Identidade, Fragmentação e Diversidade na América Latina

INTRODUÇÃO

George Zarur e Parry Scott

Este é o quarto livro de autoria conjunta dos participantes do Grupo de Trabalho Sobre Identidades na América Latina, reunindo os trabalhos apresentados por seus membros, em 1998, durante sua quinta reunião, realizada em Recife, no campus da Universidade Federal de Pernambuco.

Em 1989 foi publica da a obra “A Antropologia na América Latina” (México, IPGH, ed. George Zarur) que representa, até hoje, em que pesem outras tentativas mais recentes, um do mais completos e importantes balanços da Antropologia em diferentes países latino­amencanos.

Em 1996, veio a público a obra em dois volumes “Etnia e Nação na América Latina”, também de autoria coletiva dos membros do Grupo de Trabalho (Washington, OEA, G.Zarur, ed.), que reflete sobre as relações entre os dois conceitos no ambiente social da América Latina, abrangendo trabalhos de grande envergadura na Antropologia latino­-americana.

No ano 2000 foi publicado o livro “Região e Nação na América Latina” (Brasilia, 2000, G. Zarur, ed.), que mostra, de uma diversidade de óticas, o peso particular do negligenciado conceito de região, fundamental para a compreensão do Brasil e, ainda importante, em menor dimensão, para outros países.

O grupo tem representado um fórum privilegiado para o desenvolvimento de um pensamento social característico latino-­americano, a partir da Antropologia. Tem contribuído decisivamente para a construção de uma identidade compartilhada pelos países latino­-americanos, pelo encontro, através de investigações empíricas e teóricas, do que existe de comum e de diverso entre os povos do continente. Reúne representantes da melhor antropologia latino-americana. Mesmo diante de repetidas tentativas através de congressos e reuniões conjuntas, os antropólogos latino-americanos desconheciam e, ainda, desconhecem em larga medida, o que se produz nos demais países da Região. Manter um grupo de trabalho reunindo-se, periodicamente, por quinze anos, e produzindo sistematicamente, no instável ambiente latino-americano foi, e continua sendo, um verdadeiro feito, do qual todos os membros do grupo de trabalho se orgulham.

Na reunião no Recife, os participantes se debruçaram sobre o próprio conceito de identidade em um mundo caracterizado, cada vez mais, por uma diversidade cujos eixos organizadores reportam a um mundo globalizado que contempla uma multiplicidade de ideologias. Assim, o enfoque caiu sobre a questão da fragmentação de objetos sociais e culturais diversos como um problema central do pensamento “pós-­moderno”. A diversidade de objetos em sua relação com o leitor é, em si, uma questão primeira para o pós-modernismo. Na antropologia, a questão das identidades fragmentadas passou a ocupar um primeiro plano, devido à importância deste conceito para o pensamento antropológico.

A fragmentação das identidades nacionais, associada ao enfraquecimento político do estado-nação é um fenômeno claramente perceptível, associado à globalização. Na América Latina e em outras regiões politicamente instáveis, assume cores mais dramáticas. Daí a ênfase em movimentos sociais e em identidades a eles associadas, de negros, índios, mulheres, homossexuais. de bairros, e até o reforço das velhas identidades associadas à diversidade regional brasileira.

Este livro é aberto com um trabalho de David Maybury-Lewis, figura tutelar na antropologia brasileira. Seu trabalho debate a visão que se tem do pluriculturalismo no pensamento político ocidental e de sua inevitabilidade nos estados-nação atuais. Seu estudo traz uma série de insights originais não só para se pensar o pluriculturalismo, como o próprio estado-nação. Sem deixar de reconhecer as dificuldades da empresa, conclui pela necessidade ética de construção de estados pluriculturais, da mesma forma que, apesar dos obstáculos inerentes à sua implantação, não se pode deixar de insistir na democracia.

Luis Felipe Baêta Neves discute criticamente, a partir das reflexões de Sérgio Paulo Rouanet, o conceito de identidade, de maneira diversa da que é, normalmente, repetida no discurso antropológico. São considerados conceitos associados ao de identidade, como os de globalização e universalismo, em sua complementaridade e oposição. Trata-se de uma contribuição original, emoldurada por sólida erudição.

