gilberto Freyre

transforma a negatividade do mestiço em positividade, o que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo desenhada. Só

que as condições sociais eram diferentes, a sociedade brasileira não mais se encontrava num período de transição, os rumos do desenvolvimento eram claros e até um novo Estado procurava orientar essas mudanças. O mito das três raças torna-se plausível e pode se atualizar como ritual. A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada por ambigüidades racistas, ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos grandes eventos como o carnaval e o futebol. 25

Examinando o regionalismo nordestino, Dantas mostrou como na década de 30 a exaltação da cultura negra foi usada na criação de uma cultura nacional constituída na esteira dos movimentos modernistas, que buscavam cortar os laços com a Europa e descobrir a originaligade brasileira, através da valorização de traços culturais originários da Afri­ca. Especificamente no caso do regionalismo nordestino, o papel do negro foi realçado positivamente:

Desse modo, se a exaltação da cultura negra foi usada para criar uma cultura nacional, a glorificação do africano, mais especifi­camente do nagô, servia para marcar diferenças regionais, pois era no Nordeste, e particularmente na Bahia, que os africanismos eram vistos como tendo se conservado com maior fidelidade. 26

Mas, ao passo que em outros estados do Brasil, como na Bahia, o negro comparece como um dos formadores da identidade, no Rio Grande do Sul, sua imagem é relegada a um segundo plano. De fato, a historio­grafia gaúcha tradicional, apesar de reconhecer a existência generalizada do escravo no estado, insistiu em sua pouca importância no processo de trabalho.

No folclore gaúcho, a presença mais marcante do negro é a lenda do Negrinho do Pastoreio, com várias versões sendo a mais famosa redigida pelo grande escritor regionalista Simões Lopes Neto. História de um menino escravo perdedor numa corrida de cavalos onde seu dono apos­tara muito dinheiro. Como castigo, depois de açoitado, foi obrigado a ficar pastoreando uma tropilha de cavalos que acabou se soltando, resultando em nova surra e na exigência de encontrar os animais desgar­rados. Para cumprir essa tarefa, o Negrinho pensou em Nossa Senhora e acendeu uma vela, que ia deixando cair pelo caminho pingos de cera, de onde surgiram luzes para iluminar o campo e possibilitar o reencontro do pastoreio. Mas o filho do estancieiro, que era muito malvado, soltou os animais e novamente o escravo foi surrado, desta vez até parecer morto, e deixado sobre um formigueiro para ser devorado. Para surpresa do estancieiro, três dias depois, o Negrinho foi encontrado em perfeito estado, tendo a seu lado a tropilha e a Virgem. Por isso, hoje em dia “o Negrinho anda sempre à procura dos objetos perdidos, pondo-os de jeito a serem achados pelos seus donos, quando estes acendem um coto de vela, cuja luz ele leva para o altar da Virgem Nossa Senhora, madrinha dos que não a têm”. 27 ‘

A narrativa, que envolve morte, ressurreição e beatificação popular, desenrola-se no ambiente pastoril de uma estância, onde a ideologia da democracia racial sulina projetava uma vida harmônica e sem sofrimentos para o escravo. Embora no final da lenda, ocorra a ascenção do Negrinho, ele c9ntinua prestando serviços aos outros, procurando aquilo que perderam. E interessante observar que um certo autor, tendo escrito uma importante análise sobre a lenda do Negrinho do Pastoreio, cote­jando-a com outras lendas brasileiras (como a do Saci), insista que não possui “nenhum fundo afro-brasileiro, mas apenas elementos formais de origem africana. O seu sentido é bem cristão, apesar de certa mescla acidental de paganismo”.28

Mesmo hoje em dia, quando se fala do Rio Grande do Sul, mencio­na-se pouco a presença do negro e de sua cultura. Isso é surpreendente se levarmos em consideração que o estado, em geral, e sua capital, em particular, têm impressionante atividade umbandista e de batuque.

Roger Bastide que esteve na cidade de Porto Alegre em 1944 constatou, trabalhando no fichário da polícia da capital do estado, o aumento de 13 casas de culto em 1937 para 57 em 1942. Pesquisando nos fichários das quatro federações de religiões afro-brasileiras existen­tes atualmente no estado, Oro calcula que no final da década de 1980 havia aproximadamente 2.500 casas de culto em Porto Alegre, 4.000 nas demais cidades da região metropolitana da capital e 5.800 no interior, perfazendo um total de 11.800 em todo o estado. Essas cifras na realidade são muito mais elevadas, já que muitos centros não estão registrados.29 O mesmo pesquisador aponta para existência de um número pequeno, mas expressivo, de descendentes de italianos e alemães que participam dessas religiões, seja como fiéis, seja como líderes espirituais: “4,1% do total dos centros de religiões afro-brasileiras do RS estão em mãos de indivíduos de origem italiana e alemã. Esta percentagem é de 6,5% para Porto Alegre, de 3,5% para a Grande Porto Alegre, e de 3,3% para o interior do Estado”.

