O Fim do Diploma Para o Exercício das Profissões

Este artigo discute a possibilidade de se acabar com a exigência de diploma em todas as profissões. Assim, o mercado ficaria encarregado de selecionar os indivíduos aptos a exercerem os diversos ofícios. O governo teria o papel de exigir em conjunto com os Conselhos representativos das diversas profissões, quando fosse o caso, exames (como os atuais exames de ordem da OAB) obrigatórios para a habilitação dos profissionais, sendo estes portadores ou não de diploma.

Há dois tipos de profissionais de nível superior: aqueles cuja prática afeta de forma imediata a vida e a segurança das pessoas e da sociedade, e os demais, cuja atividade só indiretamente tem essas conseqüências. Os exemplos mais evidentes das áreas profissionais do primeiro tipo são Medicina e Engenharia. A maioria dos demais campos está mais próxima ao segundo tipo.

No caso da identificação individual do aluno, um exame, como o atual Exame Nacional de Cursos, por exemplo, elaborado para aferir conhecimentos elementares, seria insuficiente para o credenciamento de profissionais, o que é especialmente verdadeiro naquelas áreas do conhecimento compreendidas pelo primeiro tipo acima, as que afetam diretamente a vida e a segurança das pessoas. Nesses casos, o exame poderia ser usado como mecanismo adicional de credenciamento, sem se dispensar o diploma. O treinamento formal, atestado por diploma, é condição sine qua non para o exercício da Medicina em todo o mundo civilizado.

O controle social do exercício de profissões, como a medicina, passa pelos direitos conferidos por diplomas. Adicionalmente, devem ser exigidos “exames de ordem” para essas áreas que requerem um controle mais rígido da prática profissional. Dada a situação do ensino no Brasil, caracterizada pelo acriterioso credenciamento de instituições nas últimas décadas, um exame de cada formando como condição para o credenciamento profissional poderia consistir em mecanismo útil de proteção da sociedade, sem o abandono da exigência de diplomas.

O segundo tipo de atividades é o daquelas áreas profissionais cuja prática não representa, em si, uma ameaça direta à vida e à segurança das pessoas. Quase todas as profissões estariam aqui enquadradas.

O caso do Direito é ilustrativo. A forma ideal de democracia pressupõe o conhecimento de todos os direitos e deveres por todos os cidadãos e, dentre aqueles, o de defesa junto ao sistema Judiciário. Implica também a possibilidade de participação de todos os cidadãos na posição de árbitros no próprio judiciário ou em outros cargos públicos. A impossibilidade da autodefesa, por exemplo, só faria sentido lógico em um sistema, absurdo por definição, caracterizado pela absoluta irresponsabilidade jurídica. A necessidade de especialistas, face à complexidade da vida moderna, não pode servir de pretexto para a imposição de privilégios estamentais, um defensor obrigatório, pois “a ninguém é dado desconhecer a lei”.

O mesmo ocorre na prática do Jornalismo, onde a reserva de mercado para os formados nas Faculdades de Comunicação brasileiras consiste em evidente cerceamento da liberdade de expressão e da livre troca de idéias. Da mesma forma, a prerrogativa do planejamento econômico, conforme a lei que regulamenta a profissão de economista, representa uma limitação à liberdade política das demais pessoas.

A maior parte das profissões regulamentadas por lei está nesta situação. No que concerne a essas carreiras, justifica-se plenamente o ponto de vista que defende o fim da exigência de diplomas para o seu exercício. A tendência, infelizmente, é a oposta, no sentido da continuidade do processo de regulamentação de profissões, delimitando verdadeiras sesmarias no mercado de trabalho, favorecendo os setores corporativamente mais organizados da sociedade, em detrimento da democracia, da liberdade e do bem geral.

Há algum tempo, um caso inacreditável ocupou a discussão da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados. O projeto de lei visando a regulamentação da profissão de Educação Física incluía dentre os direitos da classe dos diplomados nessa área, a prerrogativa do exclusivo ensino de dança e de lutas, com a conseqüência absurda de que as professoras de dança que não tivessem diploma de educação física seriam proibidas de dar aulas. As academias de ballet seriam fechadas. Foi penoso assistir o vexame a que tiveram de se submeter bailarinas brasileiras na Câmara dos Deputados, obrigadas a convencer os parlamentares de que a proposta beirava a loucura. Mesmo escolas de samba, capoeira e outras manifestações artísticas tradicionais cairiam na ilegalidade, se não contratassem um diplomado em educação física para geri-las!

O credenciamento das atividades profissionais incluídas neste segundo tipo – áreas do conhecimento que não afetam diretamente a vida humana e a segurança da sociedade – deveria ser deixado a critério do mercado, que selecionaria, na prática, aqueles que melhor respondessem a suas necessidades, com ou sem diploma. Mesmo o “Exame de Ordem” seria dispensável em alguns casos e quando realizado, sem necessidade de apresentação de diploma.

Devem ser levadas em conta, ainda, situações intermediárias entre os dois tipos de atividade profissional acima descritos. Na verdade, muitas carreiras apresentam nuances que as situam de forma pouco clara frente essas duas categorias. Assim, há atividades, como a de professor universitário que, em princípio, mas nem sempre, devem exigir diplomas de doutorado. Nas carreiras científicas, o processo de seleção deveria ser mais importante do que o diploma. Já para professores de primeiro e segundo graus, um exame de suficiência incluindo um prova de aula seria de maior relevância que a diplomação propriamente dita. Assim, não tem muito sentido o objetivo do Plano Nacional de Educação de, até o final da década, exigir-se diploma para todos os professores do ensino básico. Mesmo porque, a antiga professora egressa de grandes escolas normais, como o Instituto de Educação do Rio de Janeiro, por exemplo, era mais bem preparada do que a massa de educadores formada nas atuais faculdades.