Uma discussão teórica a partir de um problema concreto e original é a de João Pacheco de Oliveira Filho sobre os “índios misturados”, isto é, aqueles que não se conformam ao modelo comunitário tradicional de isolamento e forte referência à cultura tradicional, como têm sido descritas, tradicionalmente, as populações indígenas da Amazônia. Seus estudos entre os índios do Nordeste, seu exemplo de “índios misturados”, leva-o a discutir a situação etnográfica e suas repercussões nos conhecimentos produzidos; o papel do estudo da memória, com suas técnicas e perspectivas específicas; e a dimensão utópica e projetiva (e não apenas política) presente na construção do fenômeno da etnicidade.

O trabalho de autoria de Miguel Bartolomé discute a questão da fragmentação do novo desenho político dos estados nacionais, especialmente, o México sob o prisma da autonomia indígena. De fato, a divisão deste País em suas unidades políticas constituintes, como estados e municípios e “ejidos” está desatualizada frente aos atuais movimentos políticos de afirmação de identidade indígena.

Já Alícia Barrabas estuda o Estado de Oaxaca, como expressão do México atual. Ali convivem, atualmente, 16 grupos indígenas, populações de origem africanas e não indígenas. Seu interesse são as formas de construção política autônoma, a partir do reconhecimento de territórios étnicos, da legislação que ampara o autogoverno municipal e da nova lei estadual sobre direitos indígenas, bem como, das possibilidades que estão sendo abertas para um sistema autonômico em Oaxaca.

Renato Athias transporta o enfoque para a complexa relação de hierarquia e fragmentação no contexto cultural multilingüe do Alto Rio Negro no Noroeste da Amazônia. Aproveita cosmologia, rituais, valores e a vida cotidiana encontrados em etnografias próprias e dos outros para revisar diversas compreensões das relações interétnicas, adotando a noção dumontiana de hierarquias englobadas para explicar a inserção de diversas etnias, e especialmente os Hupdê-Makú, em posições diferentes num mesmo complexo cultural.

Gustavo Lins Ribeiro desenvolve estudo sobre os brasileiros em San Francisco, na Califórnia, com trabalho de campo nos Estados Unidos, procedimento inaugurado, na antropologia brasileira, por um dos editores deste livro 1. Explora a transformação de identidade nacional em identidade étnica, caso dos imigrantes brasileiros em São Francisco. Ressalta o “embaralhamento” das identidades que compõem a de brasileiro, no contexto estudado, reunindo elementos culturais de regiões e etnias brasileiras diversificadas.

Roberto Motta faz uma caracterização das religiões afro-brasileiras e aponta o fenômeno de sua “desetnização”. Essas religiões recebem adeptos de todas as etnias disponíveis no Brasil. Paradoxalmente, reafirmam-se por um aspecto étnico, sua “autenticidade” em relação à origem africana. Assim, no dizer de Mota, estamos diante de uma “identofagia” pois “a africanidade avança na medida em que se afasta da negritude”. Uma hipótese de suma importância seria a da coerência das religiões africanas com o estágio pós-moderno, “pós-histórico” do qual o mundo parece se acercar.

Giralda Seyferth analisa os processos de reconstrução de identidades étnicas entre alemães do Sul do Brasil. Sua diferenciação é construída, nas palavras da autora, “a partir de elementos buscados no passado, num discurso que apela para a legitimidade da diversidade cultural.” Demonstra que a construção dessas identidades apresentou diferentes formas em contextos diversos. Há o apelo ao passado e a tradições folclóricas reinventadas para a firmação dessas identidades particulares.

Myriam Jimeno, como a maior parte dos cientistas sociais colombianos, estuda a questão da violência em seu país. Ficam claras as múltiplas relações entre o enfraquecimento do estado, o fracasso das instituições no controle da violência e a fragmentação da sociedade em grupos diversos. A fragmentação estimula o crescimento da violência, na medida em que enfraquece a resposta coletiva que a ela poderia ser dada.

Ruben Oliven estuda a convergência da tradição e da modernidade na Identidade Brasileira. Identifica diversos aspectos relevantes para se entender como as duas forças acima – tradição e modernidade – operam no pensamento brasileiro. Analisa o movimento modernista, surgido em Recife, sob a liderança de Gilberto Freyre em relação com o movimento inaugurado em São Paulo com a semana de arte moderna. O renascimento do regionalismo na atual conjuntura brasileira e suas razões e implicações são uma das muitas contribuições deste estudo.