O autor lança, como uma das hipóteses do fenômeno, a idéia de que para os descendentes de italianos e alemães no RS, participar das religiões afro-brasileiras significa aprofundar a sua integração à sociedade brasileira, na medida em que se observa tanto uma significativa diminuição da manutenção das relações sociais com os seus compatriotas italianos e alemães, católicos ou protestan­tes, quanto um aprofundamento das relações com indivíduos de origem afro-brasileira. Este fenômeno configura ao mesmo tem­po um possível ‘enegrecimento’ do modo de ser e de pensar desses descendentes de imigrantes europeus, e um possível sinal a mais do seu ‘abrasileiramento’.30

Quanto aos índios, na medida em que correspondem a um percentual reduzido (0,1 %) na população do estado, é possível apropriar-se de seus símbolos e transformá-los em símbolos de identidade regional. Assim, numa das vertentes da construção da identidade sul-riograndense, é motivo de orgulho afirmar que no gaúcho corre sangue índio. É corri­queira a expressão “índio velho”, utilizada de forma carinhosa em relação à figura do gaúcho. Contribui para isso, o fato do índio ter sido reduzido a um número mínimo e portanto ter pouco contato com os brancos, dele não ter sido escravizado na mesma proporção que o negro, e estar associado a uma imagem de bravura e altivez, além de charruas e minuanos – grupos já extintos que habitavam a região da Campanha quando os ibéricos ali chegaram – terem sido guerreiros e, a partir da introdução do cavalo, hábeis cavaleiros, o que permite associá-los à figura valente e altaneira do gaúcho em permanente contato e luta com a natureza. O recorte nesse caso é feito através do cavalo, elemento emblemático do gaúcho. 3I

O que se vê atualmente, entretanto, são os descendentes dos guaranis e dos kaingang, grupos indígenas remanescentes no estado, tentando defender-se dos camponeses brancos sem terras, que procuram se tomar posseiros das terras indígenas. Essa situação não impede que no Rio Grande do Sul se enalteça a figura de Sepé Tiaraju -líder dos guaranis que no século XVIII se opuseram à entrega de suas terras aos brancos na área das Missões – como símbolo da coragem do gaúcho. O grito de guerra “esta terra tem dono”, a ele atribuído, é hoje em dia freqüente­mente utilizado como palavra de ordem contra qualquer interferência externa nos assuntos do estado.

III

Pelo fato da etnicidade negra e indígena ser recalcada no Rio Grande do Sul, é interessante observar que negros e índios aparecem de modo simbólico no carnaval, ritual de passagem caracterizado justamente pela inversão. E significativo que Pelotas, considerada a mais. aristocrática das cidades gaúchas e situada na área onde predominam as charqueadas, tenha tido um Rei Momo preto há alguns anos. Do mesmo modo, em Porto Alegre existem “tribos”, como são chamados alguns dos grupos que participam dos folguedos carnavalescos. O envolvimento dos negros no carnaval da capital é muito marcante, com várias escolas de samba ligadas a grupos negros tradicionais. Mas essa festa não recebe a impor­tância que tem por exemplo no Rio de Janeiro Salvador .Recife ou Olinda. Há alguns anos houve um incidente que indica a densidade étnica que o carnaval envolve. A princesa do carnaval de Porto Alegre de 1989, uma loira de olhos verdes, renunciou ao título poucos dias depois de tê-lo conquistado, alegando estar sofrendo discriminação racial dos carnava­lescos negros por ser loira. 32 Há de fato uma série de incidentes étnicos que pontuam a história da cidade. O Grêmio Futebol Porto-Alegrense, um dos mais tradicionais times de futebol, era considerado racista por não aceitar jogadores negros em seus primeiros anos de existência. Seu hino, entretanto, foi composto por Lupicínio Rodrigues, grande músico negro, que se sentiu racialmente discriminado pelo Sport Club Interna­cional, outro time tradicional, conhecido como mais popular e negro, que tinha como símbolo justamente a figura do Saci. 33 Em 1984, Daisy Nunes, mulata, depois de recusada como candidata por outro clube, venceu o concurso de Rainha das Piscinas, concorrendo pelo Sport Club Internacional. Em 1986, ela foi escolhida Miss Rio Grande do Sul e depois Miss Brasil, sendo a primeira mulher de cor a obter esses títulos, o que foi interpretado por alguns, como prova de que não existe racismo nem naquele estado, nem no Brasil e por outros, de que está havendo uma desvalorização dos concursos de misses.