Algumas aproximações à área médica- o exemplo mais acabado de carreira que afeta a vida humana – representam uma instância interessante para discussão, pois não é bem claro onde começam e terminam as fronteiras entre os campos profissionais dos médicos, dentistas, nutricionistas, enfermeiros, assistentes de enfermagem, auxiliares de enfermagem e paramédicos. Nos campos da Engenharia Civil e Arquitetura, os territórios são igualmente pouco definidos: o mestre de obras tradicional constrói residências populares de forma muitas vezes mais barata e simples do que o egresso de curso superior. Onde se afirma a necessidade de um profissional com formação universitária é na construção de prédios sofisticados, possivelmente de vários andares. Isto quer dizer que, mesmo em alguns subcampos de atividade de determinadas carreiras sensíveis do ponto de vista da vida e da segurança humanas, há espaço para se eliminar diplomas e outros requisitos formais.

A excessiva regulamentação profissional prejudica, também, seriamente, a educação superior e a eficiência econômica do País. A tradição bacharelesca brasileira tem sido considerada, desde a fundação da nação, um dos seus mais graves problemas. Um de seus traços característicos é a substituição do conteúdo pela forma, do conhecimento pelo diploma, mesmo que este nada signifique ou aquele inexista. O diploma transformou-se em uma espécie de autorização, uma “carteira de motorista” para se trafegar no mercado de trabalho. Instituições de ensino superior tornaram-se cartórios que vendem à prestação a licença para trabalhar.

A ênfase no diploma como produto da universidade, e não no conhecimento que o diploma deveria atestar, representa uma distorção que engessa a vida econômica da nação, promove a desigualdade social e desmoraliza o sistema educacional.

Do ponto de vista educacional, a exigência de diplomas para o exercício profissional representa um sério óbice à conquista de um ensino de qualidade. De fato, a emissão de diplomas transforma-se no objetivo fundamental das instituições educacionais. A produção e a transmissão do conhecimento passam a ser o aspecto secundário, quando o contrário deveria ocorrer: o diploma deveria apenas certificar que o profissional possui, presumivelmente, um determinado nível de conhecimento e não substituir, automaticamente, o conhecimento e a capacidade profissionais. Um indicador das lamentáveis condições vividas pelo ensino superior brasileiro é, exatamente, a quantidade de leis exigindo diplomas.

O governo, empresas e indivíduos não deveriam ser obrigados a contratar profissionais, com este ou aquele diploma, mas deveriam, sim, possuir a liberdade de contratar os que melhor suprissem suas necessidades. Se o diploma refletisse, efetivamente, o preparo profissional, a tendência seria à exigência de diplomas pelos empregadores. Logo, a desregulamentação da exigência de diploma teria um saudável efeito sobre a qualidade do ensino, de um lado, e sobre a economia do país, de outro.

Do ponto de vista econômico, não só se gastam vultosos recursos públicos e privados em cursos superiores onde nada se aprende como ainda, as empresas são obrigadas a pagar um tributo informal, contratando profissionais desnecessários ou até incompetentes, por puro imperativo legal. A exagerada regulamentação das profissões, que tem na exigência de diplomas de curso superior um de seus aspectos característicos, representa uma das mais pesadas cargas do chamado “Custo Brasil”, onerando as empresas, diminuindo sua competitividade e obrigando-as a desnecessárias rotinas administrativas e legais. Profissionais devem ser assim considerados pelo trabalho que desenvolvem, pela necessidade que criam, e não pelos títulos que ostentam.

As distorções dos sistemas educacional e econômico advindas da exigência de diplomas universitários servem para manter os privilégios daqueles que Raymundo Faoro chamou de “Os donos do Poder”. São os que tendo acesso aos cursos superiores exploram o resto da nação pela via de privilégios corporativos. Este tributo pago às corporações e às empresas de ensino, decorrente da regulamentação das diversas profissões, atinge toda a sociedade, especialmente os mais humildes. A abolição da necessidade de diplomas representará uma forma de flexibilizar a prática das diversas profissões, diminuido o obstáculo que podem representar à própria vivência plena da cidadania.

Deve ser ressaltado que, com a exceção acima estabelecida, dos campos do conhecimento que implicam risco para a segurança das pessoas e da sociedade há uma enorme variação, de país para país, no que se refere à exigência legal de diplomas. Nos Estados Unidos, a regulamentação é estadual e extremamente variável. Alguns estados federados tendem a regulamentar um menor número de profissões do que outros. Há oito estados norte-americanos que, por exemplo, não exigem diploma para o exercício do ofício de advogado. Por outro lado, a formação de um advogado nos Estados Unidos requer, em média, sete anos de estudos, configurando-se a carreira como uma especialização pós-graduada.

Frente ao argumento desenvolvido acima, seria do maior interesse a desregulamentação das diversas profissões, extremamente presas a privilégios corporativos em nosso país. Com exceção da maior parte das subáreas Médicas e algumas das Engenharias, deveriam ser revogados todos os privilégios legais associados às diversas carreiras, como condição para a construção de uma sociedade democrática no Brasil.

A regulamentação profissional é normalmente defendida por setores pretensamente de “esquerda”. Ora, a organização sindical a partir de privilégios conferidos por diploma é tudo menos organização de classe. Organização de classe para fins políticos é aquela que decorre das necessidades concretas decorrentes da divisão do trabalho e, não, de imposições artificiais nascidas de uma relação de poder com o estado. A organização de profissões a partir de privilégios legais é uma sobrevivência da organização sindical do Estado Novo, inspirada no modelo da Itália de Mussolini.