Parry Scott desenvolve um estudo teórico sobre um conceito caro aos pensadores na América Latina: o patriarcalismo. Examina como se relaciona este conceito com três diferentes correntes de idéias salvacionistas inseridos em contextos históricos distintos associados à supressão do reconhecimento da diversidade. Mostra como o salvacionismo evolucionista do século XIX busca a superação do patriarcalismo pelo advento da sociedade comunista; como o salvacionismo nacional do meio do século XX de Gilberto Freyre se ancora na raiz patriarcalista da nação brasileira aglomerando diversidades para contribuir para a construção nacional centralizada e salvadora; e por fim, como o feminismo da segunda metade do século XX situa a superação do patriarcalismo como objetivo essencial para apontar o caminho da redenção feminina e de todos os seres humanos, mas que posteriormente se vê confrontando com o problema da reinserção da valorização da diversidade no decorrer deste processo redentora.

George Zarur com uma não escondida visão nitzcheniana, utiliza o exemplo de Cândido Mariano da Silva Rondon, para investigar como são criados os heróis nacionais. Avançando no pouco explorado terreno das emoções pelas Ciências Sociais, analisa as conseqüências do processo dito “desmitificador” de figuras históricas e as conseqüências de tal processo para a identidade nacional e para a construção de sociedades democráticas e plurais. As idéias e propostas de Rondon são discutidas para este fim.

Não há nenhuma conclusão única a ser desprendida da leitura desta coletânea que resultou de um seminário realizado na Universidade Federal de Pernambuco. As identidades discutidas são múltiplas, são fragmentadas e encontram explicações e interpretações nas mais diversas fontes. Os fragmentos do mundo globalizado não se reportam unicamente a um processo arrasador ou recriador de globalização. Tradições históricas e culturais; armações epistemologicas; processos de construção da nação; encontros e desencontros lingüísticos; lutas e resistências na formação de estratégias políticas localizadas; misturas que fortalecem e redefinem etnicidades – é esta diversidade que ainda mantém viva a riqueza de uma América Latina que tenha características próprias e especificidades baseadas em identidades em permanente reconstrução.

1 George de Cerqueira Leite Zarur publicou, em 1984, seu livro “Os Pescadores do Golfo: Antropologia Econômica de uma Comunidade Norte”, baseado em sua tese de doutorado defendida em 1975 na Universidade da Flórida, sendo o, primeiro estudo sobre Estados Unidos, baseado em trabalho de campo, realizado por um antropólogo brasileiro nos Estados Unidos.

INTRODUÇÃO

Parry Scott e George Zarur

IDENTIDADE ÉTNICA EM ESTADOS PLURICULTURAIS

David Maybury-Lewis

O CONCEITO DE IDENTIDADE

Luiz Felipe Baeta Neves

A PROBLEMÁTICA DOS “ÍNDIOS MISTURADOS” E OS LIMITES DOS ESTUDOS AMERICANISTAS: UM ENCONTRO ENTRE ANTROPOLOGIA E HISTÓRIA

João Pacheco de Oliveira Filho

MOVIMIENTOS INDIOS Y FRONTERAS EN AMERICA LATINA – Miguel Bartolomé

AUTONOMÍAS INDÍGENAS EN MÉXICO: UTOPÍAS POSIBLES ?

Alícia Barrabas

HIERARQUIZAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO: ANÁLISE DAS RELAÇÕES INTERÉTNICAS NO RIO NEGRO

Renato Athias

A IDENTIDADE BRASILEIRA NO ESPELHO INTERÉTNICO: ESSENCIALISMOS E HIBRIDISMOS EM SAN FRANCISCO

Gustavo Lins Ribeiro

CONTINUIDADE E FRAGMENTAÇÃO NAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS – Roberto Mota

ESTUDO SOBRE REELABORAÇÃO E SEGMENTAÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA

Giralda Seyferth

FRAGMENTACION SOCIAL Y VIOLENCIA EN COLOMBIA

Myriam Jimeno

TRADIÇÃO E MODERNIDADE NA IDENTIDADE BRASILEIRA

Rubem Olivem

NAS MALHAS DA NAÇÃO: A NOVA POLÍTICA DO BRASIL NOS SERTÕES DO LITORAL Marco Antônio Mello e Arno Vogel

PATRIARCALISMO E IDÉIAS SALVACIONISTAS

Parry Scott

O HERÓI E O SENTIMENTO: RONDON E A IDENTIDADE BRASILEIRA

George Zarur

2017-10-30T14:31:14-02:00By |Livros|