Em 1982, Alceu Collares concorreu ao governo do estado, ficando em terceiro lugar. Embora vencesse na capital, perdeu no interior para dois de seus adversários, fato interpretado na época como recusa do eleitorado das áreas de colonização alemã e italiana de dar seu voto a um negro. Em 1985, foi eleito prefeito de Porto Alegre. Em 1990, candida­tou-se novamente ao governo do estado, obtendo a primeira colocação em praticamente todas as regiões do Rio Grande do Sul. 34

IV

O trabalho de campo que realizei em 1984 no II Musicanto Sul-ame­ricano de Nativismo revela interessante material sobre a construção da identidade gaúcha. Esse festival surgiu em 1983 com a proposta de incentivar novas tendências musicais, já que a maioria dos outros festi­vais do estado não admitia composições destoantes do padrão conside­rado música nativista. Santa Rosa, a cidade-sede desse festival, fica a Noroeste do estado, na região das Missões – fronteira com a província argentina de Misiones – que, conforme indica o nome, corresponde ao território onde os índios guaranis eram aldeados pelos jesuítas. Essa região recebeu mais tarde um influxo de colonos descendentes dos imigrantes alemães e italianos. E na cidade de Santa Rosa, encontramos inúmeras pessoas loiras, à semelhança da artista Xuxa que, aliás, é originária de lá. Durante minha estada ali, vi apenas um único negro. Fiquei morando no acampamento do festival junto com um grande número de jovens que gastavam o dia tomando chimarrão, conversando, ouvindo música, cantando e assistindo as tertúlias (shows gratuitos). Por serem todos brancos, surpreendeu-me o fato de cantarem com grande freqüência músicas que falavam de seu sangue guarani. Procurei em vão por índios no acampamento e na cidade. De noite havia apresenta­ções das músicas competidoras, evento que se realizava em um cinema no centro da cidade e era assistido em grande parte pela população local. Fui entrevistado por um jornal elaborado para o evento e declarei que hoje em dia, no Brasil, não se consegue ser brasileiro sem ser regional antes, frase reproduzida como legitimação do festival por parte da universidade.

A maior parte das músicas cantava o gaúcho, exaltando ou procu­rando desideologizar sua figura. Uma das concorrentes, entretanto, destacava-se da tônica do evento, inovando, não apenas no conteúdo, mas também na melodia e no arranjo. Era a composição “Cântico Brasileiro n° 3” de Maria Rita Stumpf, falando dos índios kamaiurá da Amazônia e dos kaingang do Rio Grande do Sul, cujo ritmo procurava reproduzir a música indígena (“Kamayurá no Xingu quer falar/ Kamayurá no Xingu quer terra! Kaingang em Nonoai quer terra! Kaigangmayurá Kaigangmayurá”). Em um festival que se propõe “aberto” e nativista, não havia como desclassificar ou ignorar a composição, que em vez de falar da figura tradicional do estado, trazia a questão dos indígenas. E após longas deliberações, o júri lhe acabou concedendo o terceiro lugar.

O Musicanto costuma convidar algum renomado artista, de fora, para se apresentar numa das noites e demonstrar a abertura do festival. Naquele ano a convidada foi Mercedes Sosa, que além de vir da Argen­tina, país que faz fronteira com a região das Missões, é um símbolo de latinidade. Sua apresentação ocorreu numa das noites do festival e foi feita em estrado montado num estádio de futebol, para onde acorreu um público estimado em dez mil pessoas apesar da chuva fina que caía. A artista encantou o público com suas músicas que enfatizavam a “alma latina” de nossa América. Os jovens cantavam juntos e um deles conseguiu burlar a segurança e subir ao palco, onde chorando, abraçou a cantora, comovendo a todos. Quando o espetáculo chegou ao final, chovia torrencialmente. A época era a da campanha pelas “Diretas já!” e quando Mercedes encerrou o espetáculo, o público de forma espontâ­nea começou a entoar em coro o refrão “Um, dois, três, quatro, mil, queremos eleger o Presidente do Brasil!”

Escrevi no meu diário de campo:

Se me perguntasse o que as pessoas celebram, eu diria que elas celebram a si mesmas individualmente, em grupos, ou enquanto participantes de um festival. As pessoas parecem curtir tudo: o calor, o som, os mosquitos, a sujeira, o show de Mercedes Sosa (de certo modo, o ápice da celebração), os fandangos, o mate, etc. (…) A vibração é intensa no auditório e o que me chama a atenção é o fato de o público aplaudir indistintamente músicas a favor ou contra a figura tradicional do gaúcho. De fato, apesar do auto-declarado caráter renovador do festival, há desde músi­cas bastante tradicionais até as mais inovadoras. Mas o público parece vibrar com a celebração da identidade gaúcha. E um mar de cabeças loiras, várias delas provavelmente se considerando como herdeiras do índios guaranis dos Sete Povos das Missões, afirmando que elas têm algo de diferente do resto dos brasileiros. De fato, não se fala em samba, carnaval ou candomblé, mas em mate, combatentes, índios, gaúchos, gado, pilão, etc. Analisando a simbologia do evento, pude constatar que foi um festival de identidades: identidade missioneira-guarani-kaingang, identidade gaúcha, identidade latino-americana e finalmente, graças às eleições presidenciais, identidade brasileira. Tudo isso indicando que para chegar a uma identidade brasileira foi necessário percorrer um caminho bastante sinuoso.

NOTAS

I. Trabalho apresentado na Reunião do Grupo de Trabalho do Conselho Latino

Americano de Ciências Sociais (CLACSO) sobre Identidades na América Latina, Realizada na Universidade de Brasília de 7 a 12 de dezembro de 1992.

2. Lourenço Mário Prunes, “O isolamento geográfico do Rio Grande do Sul”, Funda­mentos da Cultura Rio-Grandense. Quinta Série (Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul, 1962) 143.

3. Sandra Jatahy Pesavento, História do Rio Grande do Sul (Porto Alegre: Mercado

Aberto, 1980) 13.

4. Luiz Carlos Barbosa Lessa, Os doze Rio Grandes (Porto A’egre: SAMRIG, 1981). Thales de Azevedo fala em três áreas do Rio Grande do Sul: a sub-área gaúcha, a sub-área colonial e a sub-área rio-grandense original. Ver Gaúchos, notas de antropologia sócia (Bahia: Tipologia Naval, 1943) e “Rio Grande, imagem e consciência”, Os Brasileiros: Estudos de “caráter nacional” (Salvador, Universidade Federal da Bahia, 1981).

5. Augusto Meyer, Gaúcho, história de uma palavra (Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1957).

6. Para um processo semelhante de criação de símbolos de identidade nacional ver

Ruben George Oliven, “As metamorfoses da cultura brasileira”, Violência e cultura no Brasil (Petrópolis, Vozes, 1988).

7. Flávio Loureiro Chaves, “O Gaúcho: Literatura e ideologia”, O Estado de São Paulo,Suplemento “Cultura” IV.I77 (outubro 1983): 2.

8. Francisco José Oliveira Vianna, Populações Meridionais do Brasil, vol. 2 (O

Campeador Rio Grandense) (Rio de Janeiro: paz e Terra, 1974) 195, 159, 168-9, 195-6 e

199-200. A primeira edição do segundo volume deste livro foi publicada postumamente em 1952, embora, de acordo com seus editores, já estivesse “pronta” rio final da década de vinte. A idéia da facilidade em obter os meios de subsistência seria responsável por aquilo

que um historiador contemporâneo chamou de “o mito da produção sem trabalho”. Ver

Décio Freitas, “O Gaúcho: O mito da ‘produção sem trabalho”‘, RS: Cultura e Ideologia.

José H. Dacanal e Sergius Gonzaga (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980).

9. Auguste Saint-Hilaire, Viagem ao Rio Grande do Sul (Belo Horizonte: Itatiaia, 1974) 47. Dreys concorda com isso quando afirma que “nas estâncias, pouco tem que fazer o negro, excepto na ocasião dos rodeios’. Nicolau Dreys, Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedra do Sul (Rio de Janeiro: 1. Villeneuve e Comp., 1839) 203.

10. Dreys, Notícia descritiva 73.

11. Femando Henrique Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional (Rio

de Janeiro: Paz e Terra, 1977) 155.

12. Cardoso, Capitalismo e escravidão, 81. Ver também Mário José Maestri Filho, O escravo no Rio Grande do Sul. A charqueada e a gênese do escravo gaúcho (Caxias do Sul: EDUCS,1984).

13. Spencer L. Leitman, “Negros farrapos: Hipocrisia racial no sul do Brasil no século XIX”, A revolução farroupilha: História e interpretação org. José Hildebrando Dacanal, (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985) 65.

14. Margaret Marchiori Bakos, “A escravidão negra e os farroupilhas”, Dacanal, A

revolução farroupilha, 79 e 94.

15. Ver, entre outros, Balduíno Rambo, “A fisionomia do Rio Grande do Sul”, Fundamentos da cultura Rio-Grandense. Primeira Série (Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Uníversidade do Río Grande do Sul, 1954); Othelo Rosa, “Formação do Rio Grande do Sul”, Fundamentos da cultura Rio-Grandense, segunda série (Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul, 1957); Luis Gonzaga Jaeger,

“O índio no Rio Grande do Sul”, Primeiro seminário de estudos gaúchos (Porto Alegre: Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1957); Pedro Ignácio Schmitz, “Informações elementares sobre a influência indígena na formação do Rio Grande do Sul”, Governo do estado do Rio Grande do Sul, O índio no Rio Grande do Sul – Aspectos arqueológicos, istóricos, etnográficos e étnicos (Porto Alegre: Comissão Executiva de Homenagem ao Indio, Biênio da Colonização e Imigração, 1975).

16. Moysés Vellinho, Capitania d ‘El-Rei (Porto Alegre: Globo, 1964) 175, 176 e 88.

17. José Hildebrando Dacanal, “A Miscigenação que não houve”, RS: Cultura e

Ideologia, orgs. José Hildebrando Dacanal e Sergius Gonzaga (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980) 30-31 e 32.

18. Ligia Chiappini, No entretanto dos tempos: Literatura e história em João Simões Lopes Neto (São Paulo: Martins Fontes, 1988) 148.

19. Rogério Haesbaert da Costa, RS: Latifúndio e Identidade Regional (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988) 36.

20. Sérgio da Costa Franco, “A campanha”, Rio Grande do Sul. Terra e povo (Porto

Alegre: Globo, 1969) 65-66.

21. Sérgio Alves Teixeira, Os recados das festas: Representações e poder no Brasil

(Rio de Janeiro: FUNARTE, 1988) 54.

22. Sobre a colonizaçao alemã ver Jean Roche, A colonização alemã e o Rio Grande .do Sul (Porto Alegre: Globo, 1969) e Emilio WilIems, A aculturação dos alemães no Brasil:

Estudo antropológico dos imigrantes alemães e seus descendentes no Brasil (São Paulo:

Editora Nacional, 1946). Sobre a Imigração italiana no Rio Grande do Sul ver Thales de Azevedo, Italianos e gaúchos: Os anos pioneiros da colonização italiana no’ Rio Grande

do Sul (Porto Alegre: A Nação, 1975). Sobre o gaúcho e o cavalo, ver Emilio WilIems,

“Acculturation and the Horse Complex Among German-Brazilians,” American Anthropologist 46 (1944); e Roger Bastide, “O cavalo e o pampa”, Brasil terra de contrastes (São Paulo: DIFEL, 1964).

23. De 1955, quando a imigração italiana para o Rio Grande do Sul completava oitenta

anos, a 1979 houve seis governadores de estado com sobrenomes Italianos.

24. O estado “mais claro” do Brasil é Santa Catarina, onde 91,44% da população se declara branca. Ver Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Censo demográfico: Dados gerais, migração, instrução ,fecundidade, mortalidade (IX Recenseamento geral do Brasil, 1980) (Rio de Janeiro, 1983) 34-35.

25. Renato Ortiz, Cultura brasileira e identidade nacional (São Paulo: Brasiliense, 1985) 41.

26. Beatriz Góis Dantas, Vovó nagô e papai branco. Usos e abusos da Africa no Brasil (Rio de Janeiro: Graal, 1988) 151.

27. João Simões Lopes Neto, Lendas do Sul (Porto Alegre: Globo, 1980) 87. Sobre a lenda do Negrinho do Pastoreio ver Ligia Chiappini, No entretanto dos tempos: Literatura e história em João Simões Lopes Neto.

28. Augusto Meyer, Prosa do pago (Rio de Janeiro: São José, 1960) 106.

Linhas de pesquisa para este texto

Etnicidade e Multiculturalismo

Identidade Brasileira

2017-11-02T18:32:54-02:00By |Artigos|